Ariana Reis, 32 anos, chegou ao
fim de 14 anos dedicados à universidade: três de preparação para as provas de
acesso, cinco do curso de Pedagogia, seis do de Medicina. No convite para a
cerimónia de formatura, terminava com o seguinte: “Sou mulher, sou negra, sou
da favela e hoje sou médica.”
Porque “é difícil”. Porque Ariana
é a grande excepção num Brasil onde é raro encontrarem-se médicos negros nos
hospitais. A “caçula” de 12 irmãos foi a primeira a ir para a universidade. Era
a única mulher negra da sua turma na Faculdade de Tecnologia e Ciências da
Bahia. Em seis anos a estudar Medicina, cruzou-se com apenas duas estudantes
negras de outros anos. “Nos hospitais sempre me confundem com a menina que
limpa o chão. Se cai qualquer coisa: ‘Você vem aqui, pega o pano, limpa.’
Quantas vezes eu já ouvi isso? Muitas vezes. [Olham para mim]: ‘Ah, é a
enfermeira, a técnica.’ Se estou sentada lá na mesa — sabem que é um médico que
está ali na mesa — [perguntam]: ‘É você? Ah…’” E Ariana responde: “Vou chamar a
pessoa responsável por isso.” Ou então mostra o distintivo na bata: “Está aqui,
sou médica.”
Isto acontece com pacientes
brancos e negros: “Na verdade, os brancos ficam mais impressionados. Os negros
me abordam mais porque não estão acostumados a ver na sua comunidade pessoas em
cargos assim de mais prestígio.” Ariana tenta mudar o olhar de quem a ofendeu:
um negro não faz só limpezas, é possível que uma médica seja negra.
De facto, ela raramente se cruza
com médicas negras — médicos ainda vai vendo, mas poucos. Cresceu a ouvir:
“Negro não presta.” E por isso: “Cresci dizendo: ‘Meu Deus, eu sou negra e
negro não presta.’ Não tinha orgulho de ser negra. Meu pai era o primeiro a
dizer que negro não presta, que negro faz sempre coisa ruim e que não é para
ter orgulho de ser negro — ele sendo negro.”
Mas o pai, pedreiro, morreu com
orgulho da filha negra. Estava bastante doente, com Alzheimer, quando Ariana
soube que tinha conseguido a bolsa para entrar em Medicina — cancelando assim o
curso de Pedagogia que estava quase no fim. Chegou a casa, e contou: “Pai,
passei em Medicina. Eu acho que ele entendeu. No outro dia faleceu. Isso é uma
dor para mim. Ironia do destino, né? Filha passando em Medicina, pai falecendo
no outro dia.”
Apesar de tudo, quando pedia
dinheiro para livros, para a escola, ele dava. “Era o maior sacrifício.” Mas
ele dava. Na época de aulas, tinha o costume de a esperar à noite nas paragens
de autocarro, porque o bairro era perigoso e “tem que ficar olhando”. “Sempre
me incentivou. Sempre.”
Ela cresceu a ouvir que negro não
presta, mas cresceu também a dizer que queria ser médica. Aos 15 anos, estava
num hospital com o sobrinho que tinha caído. Virou-se para o médico, até ali
brincalhão, “dando risada”, e disse: “Olha, eu estudo muito para ser médica
como você.’ Houve um silêncio da parte dele. Aquele que estava brincando,
sorrindo, conversando com a gente se fechou. E aí, como eu falo muito baixo,
[pensei] que ele não ouviu, falei mais alto: ‘Olha eu estudo muito porque quero
ser médica como você, como o senhor.’ Aí ele virou, olhou para mim como se
dissesse: ‘Ponha-se no seu lugar, você não vai conseguir.’ [Pausa] Saí dali
arrasada. Arrasada.”
Tinha levado “um balde de água
fria”. “Mas não desisti por isso, não.” Afinal, Ariana é conhecida por ser “do
contra”: “Se tinha aquilo para fazer e ninguém conseguia, eu ficava, ficava,
ficava até conseguir.”
Tentou Medicina, antes de entrar
em Pedagogia, por três vezes. Numa delas, em que “não passou”, chegou a casa, à
varanda de um apartamento numa favela, e “chorou, chorou, chorou”, lembra a
mãe, no mesmo sítio, agora numa noite de Fevereiro, já com a filha formada. E o
irmão a dizer-lhe: “Você vai alcançar, vai alcançar.”
