Protesto na avenida Paulista, no dia 13 de maio. João Luiz Guimarães
As elites que apoiam o
impeachment ainda não compreenderam: seus privilégios continuarão a ser
contestados.Temer e seu ministério são um retrato que já nasce amarelado e que não representa o Brasil.Tanto o PT quanto aqueles que agora estão (ou continuam) no poder ainda não compreenderam a potência de 2013. A polifonia que ocupou as ruas naquele momento, para além de qualquer controle possível, segue nas ruas, apesar das bombas de gás da polícia. É essa a força simbólica dos negros e negras e negrex que se postaram diante da “Casa Grande Moderna”. Em legítima defesa.
Quem acha que é o fim da história ainda não entendeu que ela mal começou.
Primeiro ato: negros protestam contra o racismo diante da FIESP
Sexta-feira, 13 de Maio de 2016.
Avenida Paulista, vão do MASP (Museu de Arte de São Paulo), 12h30. Um grupo de
homens negros e de mulheres negras se organiza para marcar com um ato chamado
Em Legítima Defesa o momento do Brasil e os 128 anos da abolição da escravatura
no país. “O racismo é golpe”, diz o DJ e ator-MC Eugênio Lima. “Ele tira o
pertencimento de toda uma população em detrimento de outra.” Eugênio lembra que
os afrodescendentes são maioria no Brasil: “A população afrodescendente é 53%
da população brasileira”. Negros, negras e negrex – o termo transgênero --
representam a si mesmos no ato “no segundo dia do governo usurpador”. Cada um
deles levanta um cartaz. Caminham em fila até o que chamam de “Casa Grande
Moderna”: o prédio da FIESP, epicentro dos movimentos pelo impeachment da
presidente Dilma Rousseff, quartel-general dos verde-amarelos. Diante do
imponente edifício da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo,
postam-se um ao lado do outro e erguem suas frases em absoluto silêncio.
“USP sem cotas é golpe. Rota é
golpe. Meritocracia é golpe. Luana morta é golpe. Direita racista é golpe.
Feminicídio e hipersexualização da mulher negra é golpe. Ausência de negros nos
espaços públicos é golpe. Machismo é golpe. Eu ser suspeito é golpe. Teatro sem
negro é golpe. Blackface é golpe. Mulata é golpe. Me seguir no mercado é golpe.
Medo branco.” E a pergunta:
– Abolição é golpe?
Manifestantes protestam em frente
à sede da FIESP, na avenida Paulista. João Luiz Guimarães
Um dia antes, Michel Temer (PMDB)
havia tomado posse como presidente interino, após o afastamento da presidente
Dilma Rousseff (PT) pelo Senado, anunciando um “governo de salvação nacional”.
Compôs um ministério inteiramente branco e colocou como ministro da Justiça e
da Cidadania Alexandre de Moraes, ex-secretário de Segurança Pública do
governador Geraldo Alckmin (PSDB), relacionado por grande parcela dos
movimentos negros e dos ligados aos direitos humanos como o mais recente
responsável pela política de extermínio da juventude negra pela polícia do
Estado de São Paulo.
A cena perturba os motoristas no
trânsito lento da Avenida Paulista. Nas calçadas começa a juntar gente que
volta do almoço ou se dirige a algum restaurante. “Que bobagem, não tem racismo
no Brasil” e “Vão trabalhar, vagabundos!” são as frases mais ouvidas na plateia
espontânea. Ao meu lado, uma dupla de amigos para. Um deles diz, em tom bem
alto: “Não existe nada disso! Que frescura!”. Me apresento como jornalista e
pergunto: “Por quê?” Ele apresenta-se como José Batista Sobrinho, 76 anos,
médico oftalmologista, eleitor do PSDB. E responde:
– Esse racismo no Brasil não
existe. Quero dizer, racismo existe no mundo inteiro. Mas no Brasil não é
acentuado. Agora, por exemplo: você jamais se casaria com um preto.
– Por que o senhor acha isso?,
pergunto.
– Parece que é algo internamente
que você, como branca, não aceita. Porque você acha que essa raça é mais feia
que a sua raça. Mas não é por isso que você vai discriminá-los. É uma pessoa
igual a você. Frequenta a minha casa, frequenta a minha mesa, não tem problema
nenhum. É uma pessoa igual a mim. Mas eu não me casaria com uma preta.
