Há mais braços ocupados em fazer
a máquina de moer mulheres funcionar do que em destruí-la
É antiga a máquina criada para
violentar e agredir mulheres, mas seus mecanismos continuam funcionando – e
muito bem – nos dias de hoje.
Tec, tec, tec. Ouve o som? É o
barulho das engrenagens funcionando perfeitamente, fazendo tudo correr como
deveria. Com a precisão de um relógio, movem-se os mecanismos dessa máquina
gigante, antiga, mas que ainda funciona que é uma beleza para cumprir seu
principal objetivo: triturar mulheres.
São muitas as engrenagens e
complexos seus movimentos, mas se você der um ou dois passinhos para trás,
pegando alguma distância para vê-la como um todo, é possível observar que seu
funcionamento, na verdade, é tão simples que dispensa a existência daqueles
volumosos manuais de instruções.
Para que funcione, é preciso
abastecê-la com a ideia de que mulheres não são pessoas. São santas ou deusas;
carne barata ou lixo; mas nunca pessoas. Então basta colocar uma mulher de um
lado – e tec, tec, tec, soará a máquina, ruidosa – para vê-la sair do outro
lado devidamente transformada em vítima.
Uma mulher agredida por seu
marido. Ou assassinada pelo seu ex. Ou uma moça agredida por um desconhecido a
quem ousou dizer “não”. Ou ainda uma jovem violentada por mais de trinta
homens. São inúmeras as possibilidades. Todas demonstram como estão funcionando
direitinho as engrenagens.
Funciona assim: primeiro, cria-se
a ideia de que os corpos das mulheres estão à disposição. Que é ok violentar e
agredir mulheres. Até engraçado, ou mesmo esperado. Então uma mulher sofre a
violência. Se denuncia, os mecanismos de fazer com que seja desacreditada logo
são postos para funcionar:
– Estava usando a roupa certa?
Era recatada e do lar? Usava drogas? O que estava fazendo sozinha? Será que não
queria prejudicar o homem e inventou tudo?
Na era medieval ou nos tempos de
internet, o modus operandi é o mesmo: trazem a vítima em praça pública.
Devassam sua vida, questionam suas escolhas, tacam pedras. Julgam se é culpada
– e só pode ser – caso não se encaixe no padrão de “vítima perfeita”– e nunca
se encaixa. Sempre tem um “porém”, um detalhe qualquer que faça com que os
julgadores se sintam tranquilizados com a violência que ela sofreu e com o
veredicto de “culpada” que ajudaram a carimbar.
– Vai ver ela mereceu – dizem,
mas é o tec, tec, tec da máquina que está falando.
Não é, no entanto, máquina
totalmente automática: precisa de braços para funcionar. Em primeiro lugar,
precisa dos braços (e corpos inteiros) daqueles que puxam o gatilho, dão o
soco, abusam psicologicamente ou estupram. Mas esses operadores da máquina
quase não são visíveis daqui. Somem. Há outras engrenagens na frente tapando a
visão, fazendo com que sejam esquecidos.
São engrenagens operadas pelos
braços de delegados, juizes ou policiais que constrangem as vítimas que
denunciam. Pelas pessoas que questionam a vítima com um ímpeto que não
direcionam aos agressores. Por quem acha que ela pediu. Por quem acredita que
ela mereceu. Por quem compartilha vídeos e fotos que expõem a violência que ela
sofreu. Por quem faz piadas com o assunto. Por quem faz malabarismos para
provar que não foi tão grave assim. Por quem passa adiante a ideia de que
mulheres é que precisam aprender a temer e a entrar na linha. Por quem aprova e
incentiva o comportamento dos homens que agridem.
São tantos braços operando tantos
mecanismos que fica fácil encobrir e esquecer dos verdadeiros culpados e dos
mecanismos que os criaram; à esta altura, a mulher que sofreu a violência é a
única responsável, ainda que dê para ouvir o som de seus ossos sendo triturados
nas engrenagens na máquina de moer mulheres: tec, tec, tec.
Vê como os mecanismos funcionam
em perfeita sincronia? As engrenagens da frente e de trás, as que possibilitam
e as que justificam, são as que movem as engrenagens sujas de sangue, que
violentam e matam, que mastigam a mulher, por dentro e por fora, para depois
cuspir. Se uma mulher é triturada, não foi por uma peça ou outra; mas pela
máquina inteira.
É preciso mais que um, dois ou
trinta homens para violentar uma mulher: é preciso uma multidão validando toda
a violência, colocando a máquina da opressão para funcionar. Enquanto as
mulheres são isoladas, os agressores nunca estão sozinhos.
Da mesma forma, para fazer essa
máquina parar de funcionar, não basta tirar uma peça ou outra. É preciso
arrancar todas. Tirar todo o combustível. Arrebentar fios e engrenagens. Talvez
por isso os mecanismos tenham funcionado há centenas de anos, sem parar: porque
há mais braços ocupados em fazer a máquina de moer mulheres funcionar do que
ocupados em destruí-la. Onde estão os seus?
Não há nada que indique que as
engrenagens deixarão de funcionar. Mas, enquanto funcionar uma máquina tão
antiga quanto a crueldade, não podemos dizer que vivemos em uma sociedade
avançada. A existência dessa máquina nos mantém eternamente presos ao passado.
E assim ela segue, com seu tec,
tec, tec ininterrupto. Dessa vez, foram trinta homens ao mesmo tempo
violentando uma garota. Da próxima, serão cinquenta? Cem? Quantos agressores
são necessários para confirmar a existência da violência? A capacidade da
máquina de moer mulheres cresce em progressão geométrica, enquanto seus
mecanismos permanecem invisíveis para muita gente.
Tec, tec, tec. A máquina produz
mais vítimas hoje. Tec, tec, tec. Mais mulheres serão vítimas amanhã. Não é
possível saber quando isso irá parar. Mas o primeiro passo para chegar a essa
resposta está na atitude de enxergar a máquina – e então perceber que é
possível se recusar a ser uma das engrenagens.
Fonte: Carta Capital
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