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“Corrigindo as coisas, podemos
permitir que Maria Madalena surja como modelo de seguidora fiel, devotada do
Senhor, e como liderança forte e independente na igreja primitiva”, pontua a
teóloga. "Maria Madalena, a prostituta pesarosa, foi então contraposta à
Virgem Maria. O papel efetivo dela foi esquecido". "Sua liderança
desafia a Igreja toda a se converter à participação das mulheres como
discípulas em pé de igualdade no século XXI"
Para muitos, Maria Madalena é a
apóstola dos apóstolos, a grande anunciadora do Cristo ressurreto. Outros
preferem não dar muita importância a essa figura, já que não se sabe muito
sobre ela e o que se sabe ainda é atravessado por interpretações equivocadas.
Apressadamente, pode-se concluir que essa personagem é encoberta pelos varões
por simples machismo.
Entretanto, a professora de
Teologia da Fordham University, de Nova York, Elizabeth Johnson pede uma
reflexão com mais vagar e profundidade na análise. “A situação de Maria Madalena
tem de ser vista sobre o pano de fundo de um problema mais amplo”, alerta.
Na entrevista a seguir, concedida
por e-mail à IHU On-Line, a teóloga afirma que toda a sistematização e
organização dos textos bíblicos se dá no interior de uma sociedade duramente
patriarcal. Ou seja, era natural para aquele tempo não se perceber a
importância, e sequer a presença, das mulheres. “Os autores focaram sua atenção
no que homens importantes disseram ou fizeram, desconsiderando outras pessoas
de menor importância, tais como mulheres ou escravos do sexo masculino”,
explica. Porém, “o simples fato de mulheres não serem mencionadas em um texto,
por exemplo, não quer dizer que elas não estivessem presentes ou atuantes”.
São justamente os movimentos de
releituras e análises feministas sobre as escrituras que hoje revelam o
verdadeiro papel da mulher entre os integrantes do movimento de Jesus. “Se
mulheres são efetivamente mencionadas em um texto, é provável que elas sejam tão
importantes que a história não poderia ser contada se elas fossem ignoradas”,
completa Elizabeth.
Assim, a teóloga entende que
“corrigindo as coisas, podemos permitir que Maria Madalena surja como modelo de
seguidora fiel, devotada do Senhor, e como liderança forte e independente na
igreja primitiva”. E vai além: “sua liderança desafia a Igreja toda a se
converter à participação das mulheres como discípulas em pé de igualdade no
século XXI”.
Elizabeth Johnson é professora de
Teologia nos programas de graduação e pós-graduação da Fordham University,
universidade jesuíta de Nova York, onde leciona Teologia sistemática e Teologia
feminista. Integrante da congregação religiosa Irmãs de São José de Brentwood,
é ex-presidente da American Theological Society e da Catholic Theological
Society. Faz parte do Conselho
Editorial dos periódicos Theological Studies, Horizons: Journal of the College
Theology Society e Theoforum. Elizabeth também é autora de Ask the Beasts:
Darwin and the God of Love (Bloomsbury, 2014).
Confira a entrevista.
Foto: Wikipedia
IHU On-Line - Como compreender a
figura de Maria Madalena e seu papel na história do cristianismo?
Elizabeth Johnson - Tanto quanto
podemos depreender das fontes históricas, Maria Madalena foi uma judia do século
I cuja liderança dava suporte ao ministério de Jesus e ajudou a fundar a
Igreja. Há relatos de que o contato dela com Jesus começou quando ele a curou
de uma doença grave. Depois dessa cura, ela se juntou ao grupo de discípulos e
discípulas que seguiam Jesus de cidade em cidade na Galileia, absorvendo seus
ensinamentos e testemunhando seus atos de compaixão.
O dinheiro dela ajudou a
financiar o ministério de Cristo. No fim da vida de Jesus, ela não fugiu, mas,
junto com outras mulheres, ficou fielmente junto à cruz e acompanhou seu corpo
até a sepultura. Na manhã da Páscoa, o Cristo ressurreto apareceu para ela,
incumbindo-a de transmitir a boa nova de sua ressurreição ao resto dos
discípulos – o que ela fez. Depois, Madalena esteve presente quando o Espírito
Santo desceu em vento e fogo sobre toda a comunidade em Pentecostes,
energizando a linguagem de seus membros e fundando a Igreja.
Para usar a terminologia bíblica,
ela é tanto uma discípula (alguém que segue) quanto uma apóstola (alguém que é
enviado). Com base em sua relação com Jesus, sua liderança em ambos os papéis
deu uma contribuição destacada na origem do cristianismo.
IHU On-Line - O que está por trás
das confusões em torno da figura de Madalena, associada muitas vezes pela
tradição à prostituta regenerada e figura controversa na relação com Cristo e
com os apóstolos? Por que se sabe tão pouco sobre sua vida antes de Cristo e
depois da crucificação?
