Dentre tantas informações
desencontradas que ainda marcam as narrativas sobre a epidemia do zika vírus no
Brasil uma é fato: mulheres jovens, pobres e negras constituem a parcela mais
vulnerável desta crise.
Pesquisa da Secretaria de
Desenvolvimento Social, Criança e Juventude de Pernambuco apurou que 77,7% das
mulheres que deram à luz a bebês com a síndrome congênita do zika no Estado
estão abaixo da linha da pobreza. Junta-se a essa informação o dado do
Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) que aponta que 73,7% das
mulheres negras brasileiras são pobres. Também sabe-se que é nas periferias das
grandes cidades – com toda a precariedade de saneamento básico, coleta de lixo
e fornecimento de água – que a infestação do mosquito transmissor do vírus é
endêmica.
A despeito disso, as mulheres
negras seguem retratadas à margem, como afirma Jurema Werneck, médica, doutora
em comunicação e coordenadora da ONG Crioula. “A epidemia de zika adoece
qualquer pessoa, mas isso em tese. Na prática, atinge de forma mais impactante
as mulheres que experimentam as maiores vulnerabilidades, que são as jovens
negras. E boa parte das narrativas, seja na mídia, seja na saúde, não dá
visibilidade a esse dado.”
Fernanda Lopes, representante do
Fundo de Populações das Nações Unidas (UNFPA) no Brasil, compara o momento
atual ao do fim da década de 80, quando surgiu a Aids, e salienta a diferença
na ação do Estado e na visibilidade da população atingida. Para ela, respostas
rápidas foram dadas naquele momento justamente porque os primeiros atingidos
eram homens, brancos e com alta escolaridade. “Esse é o momento de fazer a
diferença e trazer essas vozes para o centro da cena política.”
A representante do UNFPA ressalta
a necessidade de trazer as mulheres negras para o centro do debate, ainda que
tardiamente, uma vez que a própria epidemia é produto deste silenciamento e
negação de direitos. “O que vemos agora é um resultado, porque o direito dessas
mulheres é subestimado e subvalorizado desde sempre. Por isso é tão importante
dar a essas pessoas voz, para surgirem as possibilidades de resposta”, afirma.
A avaliação das especialistas é que a partir da fala dessas mulheres é que
serão encontradas as respostas efetivas para a epidemia: o direito a cidades
saudáveis, coleta de lixo, água encanada, entre outras.
Racismo institucional
Embora haja pelo menos um dado
estadual sobre a condição socioeconômica dessas mulheres, não é possível saber
quantas delas são negras. As fichas de notificação do Ministério da Saúde
sequer recolhem o dado raça/cor das vítimas. Ainda que existam determinações do
Sistema Único de Saúde (SUS) que obriguem a copilação destes dados, dentro da
Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, o protocolo específico
de enfrentamento da epidemia de zika ignora a necessidade deste detalhamento
nas notificações.
A falta de dados precisos sobre
como as mulheres negras são afetadas
pela epidemia escancara o racismo institucional que permeia suas vidas. Mas
além de ignorar as necessidades específicas de ação neste grupo social, o poder
público ainda sugere ações que ignoram a realidade em que vive essa população
vulnerável. Exemplo disso é a comunicação oficial, que no auge da epidemia
orientava mulheres grávidas a usarem repelentes e roupas compridas, ignorando
os custos do produto e a realidade do clima onde elas vivem.
“O racismo institucional faz com
que, por exemplo, o sistema de saúde pense uma ação, mas não pense que as
pessoas mais vulneráveis precisam de uma resposta inicial primeiro e mais
contundente. É impossível dizer para uma mulher negra, favelada, desempregada,
cuidando de várias pessoas na sua família, para passar repelente, que custa R$
25. Impossível convencer uma mulher jovem, na periferia do Recife, a usar burca
nas ruas da favela. Isso é um absurdo. Este raciocínio fala para outra
realidade, que não é a realidade dessas pessoas, que são pessoas negras que
merecem atenção”, critica Jurema.
Além do racismo institucional
impregnado na comunicação e nas ações públicas de combate à epidemia, há uma
recorrente culpabilização da mulher que está exposta aos riscos de contrair a
zika, uma vez que toda a estratégia coloca nas mãos das mulheres, e não do poder
público, a responsabilidade pela exterminação do mosquito e o controle do
contágio: da limpeza dos vasos de plantas e quintais, ao uso de repelentes e
roupas compridas. Para Jurema, o subtexto disso é: se a epidemia está
acontecendo é porque a mulher não fez a faxina. Isso é culpabilização. “E se
ela adoeceu, ela não fez a faxina. Se o bebê dela nasceu com microcefalia, ela
não fez a faxina. Isso é cruel, é irresponsável, é leviano e racista.”
Isabel Clavelin, assessora de
comunicação da ONU Mulheres, afirma que antes de mais nada é preciso recuperar
o direito básico da comunicação para que as mulheres possam estar em primeiro
plano na epidemia de zika vírus. Falta ainda uma real articulação entre a
Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher e a Política Nacional
de Saúde Integral da População Negra. Segundo ela, em suas pesquisas de campo,
pouco ou nada tem se falado dessas políticas nas ações de enfrentamento da
epidemia e na assistência das mulheres grávidas ou mães de bebês com a síndrome
congênita.
O que fazer?
A primeira ação para trazer as
mulheres negras para o debate é dar voz a elas, que precisam ser ouvidas pela
mídia e pelo poder público. “Mas não são todas as mulheres grávidas nem toda a
população que está experimentando a maior parte da tragédia”, afirma Jurema.
Para a médica, é fundamental reivindicar que as mulheres que são de fato mais
vulneráveis possam vocalizar, sendo as interlocutoras da mídia e do sistema de
saúde para falar quais são as suas necessidades em relação à epidemia.
Jurema Werneck afirma ainda que
mídia e poder público precisam sair dos números e ir para a vida real, para
rua, pois é lá que estão as mulheres angustiadas com a doença ou com a
possibilidade de contraí-la. Esse diálogo, porém, não deve ser para estigmatizá-las
ainda mais e retratá-las como sempre, como quem sofre as desgraças. “É preciso
buscar essa mulher negra jovem para dizer como ela pensa essa epidemia e como
pensa os caminhos para sua própria proteção. A gente não tem que esperar a
angústia e a tragédia, a gente pode chegar antes e ajudar a construir uma
resposta mais eficiente. Tem que ir onde ela está.” O Brasil tem 60 milhões de
mulheres negras. É uma Colômbia inteira ou 27 vezes a população da Jamaica,
compara Jurema. “Não é pouco para ser silenciado”, finaliza.
Fonte: Patrícia Galvao
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