– Por quê?
– Não gosto. Tem alguns
componentes que eu não gosto, coisas íntimas. Preferia uma pessoa diferente,
mais clara. Questão de afinidade, de empatia. Mas não é por isso que vou
discriminá-las.
José Batista Sobrinho.
– O senhor é a favor ou contra o
impeachment da presidente?
– É lógico que sou a favor. Ela
quebrou o país. A convulsão social taí. E quem é culpado disso é o PT. Não sou
contra o Bolsa Família. Mas tinha que ser Bolsa-Escola, como era no tempo da
Ruth Cardoso. Agora é Bolsa-Voto. Vou lhe dar o nome de uma cidade da Bahia que
não tem ninguém trabalhando, todo mundo com Bolsa Família. No Nordeste, você
não encontra uma doméstica pra trabalhar, porque tudo agora tem Bolsa Família.
Mas não sou de Direita, não, não aceito isso.
– Como o senhor se define?
– Sou um liberal correto.
Três jovens mulheres, duas
brancas e uma negra, observam o protesto. Os comentários são altos o suficiente
para que se possa ouvi-los: “Quero ver esses negões aí na hora de casar. Se vão
casar com essas negonas aí. Querem é brancas”. Risadas.
O grupo começa a repetir, alto,
as frases dos cartazes. Na calçada, um homem grita para os motoristas dos
carros: “Buzina! Buzina! Bu-zi-na!”. Quer que as buzinas abafem as vozes que
denunciam o racismo. De repente, berra, furioso, para uma mulher num carro:
“Enfia no cu, sua vaca!”.
Pergunto a ele por que disse
isso. Ele apresenta-se como Fábio Andrade da Silva, 46 anos, segurança. E
responde:
– Ela mostrou o dedo pra mim. É
falta de elegância, é petista, é maloquera.
– E o impeachment?
– Sou a favor! Tou acampado aqui
(na FIESP) há 58 dias.
– E o que acha dessa manifestação
contra o racismo?
– São tudo desempregado, tudo com
cargo comissionado do PT.
Fábio Andrade da Silva.
Faço uma foto dele. Ele comenta,
referindo-se às mulheres negras:
– Eu não vou gastar minha bateria
(do celular) pra tirar foto dumas mundrunga dessas aí.
– O que é mundrunga?
– Não sabe? Vá no dicionário que
vai saber.
E sai gargalhando com um amigo.
O grupo se retira em silêncio. E
volta para o MASP. Em legítima defesa.
Segundo ato: entrevista no vão do MASP sobre por que a FIESP é a
“Casa Grande Moderna”
O teatro tem sido um dos espaços
mais criativos (e contundentes) no questionamento do racismo que atravessa a
sociedade brasileira. Nos últimos anos tornou-se também um espaço de irrupção
das tensões raciais que por décadas foram encobertas por mitos como o da
“democracia racial”. O DJ e ator-MC Eugênio Lima, 48 anos, é um dos
protagonistas dessa cena com múltiplas vozes. Em 2015, ele foi o mediador do
debate realizado no Itaú Cultural após os protestos contra o uso de blackface numa
peça. O evento foi um ponto de inflexão na luta contra o racismo, ao questionar
os privilégios dos brancos nos espaços da cultura. Em Legítima Defesa surgiu a
partir de outra polêmica: a peça Exhibit B, o controverso espetáculo do
sul-africano Brett Bailey, que foi contestado como “racista” por parte dos
movimentos negros brasileiros, ao reproduzir cenas em que os negros eram
colocados em jaulas para exibição. Sua apresentação na Mostra Internacional de
Teatro de São Paulo acabou sendo cancelada, sob a alegação de “problemas de
custo”. Por não se sentirem ouvidos no debate, os atores que participariam da
produção criaram o Em Legítima Defesa e convidaram Eugênio para dirigi-los em
ações. Uma de suas performances aconteceu no Teatro Municipal de São Paulo,
símbolo cultural das elites paulistanas. A FIESP foi escolhida por ser
identificada como a “Casa Grande Moderna”
Eugênio Lima (à frente)
Pergunta: Quais são os
significados da escolha deste dia para o ato?
