Medo de quê? De tudo. Mas
sobretudo de ter que do nada me prostituir, ter que ir da noite pro dia buscar
cada centavo do meu sustento na prostituição. E não eram os corpos sem nome,
vários, variados, via de regra fora do padrão, em diversos graus de higiene e
saúde, o que me assustava. Com esses me dou bem, e até prefiro, anônimos, fora
do padrão (como eu própria me sentia sempre, ainda mais agora). Sexo nunca foi
foda (...). Meu medo era, antes, a violência da exclusão, me ver pária da noite
pro dia, tratada feito lixo, perder família, amigos, círculo social, não ter um
teto pra chamar de meu, o direito de continuar estudando, de poder buscar
emprego que não fosse esse que não consideram emprego: puta.
Esse é um trecho do livro
autobiográfico "Se eu fosse puta", escrito pela doutoranda em crítica
literária pela Unicamp — e prostituta em Campinas (SP), Amara Moira. Ela relata
sua transição de gênero - virou
travesti - e das experiências como
profissional do sexo.
"Antes [de assumir a Amara],
eu não chamava atenção na rua. E de repente, quando você se coloca como mulher
e, mais especificamente, como travesti, todos os olhos se voltam a você para
tentar te entender", afirma Amara.
"E há todo tipo de olhar:
mais hostil, mais curioso... Esse olhar constante é um lembrete de que você é
considerada uma aberração."
O livro é, em essência, o relato
de desprezos e angústias. Um dos poucos prazeres: sentir-se valorizada quando visitava as
amigas prostituta.
"Era único momento em que
"os homens me abordavam publicamente".
Até que, enfim, assumiu ser
prostituta. E não assumiu por dinheiro.
Foi o jeito que encontrou para enfrentar a solidão.
"Vinte nove anos vivendo
como homem, mais especificamente o homenzinho padrão, cis, branco, não-afeminado,
lido como hétero, classe média, e foi só eu transicionar e passar a ser lida
como travesti para viver minha primeira experiência de violência sexual. Eu,
que me achava poderosona, em condições de peitar quem quer que fosse por conta
da socialização que tive, não dei conta de evitar que o cliente me forçasse a
seguir com o programa mesmo depois dele ter me machucado, eu sentindo as dores
não só físicas, mas também as de não conseguir dizer não. Sinalizar o
sofrimento não foi o bastante para evitar que ele continuasse e, na verdade, me
pareceu até que ele se excitou mais em imaginar que, com seu pinto, conseguia
machucar uma profissional do sexo.
A facilidade com que ele me
machucou e seguia me machucando, sentindo prazer nesse movimento, me fez gelar,
mas não só por pensar em mim, na situação que eu vivia ali, e sim por imaginar
quão fácil era uma mulher se ver naquela mesma posição, ter que seguir com o
sexo mesmo quando o sexo já tinha deixado de ser prazer pra se tornar
violência. Pensa-se o estupro como coisa longínqua, o ataque dum estranho numa
rua deserta, e com isso não se percebe o quanto ele acompanha o nosso dia a
dia, o quanto ele se faz presente mesmo dentro de relacionamentos tido como
amorosos.
O que é a primeira relação sexual
para uma mulher a quem a experiência da sexualidade foi desde sempre negada,
essa mulher que vai descobrir na hora H, nas mãos do marido bruto ou namorado,
o que isso significa? No mais das vezes, significa violência, o que é muito
conveniente para o sistema patriarcal: o homem, para garantir que seus filhos
são seus, precisa controlar com cuidado o corpo da mulher "sua"... e
há maneira mais eficaz de controle do que uma experiência traumática, do que
conhecer o sexo apenas em termos de violência? Que mulher iria buscar um amante
quando o sexo a que tem acesso se resume a isso? Deixa-se o prazer mútuo para
ser vivido com a amante, a prostituta, pois a mulher que se preze, a mulher que
se dê ao respeito, a mulher propriedade do marido, essa não possui grandes interesses
eróticos. Sexo é pra reprodução, lembram? Ideia perfeita pra justificar o
controle do corpo e da sexualidade da mulher.
Mas, homens dirão, os tempos são
outros, isso era na época de nossas avós, bisavós. Sim, mas a pergunta que
minha garganta coça em fazer a esses homens é: você seria capaz de fazer sexo
com alguém que não está sentindo prazer e, mais, você seria sequer capaz de se
dar conta de que ela não está sentido prazer? Quem penetra não tem como fingir
orgasmo, fingir ereção, se não der pra rolar não há como forçar a barra... mas
do outro lado a realidade é bem outra e estão aí para prová-lo os números
alarmantes de mulheres que, apesar de transarem rotineiramente, têm que sempre
fingir orgasmo, mulheres que muitas vezes nem sabem o que orgasmo quer dizer
(seguiremos chamando isso de sexo?).
Essa mulher que você diz amar,
será que ela tem prazer em transar contigo? O meu medo é descobrir que a
resposta a essa pergunta talvez não interesse à maioria dos homens."
Fonte: https://catracalivre.com.br
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