Elizabeth Johnson - A identidade
de Maria Madalena como líder destacada se perdeu quando pregadores começaram a
confundi-la com várias outras mulheres presentes no Novo Testamento. Isso
aconteceu do modo mais significativo com a mulher que aparece no capítulo 7 do
Evangelho de Lucas. Naquele relato, uma mulher banha os pés de Jesus com suas
lágrimas, unge-os com o perfume de seu frasco de alabastro e os enxuga com seus
cabelos. Quando os fariseus levantam uma objeção, observando que ela é uma
pecadora notória, Jesus os admoesta e a perdoa “porque ela demonstrou muito
amor” (Lc 7,47). Em lugar algum Lucas diz que essa mulher era uma prostituta, e
em lugar algum ela é identificada como Maria de Magdala.
O relato que se segue
imediatamente a este, em Lucas 8, fala de Maria Madalena, dizendo que ela tinha
sido curada por Jesus e o seguia. Com o passar do tempo, pregadores começaram a
mesclar esses dois relatos em um só, e Maria Madalena se tornou uma prostituta
contrita. A imaginação da igreja foi selada com essa ideia quando, no século
VI, o Papa Gregório Magno fez um sermão em que disse: “Aquela a quem Lucas
chama de pecadora, a quem João chama de Maria, cremos que ela seja a Maria de
quem Jesus expulsou sete demônios de acordo com Marcos. E o que significavam
esses sete demônios, senão todos os vícios? [...] Está claro, irmãos, que a
mulher anteriormente usava o unguento para perfumar sua carne em atos proibidos
[...].”.
É muito provável que o Papa
Gregório quisesse usar a história para assegurar às pessoas convertidas que
seus pecados seriam perdoados. Mas o infeliz resultado foi que a memória de uma
apóstola destacada foi misturada com a história de uma pecadora contrita e
depois enterrada nela. Maria Madalena, a prostituta pesarosa, foi então
contraposta à Virgem Maria. O papel efetivo dela foi esquecido.
IHU On-Line - Por que se sabe tão
pouco sobre a vida de Madalena antes de Cristo e depois da crucificação? Tendo
em perspectiva também os relatos históricos, em que medida é possível afirmar
que os relatos canônicos suprimem a importância dessa figura?
Elizabeth Johnson - A situação de
Maria Madalena tem de ser vista sobre o pano de fundo de um problema mais
amplo. A pesquisa bíblica feita a partir da perspectiva das mulheres deixa
absolutamente claro que a Bíblia foi escrita por homens, para homens, em uma
sociedade patriarcal. Por conseguinte, os autores focaram sua atenção no que
homens importantes disseram ou fizeram, desconsiderando outras pessoas de menor
importância, tais como mulheres ou escravos do sexo masculino.
Um exemplo claro dessa tendência ocorre
no relato neotestamentário do episódio em que Jesus alimenta uma multidão que
tinha vindo para ouvi-lo pregar. Marcos termina seu relato dizendo: “E os que
comeram dos pães eram cinco mil homens” (Mc 6,44). Em contraposição a isso, o
relato de Mateus nos mostra um número maior: “Ora, os que comeram eram cerca de
cinco mil, sem contar mulheres e crianças” (Mt 14,21). Para a mentalidade
patriarcal, mulheres e crianças não tinham importância. Mas elas estavam lá e
comeram.
Desenterrando as mulheres
Para corrigir as coisas, os e as
biblistas usam uma forma de interpretar a Bíblia que visa libertar a história
de mulheres enterrada no texto. Eles e elas usam várias estratégias. O simples
fato de mulheres não serem mencionadas em um texto, por exemplo, não quer dizer
que elas não estivessem presentes ou atuantes (cf. acima). Se mulheres são
efetivamente mencionadas em um texto, é provável que elas sejam tão importantes
que a história não poderia ser contada se elas fossem ignoradas; assim,
qualquer mulher mencionada é a “ponta do iceberg”, havendo muito mais que
poderia ser dito.
Essas e outras ferramentas
interpretativas estão permitindo que Maria Madalena, essa “apóstola dos
apóstolos”, finalmente tome seu lugar legítimo na História como discípula amada
de Jesus e líder proeminente da igreja primitiva.
IHU On-Line - Em que medida é
possível associar a história de Madalena, e o sentido que a tradição católica
dá à sua história, ao espaço e papel da mulher na Igreja e no cristianismo?
Elizabeth Johnson - Existe uma
conexão clara entre a maneira como contamos a história das origens da Igreja e
a maneira como vemos os papéis apropriados das pessoas hoje em dia. A redução
de uma das mais importantes líderes da igreja primitiva a uma prostituta cobrou
um tributo, especialmente para as mulheres, ao reforçar a noção de que as
mulheres não devem ser líderes, e sim gratas recebedoras do perdão dado por
homens.
IHU On-Line - Em comparação com o
cristianismo primitivo, como analisa o papel dado à mulher na Igreja hoje?
Elizabeth Johnson - Que as
mulheres tenham sido líderes nos primórdios do movimento de Jesus é algo que
está ficando mais claro e sendo mais comumente aceito entre pesquisadores e
pesquisadoras. Uma série de passagens bíblicas descrevem mulheres que exercem
diferentes ministérios. No capítulo 16 de sua Carta aos Romanos, Paulo de fato
menciona diferentes mulheres que são apóstolas (Júnia), diáconas (Febe),
líderes de igrejas que se reuniam em casas (Prisca) e colaboradoras em prol do
evangelho (Maria, Pérside e outras).