Resposta: A performance sobre a
Abolição já iríamos fazer. A ironia do destino foi que o dia 13 de maio
coincidiu com o segundo dia do governo usurpador. Essa ironia simbólica foi
invisibilizada. Talvez o gabinete desse presidente interino seja o mais próximo
de uma ação conservadora no Brasil desde 1964, e muito parecido com os
gabinetes conservadores da Monarquia. São todos homens, todos brancos, com uma
idade mais avançada, com vasto histórico sobre a política. Isso tudo foi
construindo mais camadas simbólicas para esse momento. Esse governo não tem
voto, não foi eleito pelo povo. Esse processo é um golpe político parlamentar.
P: Como você responde à pergunta
escrita no cartaz que você ergueu: “Abolição é golpe?”.
R: A Abolição é golpe no sentido
de que é apresentada como uma benesse do estado monárquico. A primeira coisa,
portanto, é (a necessidade de) desinvisibilizar o primeiro grande movimento de
massa deste país, que é o movimento abolicionista. A segunda coisa é que, ao
dizer livres afinal, seríamos livres para tudo. Com o passar do tempo, essa
ideia de liberdade vai sendo subtraída pela exclusão contínua. A política de
imigração, quando se incentiva a população europeia a vir para o Brasil, é onde
mais aparece a cara do Apartheid brasileiro. Foi um golpe na medida em que você
tem um país com a maior população escrava do mundo, você faz a Abolição da
escravidão e não existe nenhuma política de Estado para um problema que foi
criado dentro da concepção de Estado. Isso é golpe.
P: E hoje, você acha que a
Abolição já aconteceu?
R: A abolição é um projeto
incompleto. Só que os efeitos desse projeto incompleto estão no extermínio da
juventude negra, e este é um projeto muito nítido. Esse projeto é o eixo
fundamental de uma política de controle populacional, criada em simbiose com um
aparato jurídico-policial que está fundamentado em dois pontos centrais. Um
deles é o encarceramento em massa: o Brasil é a quarta maior população
carcerária do mundo e a única entre as quatro primeiras que continua a crescer.
Isso está baseado numa espécie de "naturalização do racismo", seja na
ideia de "suspeito cor padrão", seja na ideia de que
negro/homem/pobre é igual a ser "bandido". Estas são justificativas
para uma atuação diferenciada tanto da polícia quanto da justiça no que diz
respeito a negros e brancos no Brasil. Negros têm geralmente penas mais duras
do que os brancos, pelos mesmos crimes cometidos.
P: E o segundo eixo?
R: É o da “vida matável”. A
polícia vive a lógica de uma guerra, seja contra o crime, seja contra as
chamadas "classes perigosas". Ou seja, a polícia combate um inimigo
comum, com táticas de guerra e aparatos de segurança importados de outros
países, principalmente países que vivem guerras contra populações determinadas,
como por exemplo o estado de Israel. Nessa lógica, é preciso se perguntar: quem
é a população negra, pobre e periférica? É a população civil do exército
inimigo. Uma vida matável é uma vida dispensável. Mas, como o racismo
internalizado nas corporações policiais é sistêmico, essa lógica atravessa o
tratamento de todo negro/negra, independentemente de sua classe social. É como
se ser negro/negra fosse uma “espécie de sujeito a ser combatido”. E isso tem
lastro no comportamento social, que, de maneira geral, tenta negar a existência
de racismo. Isso é o que a professora Vera Malaguti Batista (socióloga que
pesquisa o tema da criminalidade no Brasil contemporâneo) define como
"Medo Branco": a ideia dessa conflitividade óbvia, de que um dia o
país, que é majoritariamente negro, vai se insurgir, de que um dia haverá um
grande conflito social se o "morro descer". E isso só pode ser
evitado com uma dura e mortífera política de controle. Daí a nitidez do projeto
de extermínio da juventude negra. O genocídio da juventude negra é real e
imenso, mas o senso comum trata como se fosse uma exceção, uma anomalia – e não
uma política.
P: Qual é a sua análise sobre o
fato de o ministério de Temer não ter um único negro?
R: É uma mimese. Não só não ter
um negro, como não ter uma mulher. Assim como suprimir, colocar sob a égide do
Ministério da Justiça os Direitos Humanos e a Igualdade Racial. (Temer
extinguiu o Ministérios das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos
Humanos e colocou tudo sob o guarda-chuva de um Ministério da Justiça e da
Cidadania). Esse governo é ilegítimo até nisso. O país é signatário de tratados
em Direitos humanos, o país é signatário de tratados de Combate ao Racismo. Não
é uma coisa que eu, como governante, posso decidir, mas uma política de Estado.
