sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Teresa de Ávila, uma mulher apaixonada

Há em Teresa uma profunda consciência de que o corpo é essencial não apenas para a experiência mística, mas para a própria espiritualidade cristã.

Por Maria Clara Bingemer

A Igreja Católica celebra em 2015 os 500 anos de uma de suas grandes místicas: Teresa de Ahumada, mais conhecida como Teresa de Ávila, ou mais ainda como Teresa de Jesus.  Nascida em 1515, em Ávila, Castela, e falecida em 1582, é, com justiça,  considerada uma das mais importantes personalidades religiosas do período contra reformista.

Canonizada por Gregório XV (1622), tornou-se a primeira mulher a receber o título de doutora da Igreja, por decreto de Paulo VI (1970). Essa  carmelita foi, ao lado de São João da Cruz, a reformadora da Ordem do Carmo ao fundar a Ordem das Carmelitas Descalças, mais próxima das raízes do ideal místico contemplativo. Sua iniciativa angariou-lhe muitos inimigos e um meio de defender seus ideais foi a decisão de escrever sua autobiografia, sugerida por padres confessores e amigos.

A escrita, no entanto, não era apenas exercício intimista ou diletante para  Teresa, mas uma forma de ação evangelizadora e formativa, que aplicava com as outras irmãs pelas quais era responsável e que até os dias de hoje encantam e alimentam a vida espiritual de muitas pessoas, leigos ou religiosos, apaixonados por suas reflexões.

Há em Teresa uma profunda consciência de que o corpo é essencial não apenas para a experiência mística, mas para a própria espiritualidade cristã. Em sua autobiografia, ela defende firmemente a valorização do corpo contra teorias platonizantes que pregavam uma espiritualidade “etérea”. Diz-nos a Santa: “(...) nós não somos anjos, ao contrário, temos corpo. Querer fazer-nos anjos estando na terra [...] é desatino. Ao contrário, é preciso ter apoio, o pensamento, para a vida normal. [...] em tempo de secura, é muito bom amigo Cristo, porque o vemos Homem, e o vemos com fraquezas e tormentos, e faz companhia.

Essa consciência do corpo como locus, onde a experiência mística se dá, aparece tanto em sua prosa, notavelmente na autobiografia “Vida”, como em sua lírica, que se destaca pelo pathos que a atravessa. São versos que impressionam pelo erotismo místico, pois, como a própria Teresa confessa em um de seus poemas,”nacidos del fuego del amor de Dios que en si tenía”.

A maior e mais evidente característica da vida e pessoa de Teresa de Ávila é, sem dúvida, sua condição de perpétua enamorada de Deus.  Ao narrar suas experiências místicas, em nenhum momento censura a dimensão erótica de sua experiência de Deus, a quem chama de Amado, a quem dedica poesias que deixam perceber a chama que a devora de amor e paixão por esse Deus que a cria e a faz para ele. Isso autentica e concede veracidade à sua condição de mística, assim reconhecida pela Igreja e por quantos entram em contato com sua experiência espiritual e sua esplêndida relação com Deus.


Mulher profundamente feminina,  que contemplou a Beleza Infinita, o Sumo Bem, a glória infinita da divindade, Teresa ficou para sempre ferida pelo encanto sob o qual este Outro a seduziu e fascinou.  Ela passou a vida  em busca de um novo pressentir desta visão que um dia a deslumbrou tão fortemente, que já não pode esquecer-se do que lhe foi dado ver e perceber, e prefere morrer antes que perder a presença amada que a fascina com sua beleza e seu fulgor.  Daí os versos tão radicais que escreveu: “Muero porque no muero”.  O desejo de morrer se explica, pois na morte esperava encontrar o Amado de sua vida sem o véu da carne que impossibilita um encontro total e pleno.

Assim também acontece com a narrativa de sua experiência de êxtase: “Via um anjo ao pé de mim,...Via-lhe nas mãos um dardo de oiro comprido e, no fim da ponta de ferro, me parecia que tinha um pouco de fogo. Parecia-me meter-me este pelo coração algumas vezes e que me chegava às entranhas. Ao tirá-lo, dir-se-ia que as levava consigo, e me deixava toda abrasada em grande amor de Deus. Era tão intensa a dor, que me fazia dar aqueles queixumes e tão excessiva a suavidade que me causava esta grandíssima dor, que não se pode desejar que se tire, nem a alma se contenta com menos de que com Deus. Não é dor corporal mas espiritual, embora o corpo não deixe de ter a sua parte, e até muita. É um requebro tão suave que têm entre si a alma e Deus, que suplico à Sua bondade o dê a gostar a quem pensar que minto... parece que o Senhor arrebata a alma e a põe em êxtase, e assim não há lugar para ter pena nem padecer, porque vem logo o gozar.”


Contemplar a experiência de Teresa é deparar-se com um dado antropológico original, já que uma experiência como a sua inaugura em seu processo de conhecimento amoroso na relação com o Deus Transcendente algo da Nova Criação. Sua experiência mística a recria por completo, fazendo-a experimentar-se como nova e recém-saída das mãos do Criador. Eis porque seu processo místico é inseparável e paradoxalmente gozoso e doloroso, sem deixar por isso de ser amoroso. Nestes mistérios, Teresa de Jesus é mestra e doutora.  Não admira que sua pessoa perpetuamente enamorada continue fascinando, hoje como ontem, homens e mulheres sedentos de um amor que os recrie e dê sentido a suas vidas.


Maria Clara Bingemer
é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. É autora de diversos livros, entre eles, ¿Un rostro para Dios?, de 2008, e A globalização e os jesuítas, de 2007. Escreveu também vários artigos no campo da Teologia.

Fonte: Dom Total


Nenhum comentário: