O mais importante e mais novo de
toda a reflexão de Francisco sobre a mulher é sua visão pastoral universal, que
percebe o perigo de visões reducionistas sobre as questões da moral sexual em
relação à mulher: “Não podemos seguir insistindo apenas em questões referentes
ao aborto, ao matrimônio homossexual, ao uso de anticoncepcionais. É
impossível”, afirmou.
Por Maria Clara Bingemer
Para o papa Francisco, a relação
com a mulher não está configurada em termos de suspeita, dominação, ou poder.
Sabe ele que deve muito às mulheres, que o ampararam ao longo de toda a sua
vida. E essa gratidão e reconhecimento encontram-se harmoniosamente impregnados
em seu ministério e sua teologia.
O papa aprecia na mulher sua
sabedoria concreta, que nasce da experiência profunda e verdadeira porque
ancorada e enraizada na realidade. Nada pode substituir essa experiência, nem
toda a ciência do mundo. Como bispo de Roma, o argentino Jorge Mario Bergoglio,
em seus discursos e atitudes, tem deixado transparecer claramente essa
confiança e esse carinho que podem resultar em uma grande esperança e abertura
de perspectivas, não apenas para as mulheres mas para toda a Igreja. Perguntado
sobre a situação da mulher no mundo de hoje, papa Francisco muitas vezes tem se
pronunciado favorável a uma valorização maior da mulher na Igreja.
Quando no avião que o trazia de
regresso a Roma depois da viagem ao Rio de Janeiro, declarou que uma Igreja sem
as mulheres é como o Colégio Apostólico sem Maria. Acrescentou e isso nos
parece o mais importante que o papel da mulher na Igreja não é somente a
maternidade e a família. É mais forte. E aí toma precisamente o ícone de Maria
como Madonna, a quem a piedade cristã chama de Nossa Senhora; é aquela que
ajuda a Igreja a crescer. E por isso é mais importante que os apóstolos e seu
ministério.
Porém, a grande novidade que diz,
a nosso ver, é que não se pode limitar o papel da mulher na Igreja. A
importância desta afirmação reside no fato de Francisco ir alem do tradicional
enquadramento que todos os documentos e pronunciamentos de papas anteriores
fazem ao se referir sempre à maternidade ou à vida consagrada. Assim,
transforma a impressão de que não restam outros espaços ou outras
possibilidades para a mulher senão essas: o casamento, a família, a maternidade
ou a consagração religiosa, passando rapidamente pelo trabalho e a profissão.
O pontífice diz clara e textualmente
que o papel da mulher na Igreja não deve circunscrever-se a ser mãe e/ou
trabalhadora. Não se pode nem se deve limitá-la. Reconhece, porém, que para
isso é necessário avançar mais na explicitação deste papel e carisma da mulher.
Daí se pode inferir com justeza e sem forçar os pronunciamentos do pontífice
que, quando ele diz que a Igreja é mãe e por isso o papel da mulher é tão
importante, não pretende confinar a mulher ao privado do lar. Ou limitá-la aos
tradicionais afazeres domésticos de trocar fraldas, cozinhar, limpar, lavar,
passar... para os homens.
E em seguida exemplifica
belissimamente com um fato histórico que não deixa a menor dúvida sobre sua
postura aberta frente à mulher: o tão importante papel das mulheres paraguaias
na reconstrução do país. Vale recolher as palavras literais de Bergoglio,
porque têm um longuíssimo alcance: Para mim, a mulher do Paraguai é a mulher
mais gloriosa da América Latina... Após a guerra, ficaram oito mulheres para
cada homem, e essas mulheres fizeram uma escolha um pouco difícil: a escolha de
ter filhos para salvar a pátria, a cultura, a fé e a língua. Na Igreja, temos
de pensar a mulher sob essa perspectiva de escolhas arriscadas, mas como
mulheres.
Temos aí uma afirmação ousada e
bela. O papa legitima e mesmo elogia uma decisão que aparentemente e no fundo
entra em choque com a moral tradicional do casamento monogâmico e da concepção
e procriação apenas dentro deste. Admite uma ética circunstancial, onde
mulheres, a fim de manter vivos seu país, seu povo, sua cultura, optam por um
bem maior que exige ir além das fronteiras da moral católica: ter filhos, mesmo
que não dentro da instituição do matrimônio.
Porém, o mais importante e mais
novo de toda a reflexão de Francisco sobre a mulher é sua visão pastoral
universal, que percebe o perigo de visões reducionistas sobre as questões da
moral sexual em relação à mulher: “Não podemos seguir insistindo apenas em
questões referentes ao aborto, ao matrimônio homossexual, ao uso de
anticoncepcionais. É impossível”, afirmou.
O que o papa quer dizer é que a
moral deve ser consequência do kerigma, do primeiro anúncio, proposto com toda
simplicidade, fulgor e entusiasmo. Uma vez que este anúncio tenha chegado ao
seu destino, que é o coração humano, todo o resto é consequência. Consequências
que, ainda que importantes, não manifestam por si só o coração do ensinamento
de Jesus.
As mulheres, finalmente, são
libertadas pela atitude e as palavras do papa da eterna suspeita de serem as
responsáveis pelo mal e pelo pecado, de terem facilitado sua entrada no mundo e
de possuírem uma corporeidade que é sede de perigosa sedução, provocando
desvios e erros que perturbam a castidade dos monges e o celibato do clero.
Estas coisas não devem ocupar o lugar central da pastoral evangelizadora da
Igreja insiste Francisco e, portanto, homens e mulheres são chamados, todos e
todas, a entregar suas vidas para que o Evangelho ganhe mundo e conforte os
corações humanos.
* Maria Clara Lucchetti Bingemer,
teóloga e professora do Centro de
Teologia e Ciências Humanas da
PUC-Rio, é autora de vários livros como 'Ser cristão hoje' (Editora Ave Maria)
e 'O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença' (Editora
Rocco).
Fonte: Jornal do Brasil
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