Aos meus ouvidos chega a notícia:
no Rio de Janeiro, uma menina foi vitima de um estupro coletivo. Mas diante de
toda a comoção que se gera na sociedade, me quedo com uma inquietação: Por que
diante de todas as denúncias apresentadas, por que diante do vídeo, do relato,
do corpo massacrado, ao invés de buscar encontrar os culpados, parte
significativa da sociedade vem usando sua energia para destacar a participação
ativa da adolescente e sua culpa no ocorrido?
Diante da notícia desse, mas
também dos outros estupros coletivos vivenciados no Brasil (não nos esqueçamos
de Castelo do Piauí), pode-se ver o mesmo movimento social: denúncia, profunda
comoção frente a divulgação da notícia e, em seguida, a divisão da sociedade em
quatro grupos plenamente visíveis: o primeiro grupo busca encontrar a culpa das
vítimas nesse processo, o segundo grupo procura naturalizar o crime como se
homens fossem seres incapazes de conter seus desejos sexuais, um terceiro grupo
que pensa que casos como esse são isolados e não representam nenhum aspecto da
prática da sociedade, além de um quarto grupo que desde o primeiro momento vai
demarcar esse tipo de crime como violência sexista e de gênero.
Mas é na busca da culpabilidade
da vítima que gostaria de me deter.
Os processos de socialização numa
sociedade machista e patriarcal reforçam um lugar social de construção de
masculinidade que não se baseia na vivência de relações harmônicas, mas antes
disso, reiteram que os corpos - e a vida - das mulheres existem para a
satisfação dos homens e os mesmos aprendem muito cedo a consumir os corpos das
mulheres como se fossem objetos. Os homens aprendem que seu desejo é
irrefreável, aprendem que são superiores às mulheres, aprendem que as mulheres
têm menos valor que eles e que não existe punição para aqueles que cometem
crimes contra as mulheres, inferiores que são elas, numa sociedade patriarcal,
são bocas-sem-não, corpos-sem-agência, vidas-invisíveis.
Uma estrutura social que se baseia
numa superioridade masculina e na naturalização de práticas afetivo-sexuais
violentas, são os elementos que fazem com que os crimes de estupro informados à
sociedade, ainda que bárbaros, não sejam casos isolados ou episódicos, mas se
insiram num conjunto de violências que limita o desenvolvimento livre e
saudável de meninas e mulheres, e, ao mesmo tempo em que isenta de culpa os
agressores, explicita a coparticipação e joga a responsabilidade nas meninas e
mulheres.
É preciso buscar entender que
tratar apenas como abominação e monstruosidade o crime e os casos, tem o efeito
social de satanização dos agressores, mas não evidencia sua construção nessa
sociedade. Sim, são monstros. Mas são nossos monstros. É preciso identificar
que aspectos da vida em sociedade contribuem para a conformação dessa
mentalidade, é preciso identificar que o princípio que rege aqueles que encoxam
as mulheres no metrô, aqueles que abusam de mulheres embriagadas e aqueles que
drogam, estupram e gravam um vídeo, é o mesmo. É a certeza de sua impunidade,
de que aqueles corpos estão para servi-los.
Uma sociedade que proíbe a
discussão de gênero reforça essa mentalidade, pois abona e naturaliza práticas
violentas, perdendo a oportunidade de resinificar os papéis sociais, uma
história que invisibiliza a participação das mulheres em sua construção, uma
mídia que reiteradamente objetifica as mulheres, uma produção
artístico-cultural que ensina que meninas são novinhas e mulheres no exercício
de seus direitos sexuais e reprodutivos são trepadeiras, recobrem a população
desde o início de suas vidas de valores que não responsabilizamos agressores,
mas que punem as mulheres, pois trata abuso como desejo sexual e masculino como
compulsão.
A bárbarie da violência sofrida
reitera que o sexo foi determinante, portanto se trata de uma violência
sexista. O emprego de extrema violência e intencionalidade do gesto, reforçam
um caráter de desprezo pela mulher e pelos papéis sociais que são atribuídos às
mesmas.
Como ainda podemos buscar a culpa
da vítima?
Essa é a sociedade em que
vivemos, em que todas as mulheres que são abusadas sexualmente, precisam
responder com que roupa estavam; Por que estavam naquele lugar; Porque
aceitaram a cerveja daquele copo; Por que aceitou voltar para casa com ele.
Essa é a sociedade que precisa,
diante de um vídeo de violência, não buscar pelos agressores, mas revirar a
vida da vítima em busca de indícios de um desvio de moralidade que justifiquem
a violência vivida.
Essa é a sociedade que vai dizer
que as mulheres provocam os homens e que se respeitassem a si mesmas não
utilizariam determinadas roupas ou buscariam determinados espaços; Essa é a
sociedade que constrói uma masculinidade tão monstruosa que dá a licença para
que todos os homens que assim o desejem, sejam agressores.
Esse é o País que não ama as suas
meninas e suas mulheres.
*Viviana Santiago é especialista
em gênero da Plan International Brasil
Fonte: Brasil Post
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