Existem mais de 90 substâncias usadas por agressores para
subjugar as vítimas
Em um momento de descuido, Talita (nome fictício), 23, notou
que não estava normal. Era um show de rock em São Paulo, há três anos. Ela se
sentiu tonta, sonolenta e não conseguia falar. A última coisa de que se lembra
é de um desconhecido perguntando se ela estava bem. No outro dia, Talita
acordou sozinha em um quarto de motel. Com dores pelo corpo, tinha certeza de
que tinha sido violentada, mas não se lembrava por quem, nem como.
Assim como boa parte das vítimas de violência sexual no
Brasil, ela não prestou queixa por medo dos julgamentos. Neste mês, o caso do
estupro coletivo da adolescente carioca de 16 anos, filmado e publicado nas
redes sociais, chocou o país. Casos como esses são frequentes no Brasil e na
América Latina, onde mulheres e adolescentes são dopadas para não reagir a um
estupro.
Em Minas, de janeiro a maio, mais da metade (54%) das
vítimas de violência sexual tinham menos de 18 anos – 438 pessoas foram
estupradas no período no Estado. Em São Paulo, de janeiro a abril, houve ao
menos um caso por dia de estupro de vulnerável.
A delegada Luciana Libório, da Delegacia Especializada no
Combate à Violência Sexual, afirma que esses casos são frequentes. “Chegam à
delegacia denúncias em que a vítima acredita que tenha sido drogada. Nessas
ocorrências, pedimos um exame toxicológico feito pela Polícia Civil por meio da
coleta da urina da vítima para verificar se há algum indício de drogas. Com a
confirmação, podemos falar de estupro de vulnerável”, explica.
As substâncias usadas por agressores para deixar a vítima
vulnerável são conhecidas como “drogas do estupro”. Geralmente sem cor, gosto e
cheiro, agem no sistema nervoso central e deixam pessoa sonolenta e
inconsciente. A Organização das Nações Unidas (ONU) alertou recentemente sobre
o crescimento rápido dessas drogas e o surgimento de outras substâncias do
tipo. Segundo a entidade, remédios utilizados em prática de violência sexual
são de fácil acesso.
De acordo com o médico André Valle de Bairros, professor de
toxicologia clínica da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), mais de 90
substâncias podem ser utilizadas com o intuito deixar a vítima incapaz de
reagir. “As drogas do estupro mais comuns no mundo são álcool, GHB (ácido
gama-hidroxibutírico ou ‘ecstasy líquido’), flunitrazepam (Rohypnol) e
quetamina. Entretanto, existem outras que, misturadas ao álcool ou ingeridas em
grandes quantidades, são capazes de gerar uma submissão química da vítima,
como, por exemplo, os anti-histamínicos, como a difenidramina (Dramin)”.
Proibido nos Estados Unidos, o flunitrazepam pertence à
classe das benzodiazepinas e é vendido no Brasil com receita médica. Bairros
destaca que a classe médica brasileira não tem o hábito de indicar essa droga
(que atua no combate de transtornos mentais, como ansiedade e depressão). Por
outro lado, o clonazepan faz esse papel. “O Rivotril é muito consumido no país.
Ele pode ser comprado mediante apresentação da receita. Quando a vítima é
dopada com ele, fica difícil comprovar, pois não é detectado na urina”,
explica.
Silvestre. Brundanga, estramônio, trombeta, “sopro do diabo”
são os nomes de drogas com o princípio ativo escopolamina, a mais conhecida da
América Latina. Em sua versão comercial, não é capaz de dopar uma vítima, mas a
substância obtida por meio da erva Datura suaveolens L. atua obre o sistema
colinérgico, responsável pela memorização de curto prazo. Ao ingeri-la, o
indivíduo torna-se incapaz de lembrar sobre o que aconteceu no período curto, o
que o torna suscetível à violência sexual. Não há dados sobre seu consumo no
Brasil.
Aliás, é difícil mensurar com exatidão o uso desses
compostos como “drogas do estupro”, uma vez que muitas vítimas não denunciam os
casos para a abertura de uma investigação, ou pelo fato de essas substâncias
ficarem camufladas devido a sua baixa concentração nos fluidos corporais.
Dopada com quetamina,
garota acorda com indícios de violência
Sintetizada pela primeira vez em 1962, a quetamina era usada
como anestésico dissociativo para uso humano e, principalmente, veterinário.
Após os anos 70, ela passou a ser utilizada como recreação, devido a seus
efeitos alucinógenos. Atualmente, ela é considerada uma das “drogas do
estupro”. Trata-se de uma substância que, quando ingerida ou inalada em altas
quantidades, pode provocar a perda de consciência, amnésia e até mesmo a morte.
Em janeiro de 2015, Diana (nome fictício) conseguiu a droga
para ser utilizada como entorpecente junto com seu namorado. Por ser um
relacionamento abusivo e complicado, Diana conta que foi dopada e ficou
completamente inconsciente. Quando acordou, viu que estava sangrando e percebeu
indícios em seu corpo da violência sexual cometida pelo próprio namorado. Desde
então, a jovem de 24 anos faz tratamento psicológico para tentar superar o
trauma. Ela não prestou queixa sobre o ocorrido.
O velho clichê de “tomar conta do seu copo em festas” serve
como prevenção, pois as drogas do estupro precisam ser ingeridas para surtir
efeito. Embora a cultura do estupro possibilite casos como de Talita, de Diana
e da garota do Rio de Janeiro, o cuidado é fundamental.
Já para a indústria farmacêutica, a ONU recomenda que
medidas de segurança sejam desenvolvidas (por exemplo, adicionar cores e
sabores a essas drogas). Entretanto, isso ainda não é feito. (MA)
Fonte: O Tempo
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