Há em Teresa uma profunda
consciência de que o corpo é essencial não apenas para a experiência mística,
mas para a própria espiritualidade cristã.
Por Maria Clara Bingemer
A Igreja Católica celebra em 2015
os 500 anos de uma de suas grandes místicas: Teresa de Ahumada, mais conhecida
como Teresa de Ávila, ou mais ainda como Teresa de Jesus. Nascida em 1515, em Ávila, Castela, e
falecida em 1582, é, com justiça,
considerada uma das mais importantes personalidades religiosas do período
contra reformista.
Canonizada por Gregório XV
(1622), tornou-se a primeira mulher a receber o título de doutora da Igreja,
por decreto de Paulo VI (1970). Essa
carmelita foi, ao lado de São João da Cruz, a reformadora da Ordem do
Carmo ao fundar a Ordem das Carmelitas Descalças, mais próxima das raízes do
ideal místico contemplativo. Sua iniciativa angariou-lhe muitos inimigos e um
meio de defender seus ideais foi a decisão de escrever sua autobiografia,
sugerida por padres confessores e amigos.
A escrita, no entanto, não era
apenas exercício intimista ou diletante para
Teresa, mas uma forma de ação evangelizadora e formativa, que aplicava
com as outras irmãs pelas quais era responsável e que até os dias de hoje encantam
e alimentam a vida espiritual de muitas pessoas, leigos ou religiosos,
apaixonados por suas reflexões.
Há em Teresa uma profunda
consciência de que o corpo é essencial não apenas para a experiência mística,
mas para a própria espiritualidade cristã. Em sua autobiografia, ela defende firmemente
a valorização do corpo contra teorias platonizantes que pregavam uma
espiritualidade “etérea”. Diz-nos a Santa: “(...) nós não somos anjos, ao
contrário, temos corpo. Querer fazer-nos anjos estando na terra [...] é
desatino. Ao contrário, é preciso ter apoio, o pensamento, para a vida normal.
[...] em tempo de secura, é muito bom amigo Cristo, porque o vemos Homem, e o
vemos com fraquezas e tormentos, e faz companhia.
Essa consciência do corpo como
locus, onde a experiência mística se dá, aparece tanto em sua prosa,
notavelmente na autobiografia “Vida”, como em sua lírica, que se destaca pelo
pathos que a atravessa. São versos que impressionam pelo erotismo místico,
pois, como a própria Teresa confessa em um de seus poemas,”nacidos del fuego
del amor de Dios que en si tenía”.
A maior e mais evidente
característica da vida e pessoa de Teresa de Ávila é, sem dúvida, sua condição
de perpétua enamorada de Deus. Ao narrar
suas experiências místicas, em nenhum momento censura a dimensão erótica de sua
experiência de Deus, a quem chama de Amado, a quem dedica poesias que deixam
perceber a chama que a devora de amor e paixão por esse Deus que a cria e a faz
para ele. Isso autentica e concede veracidade à sua condição de mística, assim
reconhecida pela Igreja e por quantos entram em contato com sua experiência
espiritual e sua esplêndida relação com Deus.
Mulher profundamente
feminina, que contemplou a Beleza
Infinita, o Sumo Bem, a glória infinita da divindade, Teresa ficou para sempre
ferida pelo encanto sob o qual este Outro a seduziu e fascinou. Ela passou a vida em busca de um novo pressentir desta visão
que um dia a deslumbrou tão fortemente, que já não pode esquecer-se do que lhe
foi dado ver e perceber, e prefere morrer antes que perder a presença amada que
a fascina com sua beleza e seu fulgor.
Daí os versos tão radicais que escreveu: “Muero porque no muero”. O desejo de morrer se explica, pois na morte
esperava encontrar o Amado de sua vida sem o véu da carne que impossibilita um
encontro total e pleno.
Assim também acontece com a
narrativa de sua experiência de êxtase: “Via um anjo ao pé de mim,...Via-lhe
nas mãos um dardo de oiro comprido e, no fim da ponta de ferro, me parecia que
tinha um pouco de fogo. Parecia-me meter-me este pelo coração algumas vezes e
que me chegava às entranhas. Ao tirá-lo, dir-se-ia que as levava consigo, e me
deixava toda abrasada em grande amor de Deus. Era tão intensa a dor, que me
fazia dar aqueles queixumes e tão excessiva a suavidade que me causava esta
grandíssima dor, que não se pode desejar que se tire, nem a alma se contenta
com menos de que com Deus. Não é dor corporal mas espiritual, embora o corpo
não deixe de ter a sua parte, e até muita. É um requebro tão suave que têm
entre si a alma e Deus, que suplico à Sua bondade o dê a gostar a quem pensar
que minto... parece que o Senhor arrebata a alma e a põe em êxtase, e assim não
há lugar para ter pena nem padecer, porque vem logo o gozar.”
Contemplar a experiência de
Teresa é deparar-se com um dado antropológico original, já que uma experiência
como a sua inaugura em seu processo de conhecimento amoroso na relação com o
Deus Transcendente algo da Nova Criação. Sua experiência mística a recria por
completo, fazendo-a experimentar-se como nova e recém-saída das mãos do
Criador. Eis porque seu processo místico é inseparável e paradoxalmente gozoso
e doloroso, sem deixar por isso de ser amoroso. Nestes mistérios, Teresa de
Jesus é mestra e doutora. Não admira que
sua pessoa perpetuamente enamorada continue fascinando, hoje como ontem, homens
e mulheres sedentos de um amor que os recrie e dê sentido a suas vidas.
Maria Clara Bingemer
é teóloga, professora e decana do
Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. É autora de diversos livros,
entre eles, ¿Un rostro para Dios?, de 2008, e A globalização e os jesuítas, de
2007. Escreveu também vários artigos no campo da Teologia.
Fonte: Dom Total
Nenhum comentário:
Postar um comentário