Reprodução do quadro Trasporto di
Gesù Cristo al Sepolcro, de Antonio Ciseri
“Durante os séculos iniciais do
Cristianismo, o tom libertador e afirmador de igualdade entre homens e mulheres
foi sendo paulatinamente abrandado, acomodando-se aos padrões discriminatórios
da cultura e da sociedade”, analisa a teóloga.
É numa sociedade patriarcal que
Jesus se insere e essa é uma das lógicas que tenta subverter. Esse Cristo
reformador quer mostrar que todos são iguais, elevando às mulheres atribuições
que eram dedicadas apenas aos varões. Para a professora do departamento da
Religião da Luther College, nos EUA, Wanda Deifelt, ainda está presente a
essência do protagonismo das mulheres em Cristo. Mas, ressalta: “durante os
séculos iniciais do Cristianismo, o tom libertador e afirmador de igualdade
entre homens e mulheres foi sendo paulatinamente abrandado, acomodando-se aos
padrões discriminatórios da cultura e da sociedade”.
Wanda explica que já no primeiro
século começaram as tentativas de “domesticação e confinamento da mensagem
libertadora”. “Paulo, por exemplo, incluiu como verdades de fé os assim
chamados códigos domésticos, ou seja, elementos da cultura da época que
definiam os papéis que homens, mulheres e crianças deveriam desempenhar”,
destaca. Estava posta uma primeira tentativa de apagar o protagonismo feminino.
Porém, lembra que “sempre houve mulheres que desafiaram as normas e os
ensinamentos que as definiam como seres física, moral e espiritualmente
inferiores”.
É nessas resistências que está a
figura de Maria Madalena, aquela que teve umas das experiências mais
reveladoras do Filho de Deus e que, mesmo assim, tem sua memória submetida a
interpretações misóginas. “Acusar alguém de uma falha moral deslegitima
qualquer autoridade e liderança que Maria Madalena pudesse ter tido. Ao invés
de ser lembrada como uma apóstola, ela é reduzida a uma pecadora arrependida”.
Mas isso parece começar a mudar.
Na entrevista a seguir, concedida
por e-mail à IHU On-Line, a professora traz novas leituras desde a Teologia
Feminista. “Ao invés de enfocar somente no ministério masculino, a Teologia
Feminista mostra que o seguimento a Jesus se dá através da solidariedade com
quem sofre, a partilha com quem pouco ou nada tem, a hospitalidade a quem
necessita e a aceitação de quem é excluído”.
Wanda Deifelt é brasileira,
luterana, possui graduação em Teologia pela Escola Superior de Teologia – EST,
de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Tem mestrado pelo Garrett-Evangelical
Theological Seminary e doutorado pela Northwestern Univesity, ambas na cidade
de Evanston, estado de Illinois, EUA. Atua como professora e coordenadora do
departamento de Religião da Luther College, na cidade de Decorah, estado de
Iowa, EUA. Trabalha com teologias contextuais, em especial teologia feminista.
Entre os temas que aborda estão Lutero e luteranismo, criação, cristologia,
direitos humanos e sexualidade. É autora de, entre outras obras, À flor da pele
- Ensaios sobre gênero e corporeidade (São Leopoldo: Sinodal, EST, CEBI, 2004).
Confira a entrevista.
Foto: www.luther.edu
IHU On-Line - Como a senhora compreende
a figura de Maria Madalena? Qual sua importância para a história do
cristianismo?
Wanda Deifelt - Maria Madalena,
ou Maria de Magdala (que era o nome da pequena cidade de onde Maria provinha),
era uma das seguidoras de Jesus e fazia parte de seu círculo de amigos e
amigas. A ela Jesus se revelou, primeiro, como o ressurreto e confiou a tarefa
de ir e anunciar que ele havia ressuscitado. Na tradição da Igreja, nos
primeiros séculos, Maria Madalena recebeu o título “apostola apostolorum”, ou
seja, apóstola dos apóstolos, pois ela anunciou aos discípulos que Jesus havia
ressuscitado.
O fato de Maria Madalena constar,
em todos os Evangelhos, como a líder que leva o grupo de pessoas ao túmulo
mostra a importância que ela teve na história da Igreja e na formação de muitas
comunidades cristãs no primeiro século. Os evangelhos apresentam nomes e
versões diferentes para o relato da descoberta da ressurreição de Jesus. Não
obstante, o nome de Maria Madalena sempre aparece.
