sábado, 11 de junho de 2016

Um País que não ama suas meninas e suas mulheres

Aos meus ouvidos chega a notícia: no Rio de Janeiro, uma menina foi vitima de um estupro coletivo. Mas diante de toda a comoção que se gera na sociedade, me quedo com uma inquietação: Por que diante de todas as denúncias apresentadas, por que diante do vídeo, do relato, do corpo massacrado, ao invés de buscar encontrar os culpados, parte significativa da sociedade vem usando sua energia para destacar a participação ativa da adolescente e sua culpa no ocorrido?

 Por Viviana Santiago

Diante da notícia desse, mas também dos outros estupros coletivos vivenciados no Brasil (não nos esqueçamos de Castelo do Piauí), pode-se ver o mesmo movimento social: denúncia, profunda comoção frente a divulgação da notícia e, em seguida, a divisão da sociedade em quatro grupos plenamente visíveis: o primeiro grupo busca encontrar a culpa das vítimas nesse processo, o segundo grupo procura naturalizar o crime como se homens fossem seres incapazes de conter seus desejos sexuais, um terceiro grupo que pensa que casos como esse são isolados e não representam nenhum aspecto da prática da sociedade, além de um quarto grupo que desde o primeiro momento vai demarcar esse tipo de crime como violência sexista e de gênero.

Mas é na busca da culpabilidade da vítima que gostaria de me deter.

Os processos de socialização numa sociedade machista e patriarcal reforçam um lugar social de construção de masculinidade que não se baseia na vivência de relações harmônicas, mas antes disso, reiteram que os corpos - e a vida - das mulheres existem para a satisfação dos homens e os mesmos aprendem muito cedo a consumir os corpos das mulheres como se fossem objetos. Os homens aprendem que seu desejo é irrefreável, aprendem que são superiores às mulheres, aprendem que as mulheres têm menos valor que eles e que não existe punição para aqueles que cometem crimes contra as mulheres, inferiores que são elas, numa sociedade patriarcal, são bocas-sem-não, corpos-sem-agência, vidas-invisíveis.

Uma estrutura social que se baseia numa superioridade masculina e na naturalização de práticas afetivo-sexuais violentas, são os elementos que fazem com que os crimes de estupro informados à sociedade, ainda que bárbaros, não sejam casos isolados ou episódicos, mas se insiram num conjunto de violências que limita o desenvolvimento livre e saudável de meninas e mulheres, e, ao mesmo tempo em que isenta de culpa os agressores, explicita a coparticipação e joga a responsabilidade nas meninas e mulheres.

É preciso buscar entender que tratar apenas como abominação e monstruosidade o crime e os casos, tem o efeito social de satanização dos agressores, mas não evidencia sua construção nessa sociedade. Sim, são monstros. Mas são nossos monstros. É preciso identificar que aspectos da vida em sociedade contribuem para a conformação dessa mentalidade, é preciso identificar que o princípio que rege aqueles que encoxam as mulheres no metrô, aqueles que abusam de mulheres embriagadas e aqueles que drogam, estupram e gravam um vídeo, é o mesmo. É a certeza de sua impunidade, de que aqueles corpos estão para servi-los.

Uma sociedade que proíbe a discussão de gênero reforça essa mentalidade, pois abona e naturaliza práticas violentas, perdendo a oportunidade de resinificar os papéis sociais, uma história que invisibiliza a participação das mulheres em sua construção, uma mídia que reiteradamente objetifica as mulheres, uma produção artístico-cultural que ensina que meninas são novinhas e mulheres no exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos são trepadeiras, recobrem a população desde o início de suas vidas de valores que não responsabilizamos agressores, mas que punem as mulheres, pois trata abuso como desejo sexual e masculino como compulsão.

A bárbarie da violência sofrida reitera que o sexo foi determinante, portanto se trata de uma violência sexista. O emprego de extrema violência e intencionalidade do gesto, reforçam um caráter de desprezo pela mulher e pelos papéis sociais que são atribuídos às mesmas.

Como ainda podemos buscar a culpa da vítima?

Essa é a sociedade em que vivemos, em que todas as mulheres que são abusadas sexualmente, precisam responder com que roupa estavam; Por que estavam naquele lugar; Porque aceitaram a cerveja daquele copo; Por que aceitou voltar para casa com ele.

Essa é a sociedade que precisa, diante de um vídeo de violência, não buscar pelos agressores, mas revirar a vida da vítima em busca de indícios de um desvio de moralidade que justifiquem a violência vivida.

Essa é a sociedade que vai dizer que as mulheres provocam os homens e que se respeitassem a si mesmas não utilizariam determinadas roupas ou buscariam determinados espaços; Essa é a sociedade que constrói uma masculinidade tão monstruosa que dá a licença para que todos os homens que assim o desejem, sejam agressores.

Esse é o País que não ama as suas meninas e suas mulheres.

*Viviana Santiago é especialista em gênero da Plan International Brasil
Fonte: Brasil Post

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