O Brasil continua no sua eterna
posição de indefinição: a prostituição individual não é crime, mas também não
era considerada, pelo lado civil, um ato lícito; o agenciamento da prostituição
continua a ser crime, mas diversos sites promovem abertamente a atividade (vide
o artigo 228, CP), ganhando muito com isso, e nada é feito; o Ministério do
Trabalho regulamentou a profissão: profissional do sexo, dando-lhe um código
para recolhimento da contribuição previdenciária (também não estaria
favorecendo a prostituição?). Mas, continua-se a viver o impasse: a casa onde
se dá o sexo pago é reduto criminoso. Ora, preferem as pessoas de bem que o
sexo — que não será detido, porque nunca foi como demonstra a História — seja
feito no meio da rua? Em carros, sob viadutos?
Por Guilherme Nucci
Prostituição é ato lícito. Há
muito vimos defendendo esse ponto de vista, que culminou com a publicação da
nossa obra Prostituição, lenocínio e tráfico de pessoas. Sempre consideramos
importante levar em consideração, para a formação dos tipos penais incriminadores,
a moral, a ética e os bons costumes. São eles a fonte de inspiração para o
legislador em muitas hipóteses. No entanto, esses elementos também se
atualizam, modernizam-se, mudam de figura e galgam outros patamares. Não é mais
momento histórico, por exemplo, para falar de bons costumes no contexto da
dignidade sexual — aliás, este é o novo título do capítulo do Código Penal que
cuida desses crimes. A bem da verdade, os famosos bons costumes eram atribuídos
somente às mulheres; o recato sexual havia de ser da mulher; quem deveria
casar-se virgem, sob pena de anulação do matrimônio (CC, 1916; CP, antes da
reforma de 2005) era a mulher. O homem poderia ser promíscuo e quanto mais
garanhão fosse, mais conceito social obtinha.
Em épocas passadas (e possivelmente
ainda hoje), os jovens eram levados por seus próprios pais, parentes e amigos
mais velhos a iniciar a sua vida sexual com prostitutas. “Trate-o com carinho”,
dizia o pai. Tudo para mostrar à sociedade que estava criando um macho em casa
e também para não traumatizá-lo em sua primeira relação sexual. Enfim, um mundo
machista.
A prostituta sempre foi útil para
vários aspectos, mas recriminada pelos moralistas de plantão. Ora, o que
importa a você se o seu vizinho é garoto de programa? Ou se a sua vizinha é
acompanhante? A menos que conturbe sua vida, haja barulho, problemas no
condomínio, abusos etc., não lhe afeta a vida, a não ser o seu pensamento, a
respeito daquela conduta: o seu julgamento moral.
Diante disso, acompanhando a
modernização dos costumes, vários países de Primeiro Mundo já legalizaram a
prostituição, reconhecendo-a como profissão e dando-lhe as garantias devidas. O
profissional do sexo sofre a fiscalização sanitária do Estado e nada é feito às
escuras. Nem se deve falar dos países de Terceiro (ou mais baixo) Mundo, que
ainda estão na fase de apedrejar, até a morte, a adúltera (assim como a
prostituta).
Os Estados Unidos são o único
país hipócrita nesse campo, pois criminaliza, em vários Estados, até mesmo a
prostituição individual; ao mesmo tempo em que um candidato à presidência da
República prega a construção de um muro da vergonha entre seu país e o México.
Os EUA reconhecem a união estável, o casamento e o direito de adotar, por
homossexuais, mas demonizam a prostituição, que acontece aos milhares de casos,
sem a devida atuação estatal para coibi-la. Noutros termos, usa-se a
prostituição (como crime) como moeda de troca (pode-se prender uma prostituta
se ela não disser o que o policial quer saber, já que ela vive nas ruas). Idiossincrasias
de uma sociedade que ainda não decidiu se quer mesmo ser livre ou atrelada a
valores religiosos.
O Brasil continua no sua eterna
posição de indefinição: a prostituição individual não é crime, mas também não
era considerada, pelo lado civil, um ato lícito; o agenciamento da prostituição
continua a ser crime, mas diversos sites promovem abertamente a atividade (vide
o artigo 228, CP), ganhando muito com isso, e nada é feito; o Ministério do
Trabalho regulamentou a profissão: profissional do sexo, dando-lhe um código
para recolhimento da contribuição previdenciária (também não estaria
favorecendo a prostituição?). Mas, continua-se a viver o impasse: a casa onde
se dá o sexo pago é reduto criminoso. Ora, preferem as pessoas de bem que o
sexo — que não será detido, porque nunca foi como demonstra a História — seja
feito no meio da rua? Em carros, sob viadutos?
