quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Sou mulher, sou negra,sou da favela e hoje sou médica

Ariana Reis, 32 anos, chegou ao fim de 14 anos dedicados à universidade: três de preparação para as provas de acesso, cinco do curso de Pedagogia, seis do de Medicina. No convite para a cerimónia de formatura, terminava com o seguinte: “Sou mulher, sou negra, sou da favela e hoje sou médica.”

Porque “é difícil”. Porque Ariana é a grande excepção num Brasil onde é raro encontrarem-se médicos negros nos hospitais. A “caçula” de 12 irmãos foi a primeira a ir para a universidade. Era a única mulher negra da sua turma na Faculdade de Tecnologia e Ciências da Bahia. Em seis anos a estudar Medicina, cruzou-se com apenas duas estudantes negras de outros anos. “Nos hospitais sempre me confundem com a menina que limpa o chão. Se cai qualquer coisa: ‘Você vem aqui, pega o pano, limpa.’ Quantas vezes eu já ouvi isso? Muitas vezes. [Olham para mim]: ‘Ah, é a enfermeira, a técnica.’ Se estou sentada lá na mesa — sabem que é um médico que está ali na mesa — [perguntam]: ‘É você? Ah…’” E Ariana responde: “Vou chamar a pessoa responsável por isso.” Ou então mostra o distintivo na bata: “Está aqui, sou médica.”

Isto acontece com pacientes brancos e negros: “Na verdade, os brancos ficam mais impressionados. Os negros me abordam mais porque não estão acostumados a ver na sua comunidade pessoas em cargos assim de mais prestígio.” Ariana tenta mudar o olhar de quem a ofendeu: um negro não faz só limpezas, é possível que uma médica seja negra.

De facto, ela raramente se cruza com médicas negras — médicos ainda vai vendo, mas poucos. Cresceu a ouvir: “Negro não presta.” E por isso: “Cresci dizendo: ‘Meu Deus, eu sou negra e negro não presta.’ Não tinha orgulho de ser negra. Meu pai era o primeiro a dizer que negro não presta, que negro faz sempre coisa ruim e que não é para ter orgulho de ser negro — ele sendo negro.”

Mas o pai, pedreiro, morreu com orgulho da filha negra. Estava bastante doente, com Alzheimer, quando Ariana soube que tinha conseguido a bolsa para entrar em Medicina — cancelando assim o curso de Pedagogia que estava quase no fim. Chegou a casa, e contou: “Pai, passei em Medicina. Eu acho que ele entendeu. No outro dia faleceu. Isso é uma dor para mim. Ironia do destino, né? Filha passando em Medicina, pai falecendo no outro dia.”

Apesar de tudo, quando pedia dinheiro para livros, para a escola, ele dava. “Era o maior sacrifício.” Mas ele dava. Na época de aulas, tinha o costume de a esperar à noite nas paragens de autocarro, porque o bairro era perigoso e “tem que ficar olhando”. “Sempre me incentivou. Sempre.”
Ela cresceu a ouvir que negro não presta, mas cresceu também a dizer que queria ser médica. Aos 15 anos, estava num hospital com o sobrinho que tinha caído. Virou-se para o médico, até ali brincalhão, “dando risada”, e disse: “Olha, eu estudo muito para ser médica como você.’ Houve um silêncio da parte dele. Aquele que estava brincando, sorrindo, conversando com a gente se fechou. E aí, como eu falo muito baixo, [pensei] que ele não ouviu, falei mais alto: ‘Olha eu estudo muito porque quero ser médica como você, como o senhor.’ Aí ele virou, olhou para mim como se dissesse: ‘Ponha-se no seu lugar, você não vai conseguir.’ [Pausa] Saí dali arrasada. Arrasada.”

Tinha levado “um balde de água fria”. “Mas não desisti por isso, não.” Afinal, Ariana é conhecida por ser “do contra”: “Se tinha aquilo para fazer e ninguém conseguia, eu ficava, ficava, ficava até conseguir.”