Com o passar dos anos, no
entanto, o nome de Maria Madalena foi associado, erroneamente, ao de uma mulher
prosmíscua. É esta a imagem que aparece, por exemplo, em muitos quadros e obras
de arte. A identificação de Maria Madalena com a mulher pecadora de Lucas
7.36-50, no entanto, não tem fundamento. Aliás, esta associação aparece somente
em 591, em uma homilia do Papa Gregório [1], o Grande (540-604), que dizia ser
Maria Madalena uma prostituta arrependida.
Entretanto, essa interpretação
não é justificada biblicamente. O que está escrito é que de Maria foram
expulsos sete demônios (Lucas 8.1-3). Neste caso, como em toda linguagem
bíblica, estar possuída por demônios é estar extremamente doente, de um mal
recorrente e grave que não podia ser diagnosticado simplesmente como um
problema físico. Mas nada disto implica em que ela tenha sido uma prostituta,
como o Papa Gregório apregoava no século VI.
IHU On-Line - Em que medida a
figura da pecadora arrependida reduz a potência dessa personagem bíblica?
Wanda Deifelt - A liderança de
Maria Madadela, como seguidora fiel de Jesus e mensageira de suas palavras, foi
marcante nos primeiros anos do movimento de Jesus. Em um escrito apócrifo [2],
datado do século V e intitulado O “Evangelho de Maria Madalena” [3], há uma
passagem reveladora sobre o ministério desta mulher: “Eles ficaram tristes e
choraram muito. Disseram: ‘Como poderemos ir aos gentios e pregar-lhes o
evangelho do reino do filho do homem? Nunca foi anunciado entre eles. Devemos
nós anunciá-lo? Levantou-se, então, Maria, saudou a todos e disse-lhes: ‘Não
choreis, irmãos, não fiqueis tristes nem indecisos. A sua graça estará com
todos vós e vos protegerá. Louvemos antes a sua grandeza, por nos ter ensinado
e nos ter enviado aos seres humanos’. Falando deste modo, Maria os reanimou e
eles começaram a preparar-se para seguir as palavras do Salvador” (Evangelho de
Maria Madalena, papiro 8.502 de Berlim).
Além de celebrar a liderança de
Maria Madalena, este texto também revela a dificuldade que havia, nos primeiros
séculos, em aceitar mulheres líderes. Um dos fragmentos deste evangelho conta
que Pedro questionou a autoridade de Maria Madalena: “Diz Pedro: ‘Será que o
Senhor, perguntado a respeito destas questões, iria falar a uma mulher
ocultamente e não em público para que todos escutássemos? Por acaso quereria
apresentá-la como mais digna do que nós?”. Outro discípulo intervém e corrige
Pedro: “Tens sempre, ó Pedro, a cólera a teu lado e, ainda agora, discutes com
esta mulher, defrontando-te com ela. Se o Salvador a julgou digna, quem és tu
para desprezá-la?” (Evangelho de Maria Madalena, Fragmento de P. Rylands III
463). Mesmo que os textos apócrifos não tenham a mesma validade que os textos
bíblicos, eles nos informam sobre o ministério e atuação de uma mulher de
grande liderança.
Reduzida à pecadora
Assim, quando, em 591, o Papa
Gregório caracterizou Maria Madalena como uma prostituta arrependida, ele dava
início a um boato que passou a ser aceito como verdade. Acusar alguém de uma
falha moral (neste caso, sexual) deslegitima qualquer autoridade e liderança
que Maria Madalena pudesse ter tido. Ao invés de ser lembrada como uma
apóstola, ela é reduzida a uma pecadora arrependida. Dentro de um sistema
eclesiástico hierárquico e predominantemente masculino, é mais fácil (e
vantajoso) lidar com uma Maria Madalena humilhada e contrita do que com uma
Maria Madalena que é apóstola.
IHU On-Line - Quais as contribuições
de Madalena para a Teologia Feminista? E como compreender a Teologia Feminista,
enquanto forma de se atingir a compreensão plena do “ser cristão”?
Wanda Deifelt - A Teologia
Feminista possibilitou o resgate de personagens bíblicos e históricos, como
Maria Madalena. Isto possibilitou outras perspectivas – mais inclusivas e
justas – de discipulado. Ao invés de enfocar somente no ministério masculino
(baseado no modelo dos doze discípulos que Jesus havia selecionado), a teologia
Feminista mostra que o seguimento a Jesus se dá através da solidariedade com
quem sofre, a partilha com quem pouco ou nada tem, a hospitalidade a quem
necessita e a aceitação de quem é excluído. O amor de Cristo não se revela
através de um poder hierárquico, mas de um poder compartilhado, de serviço (mas
não de servitude).
