Manifestação em São Paulo na
quarta-feira contra o machismo e em protesto ao estupro coletivo de uma jovem
de 16 anos no Rio. M. SCHINCARIOL AFP
“Culpamos a vítima porque
partimos do pressuposto de que a mulher não pode ter uma vida sexual ativa”. “As
mulheres ainda são julgadas como na Idade Média, onde somente a mulher honesta
e virgem poderia ser vítima de crime de estupro e desde que também ficasse
comprovado que ela havia lutado e gritado por socorro, pois o silêncio da
vítima significava o consentimento do ato praticado”. “Parte da sociedade julga
a vítima por ela não se enquadrar nos padrões idealizados da mulher correta,
aquela que é casada e cuida do marido e dos filhos”.
“A cada 11 minutos uma mulher é estuprada no
Brasil e a culpa nunca é da vítima”. A voz, saída de um megafone no entardecer
na avenida Paulista na última quarta-feira, deu início a uma marcha - de
mulheres em sua maioria - contra o machismo e em protesto ao estupro coletivo
de uma jovem de 16 anos ocorrido no Rio de Janeiro na semana passada. A segunda
informação da frase que abriu a marcha – “a culpa nunca é da vítima” - deveria
ser óbvia. Mas não é.
Assim que a notícia sobre o
estupro da adolescente começou a ser veiculada na imprensa, a sociedade se
dividiu entre os que condenaram o crime e os que culparam a garota pelo
ocorrido. Mulheres, inclusive, atribuíram à vítima a responsabilidade pelo
crime.
Em busca de tentar entender por
que parte da sociedade ainda culpa a vítima por um crime como esse, incluindo
mulheres que não se solidarizam com a dor da vítima, a advogada Verônica
Magalhães de Paula e o delegado e professor da Unisal, Eduardo Cabette,
publicaram o estudo “Crime de estupro: até quando julgaremos as vítimas?”. A
publicação é de 2013, mas para o nosso azar, o tema é atemporal.
E com séculos de história. De
acordo com o texto, “mesmo em plena aurora do século 21, as mulheres ainda são
julgadas como na Idade Média, onde somente a mulher honesta e virgem poderia
ser vítima de crime de estupro e desde que também ficasse comprovado que ela
havia lutado e gritado por socorro, pois o silêncio da vítima significava o
consentimento do ato praticado”. Para Verônica de Paula, parte da sociedade
julga a vítima por ela não se enquadrar nos padrões idealizados da mulher
correta, aquela que é casada e cuida do marido e dos filhos. “Somos educadas
desta forma”, diz. “A mulher tem que ser submissa, recatada, falar baixo, sair
de casa apenas para ir ao trabalho, no máximo”.
O estudo compara dois casos que
ocorreram em 2012. Um, aqui no Brasil, de duas adolescentes de 16 anos que
foram estupradas por seis integrantes de uma banda de pagode, a extinta New
Hit, na Bahia. Na época, houve protestos contra a prisão dos criminosos. As
vítimas foram ameaçadas de morte e tiveram que entrar no Programa de Proteção à
Criança e ao Adolescente Ameaçados de Morte, assim como a vítima do estupro no
Rio de Janeiro de duas semana atrás. O outro caso foi o de uma mulher de 23
anos que sofreu um estupro coletivo na Índia, quando voltava para a casa, em um
ônibus. Ela não resistiu aos ferimentos – foi perfurada internamente – e
morreu. Milhares de pessoas em todo o mundo ficaram chocadas com o crime, e na
Índia, foram às ruas por leis mais rígidas e maior proteção para as mulheres.
Os criminosos quase foram linchados pela população indignada. A história é
contada no documentário India's Daughter.
O que diferencia um episódio do
outro? Segundo os autores do estudo, a jovem indiana era vista como uma mulher
honesta. Voltava da Universidade quando foi abordada. Estava coberta dos pés à
cabeça. Não pediu para ser estuprada. Já as garotas na Bahia não deveriam estar
naquele local, assistindo a um show de uma banda com letras de duplo sentido e
com coreografias de conotação sexual. Com essas atitudes, elas estavam sujeitas
a passar pelo que passaram. Ou pior: pediram para ser estupradas.
No ano passado, a Justiça
condenou os integrantes da banda a 11 anos e oito meses de prisão, mas coube
recurso e eles respondem em liberdade.