Tentou Medicina, antes de entrar em Pedagogia, por três vezes. Numa delas, em que “não passou”, chegou a casa, à varanda de um apartamento numa favela, e “chorou, chorou, chorou”, lembra a mãe, no mesmo sítio, agora numa noite de Fevereiro, já com a filha formada. E o irmão a dizer-lhe: “Você vai alcançar, vai alcançar.”
O irmão não está em casa da mãe na noite em que lá vamos, mas estão algumas das irmãs, sobrinhas e sobrinhos. Os jovens sentam-se na sala, logo à entrada, agarrados aos telemóveis e a olhar para o ecrã da enorme televisão. Vê-se logo a fotografia da cerimónia de formatura de Ariana, em formato gigante: ela de bata, cabelo arranjado, maquilhada. Morro acima, vivem as irmãs, noutras casas. Foi naquela sala que ela estudou e continua a estudar Medicina, com gente a entrar e a sair. No edifício ao lado, fiéis de uma Igreja Evangélica cantam alto, batem palmas.

Quando entrou em Medicina, pagava três mil reais por mês (cerca de 920 euros) — mas tinha uma bolsa do ProUni, um programa do Ministério da Educação que paga 50% da mensalidade a alunos em instituições privadas. Quando estudou Pedagogia, fê-lo ao abrigo das cotas raciais, uma das políticas de acção afirmativa no Brasil que pretendem aumentar a percentagem de população negra nas universidades.
No segundo país com a maior população negra do mundo a seguir à Nigéria, ser negro é pertencer a uma maioria de 51% da população de 200 milhões. Mas o último Censos, de 2010, mostrava que apenas 26% dos universitários eram negros; e apenas 2,66% dos alunos que terminaram o curso de Medicina eram negros, num estudo feito pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais para o canal UOL. Estes números explicam-se, em parte, com a despesa da educação no Brasil: quem estuda em escolas privadas até ao fim do secundário tem mais hipóteses de entrar nas universidades públicas, as melhores.

Para conseguir pagar a universidade privada, Ariana fez uns trabalhos avulsos, como limpar a casa da irmã ou ajudar alguns colegas na faculdade. “É muito difícil. Consegui entrar na universidade porque cheguei num tempo em que meus irmãos já estavam trabalhando e puderam me ajudar também. As cotas ajudam e muito. Como é que a gente que vem da escola pública vai concorrer com esse pessoal da escola privada que não passou por greves de professores e de funcionários? É-lhes cobrado desde que nascem: ‘Vocês têm que ter um nível superior.’ Têm espelhos na família: médicos, engenheiros, professores. Nas famílias pobres, a maioria negras, a mãe é dona de casa, o pai é pedreiro, o pai está desempregado, o pai é bandido, o pai é ladrão.”

Ela estava entre os melhores da turma, diz. Em cirurgia, foi considerada a aluna-padrão. A diferença em relação aos outros é que tudo custava muito mais: saía de casa de madrugada para não apanhar engarrafamentos e garantir que estava nas aulas a tempo e horas, fazia “ginástica” ao dinheiro porque tinha de passar um dia inteiro fora de casa, tinha de comprar livros caríssimos, alguns a “mil, dois mil reais”…

Voltamos à história do convite. Queremos saber o significado daquela frase que ela colocou no final: “Mulher já é discriminada por si só, tem salários inferiores aos dos homens, se for negra ainda pior. Da favela, o pessoal acha que é ladrão. Virei médica: isso é possível.”
Para se ter uma ideia do que diz: com o mesmo nível de escolaridade, as mulheres brancas ganham 68,7% do salário dos homens brancos, enquanto os homens negros ganham metade e as mulheres negras menos ainda, 38,5% (dados retirados do estudo Igualdade Racial no Brasil: reflexões no Ano Internacional dos Afrodescendentes, 2013, IPEA).

Ariana está num hospital militar como voluntária (mas tem um salário). Quer fazer bancos em hospitais do interior para ganhar algum dinheiro e estudar para fazer a prova de cirurgia geral. “Vou cursar dois anos de cirurgia geral em hospitais e terminando os dois anos vou prestar novamente prova para fazer residência em cirurgia pediátrica durante três anos.” Cirurgia porquê? “Gosto de resolver. E cirurgião resolve muito.”


Fonte: Hoje Tem

Um comentário:

Anônimo disse...

tenho 17 anos. Moro em comunidade tbm, esse texto me inspirou bastante. Sou branco, mas nunca vi uma pessoa de favela se tornando medico, e isso estava me preocupando muito, por isso decidi conferir na internet se alguém já conseguiu, espero conseguir isso também.
Um dia vai chegar o dia!