Mesmo com a constante luta contra
o estigma, o preconceito e a discriminação dos trabalhadores do sexo, por que
ainda é tão difícil para nossa sociedade aceitar a prostituição como um
trabalho?
Por Clariana Zanutto – Fotos
Laura de Avelar Fonseca – Revista da Cultura
Segundo a Classificação
Brasileira de Ocupações, disponível no Ministério do Trabalho e Emprego, o
título Profissional do sexo, sob o número 5198-05, abrange as seguintes
categorias: “Garota de programa, Garoto de programa, Meretriz, Messalina,
Michê, Mulher da vida, Prostituta, Trabalhador do sexo”. Já a descrição sumária
de suas funções engloba atividades como: “Buscam programas sexuais; atendem e
acompanham clientes; participam em ações educativas no campo da sexualidade”.
As condições de atuação, ali descritas são: “Trabalham por conta própria, em
locais diversos e horários irregulares. No exercício de algumas das atividades,
podem estar expostos a intempéries e a discriminação social. Há ainda riscos de
contágios de DST, e maus-tratos, violência de rua e morte”.
Foto: Laura de Avelar Fonseca
Mesmo após o reconhecimento, em
2002, como uma das 600 ocupações brasileiras – quando exercida por maiores de
18 anos –, o profissional do sexo continua sofrendo estigmas, preconceitos,
vulnerabilidades e discriminações para conseguir trabalhar e ter seus direitos,
além de um nó na cabeça quando se trata das nossas leis. Um exemplo disso é que
o oferecimento de serviços sexuais não é ilegal no Brasil, mas ser proprietário
ou gerente de local onde se pratica o sexo comercial e contratar pessoas para
atuar nesse ramo ainda é considerado crime, punível com prisão.
É por isso que falar aqui no
Brasil que a prostituição é uma das profissões mais antigas do mundo, como
sempre se ouviu por aí, “é um dizer vazio, defensivo e rasteiro”, segundo José
Carlos Sebe Bom Meihy, historiador e pesquisador da Universidade do Grande Rio
e da USP e autor do livro Prostituição à brasileira. Para ele, “até hoje, são
poucos os grupos sociais que acatam a prostituição como profissão
regulamentada ou atividade comercial legitimada. Não deixa, contudo, de ser
irônico – ou contraditório – taxá-la como ‘profissão’ exatamente em um momento
em que se luta pela sua regulamentação”.
Aliás, a regulamentação da
prostituição por aqui é uma questão antiga. Alguns projetos de lei, como os dos
deputados federais Fernando Gabeira (em 2003) e Eduardo Valverde (em 2004)
acabaram não sendo aprovados. Em 2012, o deputado federal Jean Wyllys protocolou
o projeto de lei (PL) 4.211/2012, que atualmente tramita na Câmara e conhecido
como PL Gabriela Leite. Gabriela era prostituta e fundou a Rede Brasileira de
Prostitutas – formada hoje por mais de 30 organizações de classe – e a ONG
Davida – Prostituição, Direitos Civis e Saúde, instituição que defende os
profissionais do sexo.
A proposta do projeto é de
“Regulamentar a atividade dos profissionais do sexo, cujo exercício remonta à
antiguidade e que sujeita a injustiças e negação de direitos os profissionais,
cuja existência nunca deixou de ser fomentada pela própria sociedade que a
condena por um moralismo superficial causador de marginalização de segmento
numeroso da sociedade”, diz trecho do PL disponível na íntegra no site do
deputado federal Jean Wyllys.
PROTAGONISTAS
Ex-prostituta, militante desde a
ditadura militar, amiga de Gabriela por muitos anos e hoje à frente do Grupo de
Mulheres Prostitutas do Estado do Pará (Gempac), Lourdes Barreto, 73 anos,
simboliza conquistas marcantes das mulheres marginalizadas de Belém e do
Brasil. Com quase 50 anos de trabalho dentro do mundo da prostituição – e mais
de 30 na batalha a favor da prevenção da Aids –, ela afirma que sempre se viu
como uma trabalhadora sexual. “Sempre encarei como um trabalho, nunca como
outra coisa. Nunca me vi como uma pecadora ou uma criminosa fazendo alguma
coisa errada.”
Aos
15 anos, depois de sofrer violência sexual dentro de casa, deixou a residência
e se apoiou no mundo da prostituição, um caminho que cursou sempre com muita
dignidade. “Até tive oportunidade de trabalhar com outras coisas, mas escolhi a
prostituição pelo fator da liberdade, de conhecer outros mundos, outras
histórias. Nunca fui cafetina, nunca trabalhei em cabaré, sempre trabalhei para
mim, para não ficar sem dinheiro. E não é qualquer mulher que tem coragem não…
Tem que ter talento, determinação e muita responsabilidade!”
A história de Lola Benvenutti é
bem diferente. “Eu achava poderoso ser puta. Alguém querer pagar para estar
comigo me parecia surreal, me sentia desejada, necessária para a satisfação dos
prazeres. Decidi criar um blog, no qual eu relatava as minhas experiências,
fiz algumas fotos e coloquei um anúncio em um site.” Ex-garota de programa,
autora do livro O prazer é todo nosso, colunista da revista TPM, formada em
Letras na Universidade Federal de São Carlos e atualmente cursando mestrado em
Educação Sexual na Universidade Estadual Paulista, Lola – codinome de Gabriela
Natália da Silva, inspirado na obra Lolita, de Vladimir Nabokov (1899-1977) –,
hoje com 23 anos, achava que trabalhar como prostituta era divertido. “Não me
imaginava como puta pelo resto da vida; aliás, jamais gostei de rótulos. A
verdade é que fui viver um fetiche que achava misterioso e extremamente
atraente. Eu me divertia muito.”
Tendo que escolher entre começar
seu mestrado ou continuar na profissão, Lola acabou abandonando os programas,
mas não se arrepende da decisão. “A vida corrida e cansativa de uma puta
paulistana me impedia de fazer o que queria. Sequer conseguia pegar um livro e
ler tranquilamente, porque meu telefone nunca parava de tocar. Eu me planejei
pra isso, então, estou feliz por poder me dedicar aos estudos e ter tempo pra
mim e pro Gerald [Blake Lee, empresário e seu atual namorado], que apareceu
quando menos esperava e com quem tenho vivido situações tão desafiadoras e
instigantes quanto antes. O amor também é um desafio, mas é uma delícia. A
gente muda, os desejos mudam e é isso que nos faz amadurecer.”
Histórias como as de Lourdes e
Lola se encontram no Brasil e mundo afora, mas as razões para as pessoas
entrarem na prostituição são múltiplas. “O processo decisório de participação
em esquemas de prostituição é complexo e variado. O que não se pode mais
aceitar é o tratamento convencional, atribuindo-o a culpas familiares, pobreza,
violência doméstica, como se todas as prostitutas e prostitutos fossem pessoas
miseráveis e desprotegidas. Não que esses casos deixem de ser numerosos, mas há
também situações de pessoas que escolhem entrar nesse mundo” explica José
Carlos, que atualmente está na Colômbia entrevistando brasileiras que se
envolveram com narcotraficantes.
Já Lourdes cita histórias de
mulheres que se casaram, mas queriam conhecer outros homens, muitas que
precisavam sustentar a família, outras que não tinham o que comer, estavam
grávidas e também mulheres que estavam lá porque simplesmente queriam, gostavam
do que faziam e nunca quiseram sair.
A LUTA NÃO PODE PARAR
Mesmo estigmatizada, discriminada
e isolada, a prostituição existe há muito tempo e deve continuar a existir. Mas
por que é tão difícil para nossa sociedade aceitá-la como um trabalho
respeitado? Para José Carlos, em uma ponta temos uma série de preceitos
firmados em normas morais, religiosas, seletivas, e, no outro extremo, o
reconhecimento dessa atividade, que se mostra ameaçada por posições hipócritas,
quase sempre
ligadas à proteção da família. “É
difícil para a sociedade entender a prostituição, porque esta, no comum das
vezes, se impõe como risco para os chamados ‘bons costumes’.”
Lourdes segue a mesma linha de
pensamento. “O problema todo é que a nossa sociedade ainda é muito
preconceituosa e falso moralista, não aceita falar sobre sexualidade, fantasias
sexuais, e isso tudo faz parte da vida humana. Então, em um país que ainda não
acabou com o racismo, com o trabalho escravo, as pessoas sofrem violência
sexual, as crianças têm que trabalhar, é muito difícil ainda, mas o que
precisamos é lutar contra o estigma, o preconceito e a discriminação, para
termos uma sociedade mais justa.” E complementa: “No momento em que estou
trabalhando, tenho o direito de decidir se quero ir ou não com um cliente. O
corpo me pertence, as minhas partes sexuais me pertencem e posso usar como um
instrumento de trabalho. Mas, como em qualquer outra profissão, há mulheres
que também sofrem violências, podem encontrar clientes que queiram fazer coisas
à força, e é por isso que precisamos de nossos direitos”.
ORGULHO ACIMA DE TUDO
Traçando caminhos e tendo
objetivos bem diferentes, mas compartilhando do mesmo princípio, Lourdes e Lola
nunca se arrependeram ou tiveram vergonha da profissão. “Nunca me arrependi.
Ser puta me humanizou, e me ensinou muito sobre a vida, mas é claro que não é
fácil, como nada na vida”, ressalta Lola. “Nunca me importei com os comentários
maldosos e odiosos das pessoas nas redes sociais, mas a indiferença da minha
família, que decidiu me ignorar por um tempo, foi muito difícil.”
Algumas vivências a chatearam
muito, como a de uma professora que escreveu um poema em rede social a
rebaixando, ou quando riscaram seu carro com todo o tipo de xingamentos, “mas
logo entendi que, se me importasse com esse tipo de coisa, seria impossível
viver. Então, decidi olhar sempre para as pessoas que eram gentis comigo e que
me motivavam. Deu certo e eu não me chateei mais. Passei a refletir muito mais
sobre as minhas atitudes e sobre as pessoas e a não aceitar normas de conduta,
certo e errado”.
Já Lourdes acredita que o
conhecimento que ela passa para a frente, além de sua relação e concepção dos
seres humanos e da sociedade, foram as melhores coisas que a profissão lhe deu.
“A prostituição, para mim, proporcionou várias coisas boas, porque lidei com
inúmeras pessoas, muitas culturas diferentes, conheci os dois lados da moeda da
sociedade e acabei virando uma grande psicóloga, assistente social e educadora
social.”
Para ela, o estigma e o
preconceito que sofreu – e ainda sofre – é o que de pior acontece, mas isso já
foi superado. “Sou um ser humano que, a cada segundo da minha vida, consegue
superar muita coisa. Quando era muito nova, eu já enfrentava a sociedade, dizendo
que esse era o meu trabalho, e, hoje, meus filhos e netos têm mestrado,
doutorado, sou convidada para eventos e palestras. Neste Carnaval, saí em uma
escola de samba aqui no Pará, no carro abre-alas, feito no formato de um
cabaré, como uma ‘puta rainha’. É assim que me identifico. Já fui candidata a
vereadora, mas tenho medo de entrar na política partidária e me corromper;
então, prefiro só fazer política social, lidar com a questão dos direitos
humanos e da
cidadania, lutando por uma
sociedade mais justa, mais fraternal, com mais segurança, educação, saúde de
qualidade. É essa a nossa luta!”
Das histórias que importam
Por Lucas Rolfsen – Revista da
Cultura
Foi a partir da vontade de
humanizar o olhar que se tem a respeito das profissionais do sexo que a artista
visual mineira Laura de Avelar Fonseca entrevistou e fotografou, durante quatro
anos, as prostitutas que atuam nos hotéis da Rua Guaicurus, conhecido ponto de
prostituição localizado no centro de Belo Horizonte, originando a exposição Hotel
Esplêndido. Há um ano, em fevereiro e março de 2015, essa série documental,
contemplada com o XIV Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia, esteve em
cartaz no Museu Inimá de Paula, também na capital mineira, antes de passar pelo
Museu Municipal de Arte, em Curitiba, entre julho e agosto passado.
Foto: Laura de Avelar Fonseca
A intenção de Laura com o projeto
foi desmistificar a profissão e, sobretudo, aproximar a população das histórias
e das pessoas retratadas na exposição. “O fato de elas serem prostitutas é
apenas uma parte da existência delas, uma parte do que são. Isso não as define
como pessoa”, contou a fotógrafa na época da mostra. Para a artista, é
importante combater os estigmas que ainda persistem nesse universo sobre a
temática. “Minha intenção [com a exposição] foi trazer isso para o ambiente do
museu e mostrar que a questão vai muito além e que existem pessoas por trás da
profissão que ainda sofrem com o preconceito”, conta à Revista da Cultura.
Aliás, algumas das imagens de Laura Fonseca ilustram esta matéria e seu
trabalho pode ser conferido no site http://lauradeavelarfonseca.com.
Fonte: http://www.editoracontexto.com.br/
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