domingo, 15 de maio de 2016

De Eva a Maria: putas ou santas

 Maria, ao longo da tradição, foi apresentada e louvada como paradigma para as mulheres. Ela é uma espécie de “tipo” que toda mulher deve pretender imitar ao longo da vida. Fora dessa “imitação” de Maria as mulheres estão fadadas a não se realizarem no seu “ser mulher”. A imagem da mãe de Jesus, que foi construída pela Igreja durante séculos, serviu de combustível para alimentar o imaginário religioso e social de uma mulher ideal, sem quaisquer traços de autonomia e liberdade.

Por Tânia da Silva Mayer*

Como contraponto à imagem de Maria está a de Eva, estigmatizada de ter sucumbido à sedução da serpente do Éden e de ter levado Adão também à queda. E não é de hoje que a história humana, fundada no éthos judeu-cristão, utilizou Eva para corrigir qualquer mulher que ousasse ir contra os padrões, costumes e normas impostos em suas sociedades. Assim, os ideais de uma santidade serviçal, inatingíveis como veremos, foram contrapostos a uma imagem caracterizada da “puta”, sempre com conotações sexuais. Nesse sentido, uma mulher, a fim de fugir dos estigmas sociais das “putas”, preferirá (coagidamente?) acorrer aos altares das “santas”, mesmo sabendo que são impossíveis de os alcançarem.

No segundo milênio da Igreja, dos séculos XI ao XIX, há uma busca piedosa pela figura pessoal de Maria, a mãe de Jesus, no interior da Igreja. Ela que havia sido abordada, pelas tradições teológicas anteriores, numa perspectiva cristológica e eclesial, isto é, nas suas relações com Cristo e a Igreja, é, agora, assediada de maneira pessoalíssima, de modo que não importa mais sua relação com seu Filho e com o corpo de Cristo, que é a Igreja, mas o seu mistério pessoal revelado como a “Nossa Senhora”. Quando a teologia começa a acentuar a figura de Jesus Cristo como o Juiz escatológico do rigorosíssimo juízo final, Maria aparece como lugar de graça e perdão para todos os que se encontram “num vale de lágrimas”. Ela é o consolo dos que, manchados pelo pecado, penam neste mundo e no outro as culpas da vida errante que viveram.

É nessa época que Maria passa a ser compreendida como a Rainha, “Mãe da Misericórdia”, “mãe clemente” rica em doçura, “esperança nossa”, “advogada nossa”, “piedosa” senhora, “doce Maria”. Ela é a soberana mulher, exemplo de mãe e esposa dedicada, virgem pura e fiel. Note-se que com a ascensão do latim, com o clericalismo em altas e com o afastamento do povo da liturgia, as devoções mariais proliferam juntamente com as peregrinações aos santuários dedicados à Maria. A figura da mãe de Jesus deixa, aos poucos, de ser a métrica para a Igreja e passa a ser a baliza para todas as mulheres, e somente para elas. Estas deverão encontrar na jovem Maria as inspirações necessárias para a sua vida. Elas deverão ser uma espécie de imagem e semelhança da mãe de Jesus, não segundo o que narra-se sobre ela nos textos evangélicos, mas a partir das imagens que os séculos do II milênio cristão construíram a respeito de Maria: uma mulher cuja imagem demasiadamente espiritualizada a eleva a uma espécie de sobrenaturalidade impossível de ser atingida.

A exaltação dos atributos de Maria, supracitados, promoveu uma fotografia bastante idealizada da mulher na esteira da imagem da mãe de Jesus. A mulher perfeita deverá ser receptiva, silenciosa, mãe zelosa, serviçal e virgem. Ao lado disso, a juventude, sinônimo de beleza e ingenuidade, será prerrogativa cultivada por todas as mulheres que sucederam Eva e que agora têm diante de si a imagem perfeitíssima de uma Nossa Senhora a ser imitada. Dessa maneira, não pegará bem, ao longo da história, uma mulher que desobedeça a regras, questione os costumes e se intrometa em decisões. Nestes termos, a exaltação de Maria significou o rebaixamento de todas as outras mulheres, que nunca terão condições de ser semelhantes à mãe de Jesus. Entre Eva e Maria se encontram todas as outras mulheres, que poderão ser associadas à Eva, mas que jamais serão associadas a “Nossa Senhora”. Maria é o modelo a ser imitado pelas mulheres e, no entanto, ela é inimitável. Nesse sentido, há somente dois destinos fatalistas para as mulheres: serem mães ou virgens. Como é impossível ser mãe e virgem ao mesmo tempo, nenhuma mulher, por mais que dedique toda a sua vida a Deus, alcançará um lugar de prestígio e santidade como alcançou Maria.

Essa imagem que os séculos XI ao XIX edificaram ao redor da mãe de Jesus e que perdura até hoje como alimento para a vida dos/as fiéis significou e ainda significa um jugo eterno sobre todas as outras mulheres que jamais serão ostentadas nos pedestais da santidade. Resta às mulheres a frustação de terem que se esforçar para corresponder a um protótipo inalcançável de mulher. É urgente a pesquisa bíblico-teológica ao redor de Maria, a mãe de Jesus, a fim de que ela seja redescoberta como mulher subversiva do seu povo, das tradições culturais, dos costumes religiosos e dos papéis socais do mediterrâneo antigo. Embora os textos neotestamentários não tragam muitas informações sobre esta mulher, as narrativas que se apresentam também não nos permite concluir sobre Maria e nem sobre todas as outras mulheres, que elas estão num lugar de passividade e anulação diante da vida.

Mesmo que ainda ecoe das cavernas da civilidade, dos que se elegeram para cargos políticos à custa dos discursos religiosos, como é o caso, lamentável, diga-se de passagem, do deputado Flavinho (PSB/SP) da Canção Nova, discursos perversos de retrocessos na compreensão e nos direitos das mulheres brasileiras, e mesmo que esses discursos estejam na boca dos que levianamente se declaram cristãos, não é Maria o modelo que fará alguns saudosos entoarem, ufanistas, o inesquecível samba da revista Veja: “Ai, meu Deus, que saudade da Amélia. Aquilo sim é que era mulher”.

*Tânia da Silva Mayer é Mestra e Bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje); Cursa Letras na UFMG. É editora de textos da Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Escreve às sextas-feiras.

Fonte: Dom Total

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