A incompetência do
delegado que conduzia o caso da menor estuprada no Rio revela por que os crimes
desta natureza ficam impunes. A pressão das mulheres vira o jogo.
Sai um delegado que desacredita
uma vítima de 16 anos, violentada por no mínimo seis homens numa favela no Rio,
mas que podem chegar a mais de 30. Entra uma delegada que se debruçou sobre o
caso neste domingo, esticando o estudo de evidências recolhidas até então: o
estupro coletivo está comprovado, afirmou Cristiana Bento. Pelo vídeo e pelo
depoimento da adolescente. O seu antecessor no caso, Alessandro Thiers, saiu
porque lhe faltou trato com a vítima, segundo o chefe da Polícia Civil do Rio
de Janeiro, Fernando Veloso. Durante coletiva de imprensa sobre o caso, Veloso
foi questionado se o afastamento havia ocorrido por erros que o delegado
pudesse ter cometido. “Nós não fazemos pré-julgamento”, respondeu o chefe da
polícia.
Mas Thiers, qualificado como
muito “competente” por Veloso, não deu à jovem o mesmo benefício que está sendo
concedido a ele. Thiers ajudou a pré-julgar a adolescente estuprada e colaborou
para um espetáculo grotesco que expôs a adolescente ao ridículo, e deixou os
estupradores fugirem. Diante da gravidade do caso mostrou-se hesitante e
solidário à primeira versão de criminosos e desacreditou a vítima ao ponderar
“se houve consentimento dela, se ela estava dopada e se realmente os fatos
aconteceram”. Em uma troca de mensagens por Whatsapp, divulgada pelo jornal
Extra, e confirmada pela Rede Globo, Thiers disse em privado que não havia estupro,
e que a adolescente teria inventado a história dos 33.
Mas a jovem confirmou, em
entrevista a vários veículos de televisão, que foi tratada por ele como
criminosa durante o depoimento à polícia na frente de outros homens. Thiers
exibiu as fotos e vídeos e perguntou a uma moça de 16 anos acuada por
traficantes se ela gostava de fazer aquilo. “Ele perguntou se eu tinha o
costume de fazer isso, se eu gostava.” Uma adolescente contra três dezenas de
bandidos, um delegado completamente despreparado e contra um sistema viciado em
culpar vítimas de estupro. O delegado afastado pelo menos foi útil, porque foi
didático: sua incompetência revelou por que os estupros no Brasil não param de
se multiplicar.
Sua lógica se parece com a que
foi adotada em outro caso, amplamente noticiado no dia 17 de maio deste ano. O
juiz Luiz de Abreu Costa liberou o delegado Moacir Rodrigues de Mendonça da
cidade de Itu que estava detido por ter estuprado a neta quando ela tinha 16
anos num quarto de hotel durante uma viagem de lazer em 2014. A neta não teve
reação imediata. E os pais só descobriram o caso 20 dias depois porque
encontraram a adolescente com uma arma na cabeça para dar fim à própria vida.
Acabou contando tudo, e Mendonça foi denunciado e preso.
Até ser liberado semanas atrás. O
delegado estuprador ganhou sua liberdade pelas mãos de Costa com a seguinte
justificativa em sua sentença: “A não anuência à vontade do agente, para a
configuração do crime de estupro, deve ser séria, efetiva, sincera e indicativa
de que o sujeito passivo se opôs, inequivocadamente, ao ato sexual, não
bastando a simples relutância, as negativas tímidas ou a resistência inerte.
(...) Não há prova segura e indene de que o acusado empregou força física
suficientemente capaz de impedir a vítima de reagir. A violência material não
foi asseverada, nem esclarecida. A violência moral, igualmente, não é
clarividente, penso”, escreveu o juiz.
Pensou? Não cabe a um juiz de
mente depravada “pensar”. É inconcebível representantes da Justiça se pautem
por valores distorcidos, e continuem violentando as mulheres quando elas se
defendem. Dizer que a relutância não foi suficiente segue uma lógica de
ratazanas, mentes depravadas que protegem estupradores.
Apesar de tudo, há um dado
alentador no meio desta barbárie. À medida que a incompetência na condução das
investigações no Rio foi exposta, cresceu a coragem das mulheres de se
manifestar. Nas redes sociais, e até na sede do Supremo, onde calcinhas
manchadas de vermelho foram exibidas e flores depositadas na estátua que
representa a Justiça. As mulheres deste país já não suportam mais. Neste exato
momento em que algum tarado está assistindo a cenas de estupros clandestinas no
Whatsapp, há mulheres criando grupos de apoio, buscando inspiração em exemplos
de ações conjuntas contra o estupro em outros países, e organizando
manifestações para repudiar esta cultura selvagem.
Nada vai mudar do dia para a
noite. Mas foi essa pressão que fez com que Thiers fosse afastado do caso no
Rio e Cristiana Bento assumisse as investigações. Uma gota num oceano em que se
começa a perceber que a Justiça não tem nada de divina no Brasil. Ela só vai
acontecer daqui para frente pela permanente vigilância feminina.
Fonte: El Pais
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