O irmão não está em casa da mãe
na noite em que lá vamos, mas estão algumas das irmãs, sobrinhas e sobrinhos.
Os jovens sentam-se na sala, logo à entrada, agarrados aos telemóveis e a olhar
para o ecrã da enorme televisão. Vê-se logo a fotografia da cerimónia de
formatura de Ariana, em formato gigante: ela de bata, cabelo arranjado,
maquilhada. Morro acima, vivem as irmãs, noutras casas. Foi naquela sala que
ela estudou e continua a estudar Medicina, com gente a entrar e a sair. No
edifício ao lado, fiéis de uma Igreja Evangélica cantam alto, batem palmas.
Quando entrou em Medicina, pagava
três mil reais por mês (cerca de 920 euros) — mas tinha uma bolsa do ProUni, um
programa do Ministério da Educação que paga 50% da mensalidade a alunos em
instituições privadas. Quando estudou Pedagogia, fê-lo ao abrigo das cotas
raciais, uma das políticas de acção afirmativa no Brasil que pretendem aumentar
a percentagem de população negra nas universidades.
No segundo país com a maior
população negra do mundo a seguir à Nigéria, ser negro é pertencer a uma
maioria de 51% da população de 200 milhões. Mas o último Censos, de 2010,
mostrava que apenas 26% dos universitários eram negros; e apenas 2,66% dos
alunos que terminaram o curso de Medicina eram negros, num estudo feito pelo
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais para o canal UOL. Estes
números explicam-se, em parte, com a despesa da educação no Brasil: quem estuda
em escolas privadas até ao fim do secundário tem mais hipóteses de entrar nas
universidades públicas, as melhores.
Para conseguir pagar a
universidade privada, Ariana fez uns trabalhos avulsos, como limpar a casa da
irmã ou ajudar alguns colegas na faculdade. “É muito difícil. Consegui entrar
na universidade porque cheguei num tempo em que meus irmãos já estavam
trabalhando e puderam me ajudar também. As cotas ajudam e muito. Como é que a
gente que vem da escola pública vai concorrer com esse pessoal da escola
privada que não passou por greves de professores e de funcionários? É-lhes
cobrado desde que nascem: ‘Vocês têm que ter um nível superior.’ Têm espelhos
na família: médicos, engenheiros, professores. Nas famílias pobres, a maioria
negras, a mãe é dona de casa, o pai é pedreiro, o pai está desempregado, o pai
é bandido, o pai é ladrão.”
Ela estava entre os melhores da
turma, diz. Em cirurgia, foi considerada a aluna-padrão. A diferença em relação
aos outros é que tudo custava muito mais: saía de casa de madrugada para não
apanhar engarrafamentos e garantir que estava nas aulas a tempo e horas, fazia
“ginástica” ao dinheiro porque tinha de passar um dia inteiro fora de casa,
tinha de comprar livros caríssimos, alguns a “mil, dois mil reais”…
Voltamos à história do convite.
Queremos saber o significado daquela frase que ela colocou no final: “Mulher já
é discriminada por si só, tem salários inferiores aos dos homens, se for negra
ainda pior. Da favela, o pessoal acha que é ladrão. Virei médica: isso é
possível.”
Para se ter uma ideia do que diz:
com o mesmo nível de escolaridade, as mulheres brancas ganham 68,7% do salário
dos homens brancos, enquanto os homens negros ganham metade e as mulheres
negras menos ainda, 38,5% (dados retirados do estudo Igualdade Racial no
Brasil: reflexões no Ano Internacional dos Afrodescendentes, 2013, IPEA).
Ariana está num hospital militar
como voluntária (mas tem um salário). Quer fazer bancos em hospitais do
interior para ganhar algum dinheiro e estudar para fazer a prova de cirurgia
geral. “Vou cursar dois anos de cirurgia geral em hospitais e terminando os
dois anos vou prestar novamente prova para fazer residência em cirurgia
pediátrica durante três anos.” Cirurgia porquê? “Gosto de resolver. E cirurgião
resolve muito.”
Fonte: Hoje Tem
Um comentário:
tenho 17 anos. Moro em comunidade tbm, esse texto me inspirou bastante. Sou branco, mas nunca vi uma pessoa de favela se tornando medico, e isso estava me preocupando muito, por isso decidi conferir na internet se alguém já conseguiu, espero conseguir isso também.
Um dia vai chegar o dia!
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