Muitos moradores de bairros
nobres queixam-se de travestis fazendo ponto na frente das suas casas. Com
razão. Porém, se houvesse um lugar apropriado e lícito, eles sairiam da rua.
Por que passar frio? Por que sofrer humilhação? Por que ser extorquido por
policiais para fazer sexo de graça? Por que optar pelo inferno se há
possibilidade de um lugar protegido e oculto das famílias de bem para o sexo
pago?
Em suma, em decisão inédita, o
Superior Tribunal de Justiça, por meio da 6ª Turma, no dia 17 de maio próximo
passado, no HC 211.888/TO, cujo relator foi o ministro Rogério Schietti Cruz,
em votação unânime, considerou ato lícito a prostituição. Aliás, foi a mesma
posição do juiz de primeiro grau e do Tribunal de Justiça do Tocantins.
Inconformado, o Ministério Público entrou com recurso especial, que foi
rejeitado e declarada extinta a punibilidade da paciente, por habeas corpus de
ofício.
Em síntese, a profissional do
sexo não foi paga pelo seu serviço. Tomou do cliente uma cordão com pingente
folheado, usando uma faca para garantir a posse do bem, até que fosse paga. O
MP acusou-a de roubo impróprio. Todas as instâncias do Judiciário desclassificaram
a infração para exercício regular das próprias razões (artigo 345, CP).
Correta a decisão, sob o nosso
ponto de vista. Aliás, foi citada a minha obra Prostituição, lenocínio e
tráfico de pessoas, para justificar exatamente isso. Se o cliente não quer
pagar e algo lhe é tomado para garantir esse pagamento, cuida-se de exercício
arbitrário das próprias razões, mas não de roubo ou furto.
O eminente ministro promoveu,
ainda, outras considerações doutrinárias, afirmando que “o direito penal, como
é sabido, foi construído doutrinária e jurisprudencialmente no Brasil sobre o
pilar da vontade do agente, do que se passa em sua mente no momento da prática
do delito, enfim, da real intenção do autor” (grifos no original).
O programa, nesse caso concreto,
custou R$ 15 e, mesmo assim, o cliente não quis pagar. Como uma pessoa de
parcos recursos, como a profissional do sexo, nesse caso, que nem conhece a
identidade do seu cliente, vai cobrá-lo? No Juizado Especial Cível? Não. Na
visão do Ministério Público, tratou-se de um roubo. O cliente usufruiu do
programa, recusou-se a pagar ínfima quantia e ainda deveria ser a profissional
do sexo apenada com reclusão de, pelo menos, 5 anos e 4 meses (?!). Se isso é justiça, não se pode mais tomar
nada por justo, a não ser de forma discricionária. Se o Ministério Público, em
todo o Brasil, vem lutando contra a corrupção generalizada, de valores
astronômicos, atingindo bilhões de reais, com enorme dificuldade, como se pode
pedir uma pena de mais de cinco anos de cadeia para uma pessoa, que prestou o
serviço (não negado em momento algum), e não recebeu, enquanto corruptos saem
condenados a dois anos de reclusão, com benefícios, por desvios muito maiores?
Para a reflexão do leitor.
Antigamente, diziam os civilistas
que a dívida de prostituição (como a de jogo) não poderia ser cobrada
judicialmente, pois feria a moral e os bons costumes. Esperamos que essa visão
já tenha mudado, pois, do contrário, como bem disse o ministro Rogério Schietti
Cruz, está o Estado se intrometendo na “liberdade de autodeterminação sexual de
adultos”.
Quanto mais legalizada e visível
a prostituição, maior proteção pode ser conferida a quem realmente dela
necessita: crianças e adolescentes. A prostituição juvenil é uma marca em nosso
país, com o turismo sexual. Mas chamar a prostituição de adultos um ato ilícito
é fugir à realidade.
Se assim for, deve o Ministério
Público intrometer-se, também, nas relações sexuais violentas
(sádico-masoquistas), que podem até deixar, como resultado, lesões graves.
Seria muito interessante tomar conhecimento de uma denúncia contra alguém que
escravizou outrem para fins sexuais, deixando o(a) parceiro(a) marcado(a) com
golpes de chicote e impedindo-o(a) de exercer suas funções por mais de 30 dias.
Dois adultos em sexo consensual; sem falar em prostituição, podendo até ser casados.
Teria o Estado legitimidade suficiente para se imiscuir na intimidade desse
casal? Também para o leitor refletir, afinal, a lesão grave é de ação pública
incondicionada.
Em nosso entendimento, somente se
pode elogiar a decisão do Superior Tribunal de Justiça (HC 211.888-TO, 6ª
Turma, rel. Rogério Schietti Cruz, 17.05.2016, v. u.).
Fonte: http://www.conjur.com.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário