A primeira vez que ouvi falar em
feminismo foi quando li, ainda bem jovem, a biografia da compositora Chiquinha
Gonzaga. Mulher porreta que, além de compor lindíssimas canções no piano, lutou
na campanha pelo abolicionismo e pelos direitos das mulheres, numa época em que
a maioria era recatada e do lar. Foi ela quem abriu alas para as mulheres
passarem.
Fiquei com aquilo na cabeça e
quando fui embora do Brasil, casado de pouco, pus em prática, em casa, os
primeiros passos do meu feminismo que aprendi com Chiquinha. Lavava, enxugava,
costurava, passava, varria e espanava.
Era um tempo em que poucas
mulheres dirigiam automóvel, quase nenhuma sentava numa mesa de bar pra beber
uma cerveja gelada e, quando chegavam as eleições, muitas vezes votavam no
candidato que o marido mandava.
Foi longe daqui que conheci
Simone de Beauvoir e seu segundo sexo. Que fiquei sabendo da luta de Angela
Davis em defesa das mulheres e dos negros nos Estados Unidos, que li Betty
Naomi Goldstein, a Beth Friedan, a mulher que estremeceu a América nos anos 70.
Foi longe daqui que vi mulheres
de punhos cerrados, saindo às ruas e ateando fogo em sutiãs em plena praça
pública.
Foi longe daqui que recebia,
todos os meses, os exemplares amassados e estropiados dos jornais Nós, Mulheres
e Brasil Mulher. Lia de cabo a rabo e me entusiasmava em debates empolgantes na
Casa do Brasil, em Paris, reduto dos estudantes e ponto de encontro de centenas
de exilados.
Depois vieram os filhos. Vivendo
num país sem babá e sendo apenas um rapaz latinoamericano sem dinheiro no
banco, aprendi a colocar a mão na massa.
Trocar fraldas, preparar a
papinha, dar a mamadeira, dar banho, cantar canções de ninar todas as noites e
sentar no chão para criar, com eles, cidades imaginárias feitas com toquinhos
de madeira.
Foi longe daqui que ouvi pela
primeira vez John Lennon cantando Woman is the Niger of the World e Luiz
Gonzaga tocando sanfona e cantando Mulher Rendeira: Tu me ensina a fazer
renda/que eu te ensino a namorar.
Foi longe daqui que ouvi Erasmo
Carlos cantando Sexo Frágil (Dizem que a mulher é sexo frágil/Mas que mentira
absurda) e Gilberto Gil cantando Super-Homem (Um dia vivi a ilusão de que ser
homem bastaria).
Foi longe daqui que lembrava,
naqueles noites frias de inverno, da ladainha que minha mãe rezava todos os
dias para as minhas três irmãs:
- Vocês precisam estudar, tirar
um diploma, trabalhar, ganhar dinheiro pra não depender de homem nenhum.
E deu certo. Uma virou
professora, outra psicóloga e a mais nova, advogada. Nunca vi nenhuma delas
pedindo dinheiro pro marido pra comprar sequer um alfinete.
Hoje, apesar da mulher dirigir
automóvel, beber cerveja gelada com as amigas na mesa de um bar e votar em quem
bem entender, sei que ainda existe um certo machismo no ar.
Tem homem que acha que mulher não
sabe dirigir, tem deputado que acha que mulher tem de ganhar menos que o homem
e que elas deveriam estar em casa, no tanque, ao invés de estar cuidando da
presidência da República.
Hoje, lembrei dessas historinhas
porque, sábado passado, estávamos num grande supermercado fazendo a compra do
mês e toda hora ouvia mulheres perguntando pros maridos:
- Amor, tem cebola lá em casa?
- Jorge, os sucrilhos dos
meninos, você sabe se acabou?
- Querido, como estamos de sabão
em pó?
Gostei do que ouvi e lembrei-me
daquela canção da Chiquinha Gonzaga, que falei lá no início da crônica: Ó abre
alas que eu quero passar/Eu sou da lira não posso negar/Eu sou da lira não
posso negar.
Gostei do que ouvi e lembrei-me
da continuação daquela canção do Gil, que falei lá no meio da crônica:
Minha porção mulher que até então
se resguardara
É a porção melhor que trago em
mim agora
É o que me faz viver.
Fonte: Carta Capital
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