E, como política de Estado, independe de quem está no governo.
P: Por que você diz que a FIESP é
a Casa Grande?
R: É a Casa Grande Moderna. Ela
representou um projeto que é, numa ponta, a subtração de direitos constituídos,
na medida em que essa pauta nunca passou pelo crivo eleitoral. Essa é a
primeira coisa. Não é uma pauta do conjunto da população. Assim, só pode ser
feita na surdina. A segunda coisa é que ela agiu de maneira clara e nítida
incentivando ações fascistas. Insultando, racializando o discurso, diminuindo.
E utilizou recursos que são públicos para financiamento de ações constituídas
dentro do âmbito privado, como no financiamento dessas passeatas (a favor do
impeachment). Esse jeito é o jeito da Casa Grande. Eu não estou chamando a
FIESP de Casa Grande apenas porque são os herdeiros dos escravocratas. Mas por
causa da lógica da Casa Grande. A Casa Grande organiza a sociedade, organiza o
Estado à sua semelhança. O que era a Casa Grande? A Casa Grande era a Igreja, a
Casa grande era o hospital, a Casa Grande era o Estado, a Casa Grande era tudo.
A Casa Grande é onde tudo orbita. Essa é a metáfora do que essas forças
reunidas em torno da FIESP fizeram neste momento histórico. Um momento análogo
ao de 1964, já que a FIESP já fez isso antes, porque o golpe de 1964 foi civil,
além de militar.
P: Qual é a importância da
denúncia do racismo neste momento?
R: O racismo tem que ser uma
pauta transversal, porque ele desmascara todas as relações. O racismo é aquilo
que não pode ser dito. Quando você coloca que essa meritocracia é baseada no
status racial, você vai começando a colocar por terra um monte de coisas. Que
esses privilégios constituem uma espécie de golpe no direito de todo mundo,
porque (o branco) já nasce com esses privilégios que estão constituídos no
nível de cultura do país, embrenhados nos hábitos. Então, (o branco) tem uma
vantagem adaptativa muito grande. Você vê como a ação coercitiva dos braços
armados do Estado são violentos com a população negra do país. Assim, se
invisibiliza um dado que jamais poderia ser invisibilizado, o de que somos um
dos países que mais mata a sua juventude.
P: O que você achou da escolha do
novo ministro da Justiça e da Cidadania, Alexandre de Moraes?
R: Eu acho muito ruim que uma
pessoa que se dirija a movimentos sociais como “guerrilhas” seja ministro da
Justiça de qualquer país. Eu acho ofensivo ao conjunto da população brasileira
um ministro da Justiça que condecora policiais que agrediram estudantes
secundaristas. Um ministro da Justiça que acha que Política é Polícia.
P: O que fazer diante disso?
R: Esse é o momento em que a
juventude negra e a multiplicidade da presença negra na sociedade precisam
lutar de todas as maneiras pela desinvisibilização dessas questões. Uma das
coisas mais cruéis dessa história é a ideia de que a reorganização das elites
pode dar o tom de todas as questões. Como se a nossa história fosse uma
sequência de reorganizações das nossas elites. Como se não existisse uma outra
historia possível que não seja essa. É um momento muito triste. Por isso é o
momento de constituirmos vocabulário político, mas sobretudo poético. Porque
encaro isso como uma narrativa, que utiliza todos os seus símbolos para
constituir o senso comum. E como o racismo é transversal, assim como o machismo
é transversal, eles são capazes de desvelar essa narrativa.
P: E as imagens?
R: As imagens são muito potentes.
Você olha o ministério e diz: “Caramba, mas só tem homens? E brancos? E muito
velhos?”. Não que a idade seja um problema em si, mas eles são a cara de uma
maneira de fazer política. São figuras calcadas numa série de questões que
representam interesses coorporativos muito nítidos. Uma pauta que não foi nem
eleita, que sequer passaria pelo crivo das ruas, que sequer passaria por uma
eleição para governador. Só pra lembrar: o presidente da FIESP tentou essa
pauta no governo do estado de São Paulo (nas eleições de 2014, Paulo Skaf era o
candidato do PMDB). E nem isso ele conseguiu. Nem a unanimidade dentro da
própria Direita. Então, este é um governo ilegítimo e é um governo usurpador.
