segunda-feira, 6 de junho de 2016

Cultura machista na polícia ainda intimida vítima de abuso

Reação. Várias manifestações ganharam as ruas do país depois de o estupro coletivo ter vindo à tona

 “Ele não é seu marido?Então, como ele te estuprou?”. Acuada pela desconfiança, cansada por ter que ir à delegacia por três dias para finalizar o registro da ocorrência e machucada física e emocionalmente pelo cárcere privado, a doméstica Camila*, 41, chegou a pensar em desistir da denúncia. “Teve hora em que me senti culpada. Era como se eu tivesse que implorar por uma medida protetiva para estranhos, que só queriam saber daquilo que interessava a eles”, desabafou.


A percepção dela em relação ao trato com a mulher que registra uma queixa é a mesma da adolescente de 16 anos vítima de um estupro coletivo no Rio de Janeiro no mês passado: o machismo é predominante. No caso carioca, o delegado Alessandro Thiers foi substituído por Cristiana Bento. A jovem havia reclamado da forma como o depoimento foi conduzido, e sua então defensora, Eloisa Samy, alegou que Thiers tratava o caso de forma machista e misógina.

Em Minas, policiais civis e militares recebem treinamentos sobre a forma de abordagem às vítimas de crimes sexuais. No entanto, a teoria parece não ser absorvida como deveria, e prova disso é o tipo de pensamento expresso em redes sociais. Em uma rápida busca pelo Facebook em grupos de militares foi possível localizar seis perfis de agentes, de mais fácil identificação devido às fotos com o uso de farda, com comentários jocosos e machistas, até mesmo de mulheres. “Se ficar grávida dos 30 (vítima carioca informou que havia 33 estupradores), o filho com certeza é de cadinho. Cadinho de um, cadinho de outro”, dizia um dos comentários (veja outros ao lado).

Para a desembargadora Kárin Emmerich, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJM), a cultura machista só poderá ser vencida com processos de educação e de formação continuada.
“Não é só da polícia (o machismo). O que a gente vê, de modo geral, é que todos os segmentos estão despreparados para lidar com a vítima do estupro. Porque existe um olhar pronto de que a vítima é a culpada por estar de roupa curta ou estar andando à noite na rua, entre outras situações. É preciso trabalhar isso”, disse.

Saiba Mais. Segundo a PM, “todos recebem treinamento teórico bienal quanto aos procedimentos adotados para lidar com vítimas de todos os tipos de crimes, inclusive, os sexuais”. Detalhes não foram informados.

A Polícia Civil tem um curso de formação em direitos humanos de 40 horas. Ao longo da carreira, outras capacitações são oferecidas ao menos uma vez por ano, segundo a delegada e professora da Academia de Polícia Civil (Acadepol), Silvana Fiorillo.

* nome fictício

Posição

Redes sociais. As assessorias de imprensa das polícias Militar e Civil informaram que não monitoram os perfis individuais de cada policial e que eles não representam as opiniões das corporações.

Judiciário deve ser referência de vítimas

A conselheira Daldice Santana defende mudanças também no Judiciário, para que ele se torne referência em acolhimento de mulheres vítimas de violência.

“A Justiça também precisa rever seus conceitos. No caso da adolescente do Rio de Janeiro, se o vídeo não tivesse sido divulgado, não ficaríamos sabendo. E isso mostra que as instituições não estão sendo referência de acolhimento e segurança. E para que sejam é preciso saber atender e conduzir casos dessa natureza”, destacou Daldice, à frente do Movimento Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

A necessidade de melhorias na capacitação de juízes e promotores na abordagem de mulheres foi um dos temas de curso sobre feminicídio nessa semana no Tribunal de Justiça (TJMG), em parceria com o Ministério Público (MPMG). (JC)

Procedimentos

Primeiro contato. O policial deve tranquilizar a mulher e demonstrar preocupação com sua situação física e psicológica. Se houver necessidade, ela deve ser levada ao médico. Em caso de violência sexual contra pessoa adulta, deverá ser respeitada sua opinião se houver recusa em prosseguir com as providências policiais.

Interrogatório. A orientação é que o policial deve permitir que a vítima fale livremente. Nesse contato inicial, deve-se ouvir de maneira cuidadosa e respeitar os limites da mulher, incluindo a dificuldade de relatar os fatos e os sentimentos. Deve-se resguardar a vítima de curiosos e da imprensa.

Exame. É importante que a vítima seja encaminhada a médicos-legistas para a coleta de provas. Quando possível, se houver cena do crime, é preciso enviar uma equipe pericial ao local.

Padronização. O Ministério da Justiça informou que propôs aos Estados a padronização do atendimento às mulheres em todas as delegacias do país. Não há data para a medida ser adotada.

Fonte: O Tempo

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