sexta-feira, 16 de julho de 2010

Por que os homens matam as mulheres




Muitos dos chamados crimes passionais são o sintoma do declínio do império patriarcal. A violência não é só de loucos, monstros, doentes. E pouco importa o contexto social: não se aceita a autonomia feminina.

 


A opinião é de Michela Marzano, filosofa italiana, doutora em filosofia pela Scuola Normale Superiore di Pisa e atual professora da Universidade de Paris V (René Descartes). O artigo foi publicado no portal do jornal La Repubblica, 14-07-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 




Eis o texto.

 


Eles continuam sendo chamados de crimes passionais. Porque o motivo seria o amor. Aquele que não tolera incertezas e falhas. Aquele que é exclusivo e único. Aquele que leva o assassino a matar a mulher ou a companheira justamente porque a ama. Como diz Don José na obra de Bizet antes de matar a amante: "Fui eu que matei a minha amada Carmen".

 


Mas o que resta do amor quando a vítima nada mais é do que um objeto de posse e de ciúmes? Que papel ocupa a mulher dentro de uma relação doente e obsessiva que a priva de toda a autonomia e liberdade?


 

Durante séculos, o "despotismo doméstico", como chamava o filósofo inglês John Stuart Mill no século XIX, foi justificado em nome da superioridade masculina. Dotadas de uma natureza irracional, "uterina", e úteis somente – ou principalmente – para a procriação e para a gestão da vida domésticas, as mulheres tinham que aceitar aquilo que os homens decidiam para elas (e para o seu bem) e submeter-se à vontade do "pater familias".
 
 




Desprovidas de autonomia moral, eram obrigadas a encarnar toda uma série de "virtudes femininas", como a obediência, o silêncio, a fidelidade. Castas e puras, tinham que se preservar para o legítimo esposo. Até à renúncia definitiva. Ao desinteresse, substancialmente, pelo próprio destino. A menos que aceitassem a exclusão da sociedade. Serem consideradas mulheres de má vida. E, em casos extremos, sofrer a morte como punição.

 





As lutas feministas do século passado deveriam ter feito com que as mulheres saíssem desse terrível impasse e deveriam ter esmigalhado definitivamente a divisão entre "mulheres de bem" e "mulheres de má vida". Em nome da paridade homem/mulher, as mulheres lutaram duramente para reivindicar a possibilidade de ser, ao mesmo tempo, mulheres, mães e amantes. Como dizia um slogan de 1968: "Não mais putas, não mais santas, mas apenas mulheres!".








Mas as relações entre os homens e as mulheres mudaram verdadeiramente? Por que os crimes passionais continuam sendo considerados "crimes à parte"? Como é possível que as violências contra as mulheres aumentem e sejam quase transversais a todos os âmbitos sociais?






Quanto mais a mulher busca se afirmar como igual em dignidade, valor e direitos ao homem, mais o homem reage de modo violento. Só o medo de perder algumas migalhas de poder o torna vulgar, agressivo, violento. Graças a algumas pesquisas sociológicas, hoje sabemos que a violência contra as mulheres não é mais só o único modo em que um louco, um monstro, um doente pode se expressar. Um homem que provém necessariamente de um círculo social pobre e inculto.



O homem violento pode ser de boa família e ter um bom nível de instrução. Pouco importa o trabalho que ele faça ou a posição social que ocupe. Trata-se de homens que não aceitam a autonomia feminina e que, muitas vezes por fraqueza, querem controlar a mulher e submetê-la à sua própria vontade. Às vezes são inseguros e têm pouca confiança em si mesmos, mas, ao invés de procurar entender o que exatamente não vai bem em sua própria vida, acusam as mulheres e as consideram responsáveis pelos seus próprios fracassos. Progressivamente, transformam a vida da mulher em um pesadelo. E quando a mulher busca refazer a vida com um outro, procuram-na, ameaçam-na, batem nela, às vezes matam-na.







Paradoxalmente, muitos desses crimes passionais nada mais são do que o sintoma do "declínio do império patriarcal". Como se a violência fosse o único modo para evitar a ameaça da perda. Para continuar mantendo um controle sobre a mulher. Para reduzi-la a mero objeto de posse. Mas quando a pessoa que se ama nada mais é do que um objeto, não só o mundo relacional se torna um inferno, mas o amor também se dissolve e desaparece.

 



Certamente, quando se ama, se depende em parte da outra pessoa. Mas a dependência não exclui jamais a autonomia. Pelo contrário, às vezes é justamente quando somos conscientes do valor que uma outra pessoa tem para nós que podemos entender melhor quem somos e o que queremos.



Como escreve Hannah Arendt em uma carta ao marido, o amor permite que nos demos conta de que, sozinhos, somos profundamente incompletos, e que só quando estamos ao lado de uma outra pessoa é que temos a força para explorar zonas desconhecidas do nosso próprio ser.

 


Mas, para amar, é preciso também estar pronto para renunciar a qualquer coisa. O outro não está à nossa completa disposição. O outro faz resistência diante da nossa tentativa de tratá-lo como uma simples "coisa". É tudo isso que os homens que matam por amor esquecem, não sabem ou não querem saber. E que pensam que estão protegendo a própria virilidade negando ao outro a possibilidade de existir.