Estas características ficam
evidentes no relacionamento que Jesus tinha com o grupo de amigas e amigos, com
quem mantinha um vínculo muito estreito. Em Lucas 8.1-3, por exemplo, lemos que
Maria Madalena era uma das mulheres que ajudava Jesus, prestando-lhe
assistência com seus bens. Ela era uma pessoa querida por Jesus e assim como
Marta, Maria, Suzana, Joana e muitas outras, era amiga de Jesus. Este círculo
de amigos e amigas muitas vezes estava mais próximo de Jesus do que os próprios
discípulos. Ao passo que os doze discípulos tinham uma relação mestre-estudante
com Jesus, a relação de Maria Madalena e seu grupo com Jesus era de amizade e
parceria. Este relacionamento afetivo é descrito, por exemplo, em João 11.5:
“Ora, amava Jesus a Marta, e a sua irmã e a Lázaro”.
Fiéis até o fim
Como boas amigas, as mulheres se
preocupavam com Jesus até mesmo após sua morte, perfumando o seu corpo,
embalsamando-o. Neste sentido, a história das mulheres é bem diferente da dos
discípulos. Enquanto um discípulo, Judas, traiu Jesus por um punhado de moedas,
e outro, Pedro, o negou tês vezes, as mulheres e o disípulo amado permaneceram
fiéis até o fim. Maria Madalena é uma das mulheres que amava Jesus a ponto de
ter a coragem de vê-lo ser crucificado. Enquanto todos os discípulos fugiam
para se esconder, evitando o perigo de serem presos e mortos, a mãe de Jesus, a
irmã dela, Maria (mulher de Cléofas) e Maria Madelena ficaram junto à cruz
(conforme Lucas 19.25).
A morte na cruz era reservada
para condenados por crimes políticos, e todas as pessoas identificadas com um
criminoso como Jesus poderiam sofrer o mesmo fim. Isto valia tanto para homens
como para mulheres. Por isto, o fato de as mulheres - entre elas Maria Madalena
- ficarem com Jesus enquanto ele estava pendurado na cruz mostra o quanto elas
o amavam, arriscando as próprias vidas para estar com ele. O seu choro em
público é um testemunho de fé e coragem.
IHU On-Line - Que imagem da
ressurreição de Cristo e revelação à Madalena é possível apreender de uma
leitura mais detalhada dos Evangelhos? Quais as semelhanças e dissociações
entre as versões desse momento?
Wanda Deifelt - A cena da
ressurreição de Jesus é um dos relatos mais marcantes. O Evangelho de Marcos
conta que Maria Madalena foi junto com outras mulheres - Maria, mãe de Tiago, e
Salomé - comprar perfume para embalsamar o corpo de Jesus (Marcos 16.1). A
preocupação pelo cadáver de Jesus e o afeto expresso em um último gesto levou
as mulheres ao túmulo, que elas encontram vazio. Na versão de Marcos, as
mulheres fogem com medo. Apesar da originalidade do texto ser questionada, o
relato continua com Jesus aparecendo por primeiro a Maria Madalena (Marcos
16.9-11), mas quando ela retorna aos discípulos para contar que Jesus havia
ressuscitado, eles não creram.
No Evangelho de João (João
20.1-18), lemos que somente Maria Madalena foi ao sepulcro, de madrugada,
quando ainda estava escuro. No sepulcro, a pedra havia sido removida. Correndo
para chamar os discípulos, Simão Pedro e o Discípulo Amado, Maria Madalena os
informou que o corpo de Jesus havia desaparecido. Os dois discípulos correram
ao túmulo, constataram que os lençóis que envolviam Jesus estavam lá, mas não
encontraram Jesus e voltaram para casa. Do discípulo amado é dito que “viu e
creu”. Como nenhum deles encontrou Jesus, decidiram voltar para casa.
Maria Madalena, no entanto,
permaneceu junto à entrada do túmulo, chorando. Ali, Jesus apareceu a ela.
Maria o reconheceu porque ele a chamou pelo nome e ela retrucou chamando-o
Rabôni (que quer dizer Mestre, em aramaico). Então Jesus recomendou que Maria
não o detivesse, pois ele ainda não havia subido ao Pai. E deu a ela a seguinte
incumbência: “Vai ter com meus irmãos e dize-lhes: Subo para meu Pai e vosso
Pai, para meu Deus e vosso Deus”. Assim, Maria Madalena foi a primeira
testemunha da ressurreição. Foi a ela que o ressurreto apareceu pela primeira
vez e deu a missão de ir e anunciar aos demais que Jesus havia ressuscitado.
Mas por que uma mulher?
Muitos se perguntaram por que
Jesus haveria de aparecer por primeiro a uma mulher e escolher justamente a ela
como testemunha de sua ressurreição. No Judaísmo do tempo de Jesus, ou seja, no
primeiro século, somente o testemunho dos homens era válido. Nesta época havia,
também, rumores que os próprios discípulos haviam roubado o corpo de Jesus,
para espalhar a notícia de que ele havia ressuscitado. Se isto fosse verdade,
certamente teriam forjado a história de tal modo que o ressurreto aparecesse
primeiro aos homens (que poderiam servir como testemunhas). Por isso, o fato de
Jesus ter aparecido primeiro a Maria Madalena torna o relato ainda mais
plausível.
IHU On-Line - Como compreender a
mística de Maria Madalena e sua relação com o Cristo? Como isso é visto desde a
perspectiva luterana?
Wanda Deifelt - A cena da
ressurreição, relatada nos evangelhos, mostra que Maria Madalena foi uma mulher
de coragem e fé. Na tradição Católica, Ortodoxa, Anglicana e Luterana ela é
considerada santa, mas a maneira como esta santidade é interpretada varia entre
as denominações. Nas igrejas Católica e Ortodoxa, Maria Madalena é comemorada
no dia 22 de julho. Na concepção Luterana, a terminologia “santo” ou “santa”
não se aplica somente aos heróis da fé, mas a todas pessoas que, batizadas,
fazem parte do corpo de Cristo, da “comunhão dos santos” (como confessamos no
Credo Apostólico [4]).
No Protestantismo não se
reverenciam os santos, pois a santidade não pode ser alcançada por esforços
humanos. Antes, é qualidade de Deus, que é santo. Sendo Deus o santo por
excelência, todas as pessoas que pertencem a Deus são consideradas santas (Lv
11.44). Pela vinda de Jesus, “o Santo de Deus” (Jo 6.69), a santidade é
possível não pelo mérito do cumprimento às leis, mas pela graça. Todas as
pessoas batizadas são parte da comunhão dos santos, e a santificação se dá pela
fé — um presente de Deus. A graça não exime a cristandade do seguimento às
leis, nem descarta a sua responsabilidade diante de Deus e do próximo. Pelo
contrário. A fé leva às boas obras, mas estas obras não são uma conquista
humana. É a graça de Deus, pela fé, que atua por meio de nós.
Pela sua coragem de ficar junto a
Jesus, aos pés da cruz, por seu seguimento fiel, por todo seu ministério e
testemunho, Maria Madalena representa um modelo de fé e vida que ultrapassa os
limites denominacionais.
"Já no primeiro século houve
uma tentativa de domesticação e confinamento da mensagem libertadora e
afirmadora de igualdade entre homens e mulheres"
IHU On-Line - De que forma a
senhora compreende o espaço atribuído à mulher ao longo da história do
cristianismo? Como a história de Madalena – e o espaço que se dá a ela – pode
contribuir nessa reflexão? E como observa esse papel da mulher cristã nos dias
de hoje?
Wanda Deifelt - O papel das
mulheres é marcante e visível. Jesus inicia seu ministério público por causa de
uma mulher, Maria, sua mãe, quando ela insiste que ele ajude a resolver um
problema prático: a falta de vinho em uma festa (Jo 2.1-12). Jesus dialoga
teologicamente e se revela como Messias a uma mulher estrangeira, uma
samaritana (Jo 4.4-42). Ele aceita que mulheres, como Maria, irmã de Marta, se
sentem aos seus pés, como fazem os discípulos de sua época, para escutar seus
ensinamentos (Lc 10.38-42). Perdoa e cura mulheres, é amigo, solidário. Em
nenhuma parte da Bíblia se encontra atitude ou palavra de Jesus contrária à
dignidade da mulher, questionando suas capacidades ou limitando sua atuação.
Neste sentido, Jesus quebra todos os tabus e preconceitos de sua época: perdoa
uma adúltera, deixa-se perfumar por uma mulher de reputação duvidosa, dialoga
publicamente com as mulheres.
