Por Tânia da Silva Mayer*
Como contraponto à imagem de
Maria está a de Eva, estigmatizada de ter sucumbido à sedução da serpente do
Éden e de ter levado Adão também à queda. E não é de hoje que a história
humana, fundada no éthos judeu-cristão, utilizou Eva para corrigir qualquer
mulher que ousasse ir contra os padrões, costumes e normas impostos em suas
sociedades. Assim, os ideais de uma santidade serviçal, inatingíveis como
veremos, foram contrapostos a uma imagem caracterizada da “puta”, sempre com
conotações sexuais. Nesse sentido, uma mulher, a fim de fugir dos estigmas
sociais das “putas”, preferirá (coagidamente?) acorrer aos altares das
“santas”, mesmo sabendo que são impossíveis de os alcançarem.
No segundo milênio da Igreja, dos
séculos XI ao XIX, há uma busca piedosa pela figura pessoal de Maria, a mãe de
Jesus, no interior da Igreja. Ela que havia sido abordada, pelas tradições
teológicas anteriores, numa perspectiva cristológica e eclesial, isto é, nas
suas relações com Cristo e a Igreja, é, agora, assediada de maneira
pessoalíssima, de modo que não importa mais sua relação com seu Filho e com o
corpo de Cristo, que é a Igreja, mas o seu mistério pessoal revelado como a
“Nossa Senhora”. Quando a teologia começa a acentuar a figura de Jesus Cristo
como o Juiz escatológico do rigorosíssimo juízo final, Maria aparece como lugar
de graça e perdão para todos os que se encontram “num vale de lágrimas”. Ela é
o consolo dos que, manchados pelo pecado, penam neste mundo e no outro as culpas
da vida errante que viveram.
É nessa época que Maria passa a
ser compreendida como a Rainha, “Mãe da Misericórdia”, “mãe clemente” rica em
doçura, “esperança nossa”, “advogada nossa”, “piedosa” senhora, “doce Maria”.
Ela é a soberana mulher, exemplo de mãe e esposa dedicada, virgem pura e fiel.
Note-se que com a ascensão do latim, com o clericalismo em altas e com o
afastamento do povo da liturgia, as devoções mariais proliferam juntamente com
as peregrinações aos santuários dedicados à Maria. A figura da mãe de Jesus
deixa, aos poucos, de ser a métrica para a Igreja e passa a ser a baliza para
todas as mulheres, e somente para elas. Estas deverão encontrar na jovem Maria
as inspirações necessárias para a sua vida. Elas deverão ser uma espécie de imagem
e semelhança da mãe de Jesus, não segundo o que narra-se sobre ela nos textos
evangélicos, mas a partir das imagens que os séculos do II milênio cristão
construíram a respeito de Maria: uma mulher cuja imagem demasiadamente
espiritualizada a eleva a uma espécie de sobrenaturalidade impossível de ser
atingida.
A exaltação dos atributos de
Maria, supracitados, promoveu uma fotografia bastante idealizada da mulher na
esteira da imagem da mãe de Jesus. A mulher perfeita deverá ser receptiva,
silenciosa, mãe zelosa, serviçal e virgem. Ao lado disso, a juventude, sinônimo
de beleza e ingenuidade, será prerrogativa cultivada por todas as mulheres que
sucederam Eva e que agora têm diante de si a imagem perfeitíssima de uma Nossa
Senhora a ser imitada. Dessa maneira, não pegará bem, ao longo da história, uma
mulher que desobedeça a regras, questione os costumes e se intrometa em
decisões. Nestes termos, a exaltação de Maria significou o rebaixamento de
todas as outras mulheres, que nunca terão condições de ser semelhantes à mãe de
Jesus. Entre Eva e Maria se encontram todas as outras mulheres, que poderão ser
associadas à Eva, mas que jamais serão associadas a “Nossa Senhora”. Maria é o
modelo a ser imitado pelas mulheres e, no entanto, ela é inimitável. Nesse sentido,
há somente dois destinos fatalistas para as mulheres: serem mães ou virgens.
Como é impossível ser mãe e virgem ao mesmo tempo, nenhuma mulher, por mais que
dedique toda a sua vida a Deus, alcançará um lugar de prestígio e santidade
como alcançou Maria.
Essa imagem que os séculos XI ao
XIX edificaram ao redor da mãe de Jesus e que perdura até hoje como alimento
para a vida dos/as fiéis significou e ainda significa um jugo eterno sobre
todas as outras mulheres que jamais serão ostentadas nos pedestais da
santidade. Resta às mulheres a frustação de terem que se esforçar para
corresponder a um protótipo inalcançável de mulher. É urgente a pesquisa
bíblico-teológica ao redor de Maria, a mãe de Jesus, a fim de que ela seja
redescoberta como mulher subversiva do seu povo, das tradições culturais, dos
costumes religiosos e dos papéis socais do mediterrâneo antigo. Embora os
textos neotestamentários não tragam muitas informações sobre esta mulher, as
narrativas que se apresentam também não nos permite concluir sobre Maria e nem
sobre todas as outras mulheres, que elas estão num lugar de passividade e
anulação diante da vida.
Mesmo que ainda ecoe das cavernas
da civilidade, dos que se elegeram para cargos políticos à custa dos discursos
religiosos, como é o caso, lamentável, diga-se de passagem, do deputado
Flavinho (PSB/SP) da Canção Nova, discursos perversos de retrocessos na
compreensão e nos direitos das mulheres brasileiras, e mesmo que esses
discursos estejam na boca dos que levianamente se declaram cristãos, não é
Maria o modelo que fará alguns saudosos entoarem, ufanistas, o inesquecível
samba da revista Veja: “Ai, meu Deus, que saudade da Amélia. Aquilo sim é que
era mulher”.
*Tânia da Silva Mayer é Mestra e
Bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje);
Cursa Letras na UFMG. É editora de textos da Comissão Arquidiocesana de
Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Escreve às sextas-feiras.
Fonte: Dom Total
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