E, neste sentido, é tão claro, e é claro mesmo, é branco, que até as forças do
capitalismo reconhecem que esse processo é questionável.
Terceiro Ato: reflexões sobre o
governo que se inicia com as bênçãos de Sarney e de Malafaia
O período democrático que se
seguiu à ditadura civil-militar no Brasil foi chamado de “Nova República”. É
possível que tenha se encerrado. É preciso encontrar um nome para denominar o
período ainda indefinido do governo de Michel Temer (PMDB), iniciado em 12 de
maio, após o afastamento da presidente Dilma Rousseff pelo Senado. Como nomear
esse momento, ao mesmo tempo novo e velho, na trajetória do país, é algo em
disputa. Encontrar esse vocabulário próprio, plural, como já escrevi aqui e
como é tão bem dito por Eugênio Lima, faz parte dos desafios do atual cenário.
É com políticas culturais que um país constrói voz própria. Como se sabe, Temer
extinguiu a pasta da Cultura.
Michel Temer, rodeado de
ministros e políticos, ao tomar posse como presidente interino no dia 12 de
maio, em Brasília. Felipe Dana/AP Photo
A imagem do ministério de Temer
produz estranhamento. É como um retrato que já nasce amarelado. Só brancos, só
velhos, só homens. Nenhuma mulher, nenhum negro. Esse retrato é uma imagem
poderosa porque não representa o Brasil atual. É também uma mensagem poderosa.
Apesar de mencionarem muito o “futuro”, o que interessa a Temer e seus aliados
para seguirem garantindo apoio é afirmar o passado. A mensagem gerada pela
escolha do ministério reafirma a ideia de que o Brasil voltou a uma espécie de
ordem estabelecida. E há até setores que podem comemorar esse feito, como se de
fato se tratasse apenas de um retorno ao que sempre foi e jamais deveria ter
deixado de ser. Mas, para compreender essa fotografia, é preciso entender que
simplesmente voltar já não é possível.
Temer e as forças que protagonizaram
esse momento podem até acreditar que dá para voltar ao passado que representam,
mas se equivocam. Não dá para retornar ao Brasil pré-cotas raciais, ao Brasil
antes do #meuprimeiroassédio, ao Brasil antes do Bolsa Família e do
protagonismo das mulheres chefes de família, ao Brasil em que os mais pobres
aceitavam não ter acesso ao consumo, ao Brasil em que pobre não chegava à
universidade, ao Brasil em que estudantes de escolas públicas aceitavam calados
serem violados em seus direitos mais básicos. Essa ideia pode até ser
acalentada por Temer e pelas forças que permitiram que ele assumisse o poder.
Mas é desejo, não fato.
A ideia de que as elites podem
escrever toda a história do país, e reescrever, e suprimir capítulos, e dizer
qual é a narrativa que vai preponderar sobre todas as outras não se sustenta no
Brasil do presente. O ato dos negros, negras e negrex diante da FIESP é uma
pequena grande cena. Os exemplos irrompem em todos os cantos. Quem acredita que
as forças criativas que emergiram em 2013 podem ser silenciadas é um mau leitor
do momento histórico. E isso vale para os antipetistas e vale também para os
petistas. Os movimentos sociais agora são outros. E se lançam com palavras
novas – e próprias.
Há muito de velho e há também
algo novo no ministério de Temer, como uma imagem desse pacto de elites. Há
pelo menos um investigado pela Lava Jato, Romero Jucá (PMDB). E um sobre o qual
há dois pedidos de inquérito, Henrique Alves (PMDB). Há Alexandre de Moraes
(PSDB), um ministro da Justiça que condecora policiais que espancam estudantes
adolescentes. Há um ministro da Agricultura, Blairo Maggi, que mudou do PR para
o PP para garantir seu nome para o ministério. Maggi, conhecido como “o rei da
soja”, já foi o vencedor do prêmio “Motosserra de Ouro”, dado pelo Greenpeace,
em reconhecimento à sua colaboração para a destruição do meio ambiente. Há
Osmar Terra (PMDB), defensor ferrenho de uma política de drogas comprovadamente
ultrapassada, ligada ao extermínio da juventude negra e ao encarceramento
massivo dos mais pobres. Há vários que estiveram com Dilma Rousseff até a
véspera, como Gilberto Kassab (PSD) e Leonardo Picciani (PMDB). E mesmo os mais
jovens são herdeiros de velhos clãs ligados ao PMDB, como Sarney e Barbalho,
entre outros. “Notáveis” não há. Mas, como se viu, há notórios.