A fidelidade destas mulheres é
demonstrada precisamente na cruz. Enquanto os discípulos se escondem, a mãe de
Jesus, a irmã de sua mãe, Maria, a mulher de Cléofas, Maria Madalena e o
Discípulo Amado permanecem com Jesus até o fim (Jo 19.25-27). São muitos os
nomes de mulheres que se destacam no movimento cristão primitivo. Lídia, Febe,
Evódia, Sínteque, Priscila, Junia, Trifena e Trifosa são algumas delas. A
própria Maria Madalena é mencionada doze vezes nos quatro Evangelhos, mais do
que muitos apóstolos.
Domesticação da mensagem
No entanto, já no primeiro século
houve uma tentativa de domesticação e confinamento da mensagem libertadora e
afirmadora de igualdade entre homens e mulheres. Paulo, por exemplo, incluiu
como verdades de fé os assim chamados códigos domésticos, ou seja, elementos da
cultura da época que definiam os papéis que homens, mulheres e crianças
deveriam desempenhar dentro da família, da religião e da sociedade. Os códigos
domésticos estabeleciam a autoridade do pater familias, onde o homem livre,
cidadão do império romano era tido como norma. Seu poder era exercido sobre a
esposa (ou esposas), filhas e filhos, escravas e escravos e animais. O cidadão
era proprietário e tinha poder de vida e morte sobre as pessoas que estavam sob
sua tutela. Durante os séculos iniciais do Cristianismo, o tom libertador e
afirmador de igualdade entre homens e mulheres foi sendo paulatinamente
abrandado, acomodando-se aos padrões discriminatórios da cultura e da
sociedade.
Ao adotar um modo grego de pensar
e um modelo romano de administrar, a Igreja reduziu os espaços para as
mulheres. Já no início do terceiro século se percebe um interesse cada vez
maior de elites municipais romanas (treinadas para a vida pública) pelo
Cristianismo, um processo que culminou um século depois, com a conversão do
imperador Constantino [5]. Muitas comunidades viram com bons olhos esta
mudança, mas ela alterou significativamente a atuação das mulheres dentro do
espaço eclesial. Até então, as mulheres desenvolviam atividades dentro da
Igreja e atuavam no espaço doméstico, já que os cultos eram celebrados nas
próprias casas. Isto não quer dizer, porém, que o ministério das mulheres se
restringia a este espaço, pois muitas atividades eram públicas, atuando como
diáconas, apóstolas, missionárias e pregadoras do Evangelho. Com a mudança nas
relações entre o Cristianismo e o Império, a Igreja começou a usufruir os
benefícios de uma entidade pública. A grande discussão passou a ser, então, se
as mulheres poderiam exercer ministério publicamente, já que o ministério eclesial
se tornara um ministério público. Assim, acabou prevalecendo o ministério
masculino.
Desafiadoras da norma
No entanto, sempre houve mulheres
que desafiaram as normas e os ensinamentos que as definiam como seres física,
moral e espiritualmente inferiores. Através de uma reconstrução histórica
feminista, tem sido possível identificar as contribuições de mulheres como
Heloísa (séc. XII) [6],
Hildegard de Bingen (séc. XII) [7], Mechtild de Magdeburg (séc. XIII)
[8], Catarina de Siena (séc. XIV) [9], Júlia de Norwich (séc. XIV) [10] e Sor
Juana Inés de la Cruz (1651 – 1695)[11] . Elas foram intelectuais, teólogas,
filósofas e também pregadoras (mesmo que, em grande parte, restringissem suas
atividades ao espaço dos conventos). Elas, assim como Maria Madalena e tantas
mulheres que permaneceram anônimas na história do Cristianismo, servem como
exemplo para nós. Pela sua ousadia e testemunho, elas nos servem como modelo.
Por João Vitor Santos
Notas:
[1] Papa Gregório IX (1160-1241):
foi o 178º papa, de 1227 a 1241. Foi importante incentivador dos dominicanos e
dos franciscanos, tendo sido amigo pessoal do próprio São Francisco de Assis.
Organizou a Inquisição Pontifícia com o objetivo de reprimir as heresias, com a
promulgação da bula "Licet ad capiendos" em 20 de abril de 1233,
dirigida aos dominicanos, que passaram a liderar o trabalho de investigação,
julgamento, condenação e absolvição dos hereges. Canonizou S. Francisco de
Assis dois anos após sua morte, S. Domingos de Gusmão e Santo António de Lisboa.