O pré-julgamento da vítima se
repete agora, três anos depois, com o caso da jovem no Rio de Janeiro. Muitas
pessoas usaram o argumento de que a garota era usuária de drogas, frequentava o
morro e usava roupas curtas para culpá-la pelo crime do qual foi vítima. Assim
como as meninas na Bahia, ela não deveria estar em um baile funk. “Culpamos a
vítima porque partimos do pressuposto de que a mulher não pode ter uma vida
sexual ativa”, disse Eduardo Cabette, o co-autor do estudo.
Segundo Cabette, se a vítima em
questão fosse uma garota de classe média, usando roupas compridas, o tratamento
do público seria diferente. Mas, perante à lei, alerta Cabette, isso não faz –
ou não deveria fazer – nenhuma diferença. “A população pode até pensar
diferente, mas juridicamente, se a mulher é uma prostituta, por exemplo, e no
meio do programa ela decide não continuar a relação e o cliente a força a
seguir em frente, ela pode ser vítima de estupro”.
O delegado afirma que no caso do
crime no Rio de Janeiro, os suspeitos podem ser julgados por estupro de
vulnerável, se for comprovado que a garota estava desacordada quando o crime
ocorreu. "E esse crime tem pena mais grave que o crime de estupro comum,
aliás", diz. "Não importa se ela se drogou ou se a drogaram".
"A culpa é da crise"
O secretário de Segurança Pública
de São Paulo, Mágino Alves Barbosa Filho, afirmou ao jornal O Estado de São
Paulo que a crise econômica é uma das culpadas do crime de estupro coletivo
ocorrido no Rio, assim como outros crimes dessa espécie. "Muita gente cai
em depressão porque perdeu o emprego e começa a beber. E aí termina perdendo a
cabeça e praticando esse tipo de delito. Não estou falando que é a principal
causa, mas uma das causas com certeza é essa aí", afirmou, em entrevista
publicada na sexta-feira da semana passada.
A ideia de que o criminoso que
pratica o estupro está fora de si, ou mesmo é um doente, é duramente condenada
por feministas. No estudo de Cabette e Verônica, há uma menção à visão
distorcida da condição desse homem na sociedade: "A vítima sempre será
aquela mulher promíscua de moral duvidosa ou o estuprador será um homem
“anormal”, com perturbações mentais e a moral distorcida, que não consegue
conter seus instintos animalescos", diz o texto. "Esse mecanismo de
proteção impede que as pessoas aceitem que não há um perfil específico de
vítima e que o agressor pode ser o homem honesto, trabalhador, pai de
família", concluem os advogados.
Na mesma semana em que o
secretário deu a entrevista ao Estadão, a Secretaria de Segurança Pública do
Estado de São Paulo divulgou um levantamento apontando que apenas 30% dos casos
de estupro registrados pela polícia são cometidos por pessoas desconhecidas. Ou
seja, de cada dez casos de estupro que a polícia tem conhecimento, sete são
cometidos por uma pessoa que tem algum vínculo com a vítima. A maioria das
vítimas tem entre 12 e 17 anos, de acordo com o Mapa da Violência. Um caso
notório que ilustra esse perfil aconteceu no interior de São Paulo. O delegado
de Itu Moacir Rodrigues de Mendonça estuprou sua neta em um hotel, durante uma
viagem familiar, forçando-a a ato sexual, segundo relato da vítima. A jovem, de
16 anos, só o denunciou semanas depois do ocorrido, em setembro de 2014.
Atônita com a investida do avô, a jovem ficou atordoada com o ocorrido e não
contou para ninguém o crime. Ela chegou a tentar o suicídio, mas foi impedida
pelo padrasto. Só então revelou a verdade para a mãe, que levou o caso à
Justiça.
Mendonça ficou preso por um ano e
seis meses aguardando julgamento do caso, mas conseguiu liberdade no mês
passado porque um juiz de Olímpia, onde ocorreu o ato sexual, entendeu que
houve consenso da vítima. Não há prova segura e indene de que o acusado
empregou força física suficientemente capaz de impedir a vítima de reagir. A
violência material não foi asseverada, nem esclarecida. A violência moral,
igualmente, não é clarividente, penso”, escreveu o juiz Luiz de Abreu Costa,
que em nenhum momento questiona o fato de um avô ter tido relações sexuais com
uma neta menor de idade. O fato ilustra como a cultura do estupro está
arraigada até mesmo na leitura de representantes da Justiça. No último dia 26,
o Ministério Público de Olímpia recorreu da sentença do juiz.
Fonte: El Pais
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