Mas também há algo que parece
velho, mas é novo. Porque não é novo apenas aquilo que achamos que deve ser.
Trata-se do bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcos
Pereira (PRB). Se há algo pouco compreendido e investigado no Brasil é o
crescimento das igrejas evangélicas no país. Primeiro, colocam-se todas na
mesma caixa, e elas são bem diferentes entre si. O espectro é amplo. As que
mais têm crescido não representam um projeto religioso. O que representam é um
projeto econômico e, principalmente, político. É aí que mora o perigo. Marcos
Pereira é o arquiteto que fez o PRB, partido ligado à Igreja Universal e à TV
Record, duas frentes da mesma construção política, ganhar musculatura no
Congresso. É urgente que se compreenda melhor o crescimento de algumas igrejas
evangélicas no país e seus respectivos projetos de poder para que se entenda o
país. Vale a pena perceber também que a Igreja Católica, outrora tão ativa na
política brasileira, teve pouca ressonância no desfecho que levou Temer ao
poder.
Há dois atos de Temer que têm
grande força simbólica para a compreensão do pacto instalado no Planalto. No
dia da votação do impeachment no Senado, 11 de maio, ele só deixou o Palácio do
Jaburu, onde parlamentares vinham lhe beijar a mão, para beijar uma mão mais
poderosa que a dele, a de José Sarney, esse personagem que atravessa a ditadura
e a redemocratização. As digitais de Sarney estão por toda parte, em especial
no setor elétrico do país. Isso é velho. E forte.
No dia seguinte, após a posse
como presidente interino, Temer recebeu a bênção de Silas Malafaia, o mais
truculento líder evangélico do país, e rezou com expoentes da bancada
evangélica, como o pastor e deputado Marco Feliciano (PSC), cuja atuação nefasta
dispensa apresentações. Isso é novo. E forte. É preciso decodificar essas duas
cenas com mais profundidade do que temos feito.
A imagem de um Lula alquebrado,
quase distraído, ao lado de Dilma Rousseff, durante o discurso de despedida
diante do Planalto, dá margem a muitas interpretações. Lula não disfarçava.
Talvez porque não quisesse, talvez porque já não pudesse. Seu rosto estava
devastado. Era um fim. Independentemente do que vai acontecer com Dilma e
principalmente com o PT nos próximos meses, e que está longe de estar dado, ali
havia um fim. Se este final significar uma autocrítica feroz do PT sobre suas
escolhas no poder, não só o campo das esquerdas ganha, como o país.
Para citar apenas uma cena desse
longo e acidentado roteiro: foi Eduardo Cunha quem peregrinou pelas igrejas
evangélicas a serviço de Dilma Rousseff e do PT na campanha eleitoral de 2010,
assegurando aos pastores que a então candidata era contra o aborto. Naquele
momento, o PT rifou uma de suas bandeiras históricas em troca do voto religioso
e dos aliados de ocasião. Cunha, obviamente, sempre esteve a serviço apenas de
si mesmo. Este é um momento emblemático. E é apenas um. Há que se passar a
limpo todos eles.
Há que se passar a limpo a tal
das escolhas feitas em nome da palavra mais horrenda do léxico político
recente: “governabilidade”. A única saída digna para o PT é enfrentar as
contradições e fazer autocrítica. Mas não parece que seja isso que vai
acontecer. Mais uma vez. É bem mais fácil ser apenas vítima. E também mais
conveniente para 2018. Mas já era tempo de entender que o mais conveniente e
mais fácil custa caro logo ali.
Quem briga com os fatos sempre
acaba perdendo em algum momento. Se Dilma foi afastada e o PT encontra-se nesse
buraco é também por escolher desviar das contradições – ou mesmo encobri-las. E
isso vale também para as esquerdas que preferiram fazer de conta que era
possível perdoar o imperdoável, como Belo Monte. E que continuam a fazer de
conta, deixando esse campo desorganizado e abrindo um vazio que logo será
ocupado, sabe-se lá pelo quê.