(Nota da IHU On-Line)
[2] Apócrifos do Novo Testamento:
também conhecidos como "evangelhos apócrifos", são uma coletânea de
textos, alguns dos quais anônimos, escritos nos primeiros séculos do
cristianismo, votados no Primeiro Concílio de Niceia, não reconhecidos pelo
cristianismo ortodoxo e que, por isso, não foram incluídos no Cânone do Novo
Testamento. Não existe um consenso entre todos os ramos da fé cristã sobre o
que deveria ser considerado canônico e o que deveria ser apócrifo. (Nota da IHU
On-Line)
[3] Evangelho de Maria Madalena:
é um texto gnóstico encontrado no Codex Akhmin, que foi adquirido pelo Dr. Carl
Reinhardt na cidade do Cairo em 1896. (Nota da IHU On-Line)
[4] Credo dos Apóstolos (em
latim: Symbolum Apostolorum ou Symbolum Apostolicum): às vezes chamado de
Símbolo dos Apóstolos, é uma profissão de fé cristã, um credo ou um símbolo. É
amplamente utilizado por muitas denominações cristãs para propósitos litúrgicos
e catequéticos, mais visivelmente pelas igrejas litúrgicas de tradição ocidental,
incluindo o Rito latino da Igreja Católica, o Rito oriental das Igrejas
Ortodoxas Orientais, o luteranismo, o anglicanismo e o presbiterianismo. (Nota
da IHU On-Line)
[5] Constantino, também conhecido
como Constantino Magno ou Constantino, o Grande (em latim Flavius Valerius
Constantinus Naísso (272-337): foi um imperador romano, proclamado Augusto,
venerável, pelas suas tropas em 25 de julho de 306, que governou uma porção
crescente do Império Romano até a sua morte. (Nota da IHU On-Line)
[6] Heloísa de Argenteuil ou
Heloísa de Paráclito, ou Helöise, Heloíse, Héloyse, Hélose, Heloisa, Helouisa,
Eloise, Aloysia (1090-1164): foi uma freira, escritora, erudita e abadessa
francesa, mais conhecida por seu amor e correspondências com o filósofo Pedro
Abelardo. (Nota da IHU On-Line)
[7] Hildegard de Bingen
(1098-1179): mística, filósofa, compositora e escritora alemã, abadessa de
Rupertsberg em Bingen. Hildegard foi autora de várias obras musicais de
temática religiosa incluindo Ordo Virtutis, uma espécie de ópera que relata um
diálogo de um grupo de freiras com o Diabo. Escreveu ainda dois dos únicos
livros de medicina escritos na Europa no século XII, onde demonstrou um
conhecimento notável de plantas medicinais. Hildegard alegava ter visões inspiradas
por Deus, que o próprio a incentivou a escrever em livros. Após quatro
tentativas de canonização, Hildegard permanece apenas beatificada. Leia também,
Hildegard de Bingen, mística medieval e santa doutora da Igreja; Hildegard de
Bingen e a igualdade homem-mulher; Hildegard de Bingen: os bastidores de uma
promoção tardia; Hildegard de Bingen: futura Doutora da Igreja; O ser humano
sinfônico de Hildegard de Bingen. (Nota da IHU On-Line)
[8] Mechthild (ou Mechtild,
Matilda, Matelda) de Magdeburg (1207-1282/1294): foi uma cristã mística
medieval, cujo livro Das fließende Licht der Gottheit (The Light Corrente de
divindade) descreveu suas visões de Deus. Ela foi a primeira mística a escrever
em alemão. (Nota da IHU On-Line)
[9] Catarina de Siena
(1347-1380): leiga da Ordem Terceira de São Domingos, venerada como Santa
Catarina na Igreja Católica. Catarina de Siena foi ainda uma personagem
influente no Grande Cisma do Ocidente. (Nota da IHU On-Line)
[10] Juliana de Norwich (1342-1416):
foi uma anacoreta e mística inglesa. O seu livro Revelações do Amor Divino
(Revelations of Divine Love, em inglês), escrito por volta de 1395, foi o
primeiro em língua inglesa que se sabe ter sido escrito por uma mulher. Juliana
foi também uma autoridade espiritual dentro da sua comunidade, que serviu como
conselheira. É venerada na Igreja Católica, apesar de não ter sido beatificada
ou canonizada, e nas Igrejas Anglicanas e Luteranas. (Nota da IHU On-Line)
[11] Sóror Juana Inés de la Cruz
ou, simplesmente, Sóror Juana (1651- 1695): religiosa católica, poetisa e
dramaturga nova-espanhola mexicano-espanhola. Foi a última dos grandes
escritores do Século de Ouro. (Nota da IHU On-Line)
Fonte: Ihu
Nenhum comentário:
Postar um comentário