Escritos não canônicos
posteriores também retratam mulheres que desempenham esses papéis. Esses
escritos também retratam conflitos em torno da liderança das mulheres entre alguns
dos discípulos do sexo masculino. Estudos a respeito de inscrições tumulares
antigas também confirmaram que esses títulos designavam mulheres nos primeiros
séculos da igreja. Em comparação com isso, os papéis das mulheres na Igreja
atual são insignificantes.
IHU On-Line - Como compreender a
mística de Madalena, sendo ela uma figura tão presente no ato da crucificação
e, depois, a primeira a ver o Cristo ressurreto? Que mensagem está por trás
desse momento e por que é ela a primeira testemunha?
Elizabeth Johnson - Todos os
quatro evangelhos mostram as mulheres fiéis se fazendo presentes por ocasião da
crucificação e do sepultamento de Jesus, bem como junto ao sepulcro vazio no
domingo de Páscoa. Elas são o ponto móvel de intersecção dentro de toda a narrativa
da Paixão. Sem o testemunho delas, como ficaríamos sabendo o que aconteceu?
Pois os discípulos tinham fugido e se escondido.
Sempre gosto de dizer que o
Cristo ressurreto poderia ter escolhido qualquer pessoa que quisesse para
confiar a ela a boa nova da ressurreição. O fato de que ele escolheu Maria
Madalena atesta primeiro – poderíamos supor – o relacionamento estreito que ele
e ela tinham e à percepção que ele tinha das capacidades dela. Também é
coerente com toda a sua orientação de abençoar e incluir as pessoas
marginalizadas em nome de Deus.
Examinemos a cena descrita no
capítulo 20 de João. Maria Madalena está chorando do lado de fora do sepulcro,
lamentando a perda do corpo de seu amado mestre. O jardineiro (pensa ela)
pergunta qual é a razão da aflição dela... e então a chama pelo nome. Ela se
vira e fica espantada ao reconhecê-lo. Jesus lhe dá a incumbência com palavras
de envio apostólico: “Vai e dize”. A mensagem a ser transmitida é que o
relacionamento íntimo que Jesus tem com seu Abba/Pai está agora abertamente
disponível para seus discípulos e discípulas: “meu Deus e vosso Deus”. Maria
vai e anuncia: “Vi o Senhor”. Chorar, virar-se, dizer – essa mulher está no
próprio cerne do relato da ressurreição, de que depende toda a fé cristã. O
Prefácio da liturgia do Domingo de Páscoa a cada ano pede a Maria Madalena que
ela conte o que viu. Em cada missa pascal no mundo inteiro, ela continua a
falar.
Se os papéis de gênero tivesse
sido inversos; se os homens tivessem ficado junto à cruz enquanto as mulheres
fugiam e se escondiam; se Cristo tivesse aparecido primeiro para um homem e o
tivesse incumbido de contar aos outros; então a maneira como a igreja funciona
atualmente poderia ser justificada. Entretanto, Maria Madalena e outras
mulheres no Novo Testamento rompem essa justificação.
IHU On-Line - Como a senhora
interpreta a ação do papa Francisco ao elevar a celebração litúrgica de Maria
Madalena para condição de festa?
Elizabeth Johnson – Enquanto a
maioria das celebrações litúrgicas de santas e santos tomados individualmente
durante o ano são formalmente conhecidas como memoriais, aquelas classificadas
como festas são reservadas para santos e santas de importância particular, tais
como a Bem-Aventurada Virgem Maria e os Doze Apóstolos. Ao elevar o status do
dia de Maria Madalena para a condição de uma festa importante, o Papa Francisco
está salientando a relevância dessa mulher, cujo papel como testemunha
primordial da Ressurreição é insubstituível.
Colocá-la no mesmo nível de festa
concedido aos outros apóstolos dá a ela um status apostólico igual ao dos
apóstolos do sexo masculino. Significa honrar a posição dela como figura-chave
em nossa história da salvação. Fica claro que há uma conexão profunda entre o
papel de Maria Madalena e as conclamações contemporâneas para que as mulheres
tenham papéis ampliados na Igreja Católica.
O reconhecimento
Acho que temos de ponderar a
enormidade do que aconteceu com Maria Madalena, como a história dela foi
subvertida, como ela foi injustamente despojada de seu papel de liderança e
como isso teve um efeito duradouro sobre a imaginação da Igreja a respeito do
que é certo que as mulheres façam. As implicações disso ainda nos acompanham
atualmente. Corrigindo as coisas, podemos permitir que Maria Madalena surja
como modelo de seguidora fiel, devotada do Senhor, e como liderança forte e
independente na igreja primitiva. Sua liderança desafia a Igreja toda a se
converter à participação das mulheres como discípulas em pé de igualdade no
século XXI.
Fonte: (Por João Vitor Santos |
Tradução Luis Sander) Ihu
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