O rosto devastado de Lula, ao
lado de uma Dilma em seu derradeiro discurso, e a cena do ministério de Temer,
com papagaios de pirata como Aécio Neves (PSDB), evocam também uma interrogação
sobre quem são os profissionais do ramo. Parte das elites bajula Lula desde que
ele era um líder sindical do ABC, vale rever a cena do Gallery, em 1979, quando
Lula vai jantar na boate dos ricos a convite da revista Manchete. Na campanha
de 2002, ele desfilou em terno Armani pelos salões da elite paulistana abertos
por Marta Suplicy, que sabemos bem o que fez nos verões passados e o que faz
hoje. Assim como pelo casal Eleonora Mendes Caldeira e Ivo Rosset. Era o
operário que chegou ao paraíso.
Dali em diante Lula gostou cada
vez mais dessa bajulação dos salões. E o mesmo vale para muitos do PT. Em algum
momento, eles acharam que eram os donos da bola desse jogo viciado, sem
perceber que eram observados de perto – e com algum divertimento – por cartolas
tão velhos quanto o diabo. Na política, no empresariado, na justiça. E Lula
acreditou que era mesmo um ungido, bastando abrir a boca para chamar as massas
para si, enquanto cada vez mais se distanciava delas também na produção
simbólica de imagens.
Tudo indica que Lula e o PT não
compreenderam por completo a complexidade do jogo e a fragilidade do seu lugar
nele. Escolheram jogar o jogo do adversário e abriram mão de questionar as
regras, achando que podiam seguir ganhando. Dilma, por sua vez, provou-se um
dos maiores equívocos de Lula, até então famoso por sua intuição política. Até
(quase) o final acreditaram que podiam virar a partida decisiva. A ironia maior
é o fato de que quem ficou ao lado de Lula, Dilma e o PT foi a torcida a qual
tinham virado as costas ao rifar bandeiras históricas.
Lula acreditou que era o dono da bola e descobriu que a bola nunca
foi de fato dele
A face devastada de Lula contém
muitos significados. Um deles pode ser decodificado como o rosto entre a
surpresa e a mágoa do menino que achava que para sempre seria o dono da bola.
Mas descobriu que nunca foi de fato o dono da bola. O sorriso de escárnio dos
ministros de Temer e de seus apoiadores, a expressão de euforia mal contida do próprio
Temer, pareciam dizer: “Tolinhos, os profissionais agora vão cuidar de tudo”. É
a arrepiante volta dos que nunca foram.
Houve um momento em que o PT
poderia ter mudado o jogo. E não mudou. Não é possível seguir acreditando que
tudo o que aconteceu foi por que o PT mudou o jogo. O impeachment se tornou
viável exatamente pelo motivo contrário: porque o PT não mudou o jogo no
principal. E essa é a parte incontornável.
Mas a história não está dada. O
Brasil não é o que era. O passado não volta. O lema positivista “Ordem e
Progresso”, que Temer pegou emprestado da bandeira, como lembrou o escritor
Sérgio Rodrigues em artigo no jornal O Estado de S. Paulo, já era conservador
quando proclamaram a República, no final do século 19. Em entrevista exclusiva
ao Fantástico, programa da TV Globo, no domingo, 15 de maio, Temer respondeu
que um dos legados que gostaria de deixar é “a pacificação do Brasil”.
A “pacificação” proposta por
Temer é cada um voltar a ocupar seu lugar racial e social como se essa fosse a organização
natural das coisas. A “pacificação” de Temer é paz apenas para alguns. A esse
desejo de retorno da velha ordem das elites e do progresso para os mesmos de
sempre contrapõe-se hoje a frase poderosa, quase um mantra, escrita em um dos
cartazes levantados na Paulista na performance dos ativistas negros: “Se a paz
não for para todos, ela não será para ninguém”.
Tanto o PT quanto aqueles que
agora estão (ou continuam) no poder ainda não compreenderam a potência de 2013.
A polifonia que ocupou as ruas naquele momento, para além de qualquer controle
possível, segue nas ruas, apesar das bombas de gás da polícia. É essa a força
simbólica dos negros e negras e negrex que se postaram diante da “Casa Grande
Moderna”. Em legítima defesa.
Quem acha que é o fim da história
ainda não entendeu que ela mal começou.
Eliane Brum é escritora, repórter
e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da
Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus
Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email:
elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum
Fonte: El Pais
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