Há uma tragédia humanitária em
curso cujas vítimas são as mulheres nordestinas e rurais. Há meses deixamos de
falar da epidemia. É como se não houvesse mais o espanto com os números da
vigilância epidemiológica: são quase 7 mil crianças notificadas com microcefalia
ao nascer, mais de mil delas com diagnóstico confirmado para a síndrome
congênita do zika. São números aterrorizantes, mas as histórias individuais
devem nos indignar pela injustiça que carregam.
Por Débora Diniz
Géssica e Conceição vivem em uma
cidade miúda da Paraíba, Juazeirinho. A região é do Seridó, nem tanto o Cariri
ou o Sertão. Em 2015, as duas tiveram zika durante a gravidez e se atormentaram
pela saúde dos filhos que esperavam. Géssica guarda o enxoval do filho morto.
Conceição cuida da filha nascida com a síndrome congênita do zika, conjunto de
problemas visuais, auditivos e neurológicos que vão além da microcefalia.
Géssica e Conceição foram as primeiras mulheres a doar-se para a ciência. Se,
hoje sabemos que o vírus zika causa essa síndrome congênita, um passo decisivo
para esta descoberta foi dado pela solidariedade dessas duas mulheres.
Conheci Géssica para o
documentário Zika, filme em que conto a história de cinco mulheres
sobreviventes da epidemia em cantos remotos da Paraíba. Elas chegam aos montes
para o já conhecido ambulatório de microcefalia do Hospital Pedro I em Campina
Grande. A sala de espera das breves sessões de estimulação precoce reúne
crianças resmungando, cansadas da viagem, e mulheres conversando sobre o
impacto do zika em seus filhos. É um ambiente sempre carregado de muita
angústia. A cada mês surge uma nova inquietação sobre os sinais e sintomas da
doença: algumas crianças apresentam convulsões, outras não parecem enxergar ou
ouvir bem. Aquilo que antes era "só a microcefalia" passou a ganhar
corpo como uma "síndrome do zika".
Antes de chegar na Paraíba, o
zika era mais um vírus transmitido pelo mosquito que já faz parte da história
do Brasil há muito tempo, o Aedes aegypti. Há quarenta anos convivemos com a
dengue como parte de nossa vida. Avós e mães das mulheres agora com zika
sentiram as dores da dengue ou do chikungunya. Sou nordestina de origem e
conheci mosquiteiro como sinônimo de incômodo do sono na infância. Mas a tragédia
da epidemia do vírus zika vai muito além do mosquiteiro, da bacia de água
parada do vizinho, das camisas de manga longa ou do repelente. É sobre mulheres
angustiadas com a maternidade.
Há uma tragédia humanitária em
curso cujas vítimas são as mulheres nordestinas e rurais. Há meses deixamos de
falar da epidemia. É como se não houvesse mais o espanto com os números da
vigilância epidemiológica: são quase 7 mil crianças notificadas com
microcefalia ao nascer, mais de mil delas com diagnóstico confirmado para a
síndrome congênita do zika. São números aterrorizantes, mas as histórias
individuais devem nos indignar pela injustiça que carregam. Alessandra casou-se
aos 11 anos, tem quatros filhos e o mais novo, Samuel, nasceu com a síndrome do
zika. O marido de Alessandra é auxiliar de pedreiro e os dois vivem na pobreza,
desamparados pelas políticas sociais. No documentário, Alessandra esbanja
maternidade, mas conta que pensou em "colocar ele para fora" quando
recebeu o diagnóstico da doença.
O contato com essas mães me fez
entender que os mosquitos são os vetores desta tragédia, mas as maiores vítimas
são as mulheres. Não há ainda tratamento ou vacina para o vírus zika e sabemos
pouco sobre as formas pelas quais o vírus opera para fragilizar o feto. O que
sabemos, no entanto, é mais do que suficiente para afirmarmos que há direitos
violados por esta epidemia esquecida. As mulheres se angustiam quando grávidas,
algumas fogem do pré-natal para evitar um sofrimento inevitável e outras
sobrevivem como cuidadoras de recém-nascidos dependentes.
Dar visibilidade à luta diária
dessas mulheres foi uma das razões que me fizeram ir à Paraíba filmar Zika. O
documentário segue comigo nesta semana para Copenhague, Dinamarca, onde
participo da Conferência Women Deliver 2016. Maior encontro da década para
discutir questões de planejamento familiar, saúde materna e infantil e direitos
sexuais e reprodutivos, o Women Deliver reúne mais de 5 mil líderes mundiais,
gestores públicos, ativistas e jovens de 150 países.
Para mim, a Conferência será mais
do que uma plataforma para compartilhar os desafios enfrentados por essas
mulheres. Será também a chance de explorar lições aprendidas e possíveis
soluções para os problemas que vi na Paraíba. Para além do controle de vetor,
garantir acesso a informação sobre direitos sexuais e reprodutivos das mulheres
será primordial no combate à epidemia. Grávidas ou mães, essas mulheres se
mantêm à espera de que o Estado brasileiro e a sociedade as reconheçam como as
principais vítimas da epidemia.
Fonte: Brasil Post
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