domingo, 1 de março de 2015

O que não aprendemos com Dorothy Stang

Passados dez anos do assassinato da missionária americana, as lições do episódio foram esquecidas. Entre 2002 e 2013, quase metade de todos os assassinatos de ativistas ambientais do mundo ocorreram no Brasil.

 Por CARLOS RITTL

O dia 12 de fevereiro de 2005 deveria ser histórico na comunidade do Carmelino, no Município de Porto de Moz, foz do rio Xingu, Estado do Pará. Autoridades como a então Ministra Marina Silva e o Presidente do Incra, Rolf Hackbart, pousavam de helicóptero para participar de uma reunião com mais de mil ribeirinhos da Reserva Extrativista Verde para Sempre, criada no ano anterior. O Estado Brasileiro parecia finalmente ter chegado ali naquele cantinho da Amazônia, cujos moradores lutavam havia anos contra madeireiros ilegais e grileiros pelo apoio ao uso sustentável dos recursos da área. Era para ser uma celebração. Mas o rumo daquele encontro – e da história da região – virou do avesso na hora do almoço.
A reunião foi abruptamente interrompida por uma sentença, que me foi anunciada por telefone pelo pároco Porto de Moz, padre Ney: “Carlos, mataram a Dorothy.” Eu caí desmaiado. A reunião acabou. E o governo do então presidente Lula levava um tapa na cara daqueles que mandam e desmandam na Amazônia.

Eu havia conversado com a irmã Dorothy Stang pela última vez no dia 24 de dezembro de 2004. Liguei para desejar-lhe um bom Natal e tentar deixar uma mensagem de esperança.

As ameaças dos grileiros e madeireiros em Anapu eram tantas e tão explícitas que seguiam até um certo método: começava com pressões sobre as famílias para abandonar os lotes de terra. Depois, os roçados e as florestas dos lotes eram incendiados e “pulverizados” com semente de capim (cresce rápido e domina o terreno, tornando difícil estabelecer um novo roçado de milho, mandioca ou feijão). Tiros eram ouvidos à noite, próximos às casas. Resistindo à pressão até aquele momento, a família recebia a visita indesejada de capangas dos grileiros, que atiravam no fundo de todas as panelas da casa enquanto subiam o tom das ameaças verbais. Se o caboclo ainda insistisse em permanecer no lote, sua casa era incendiada e ele podia ser morto.

Esse era o cotidiano da irmã Dorothy. Eram essas as coisas que ela relatava quando ligava para mim. Vivendo desde a década de 60 no Brasil e desde o início da década de 80 na região de Anapu, a freira não tinha medo. Mas pedia ajuda.

Pouco mais de um mês antes do Natal, eu havia encontrado o Ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, num evento em Manaus. Conversei com ele sobre a situação em Anapu, a violência contra as comunidades locais e as ameaças à irmã Dorothy, ao Padre Amaro e a outras lideranças locais por fazendeiros e madeireiros de Altamira e Transamazônica. Após me ouvir, o ministro pediu que eu enviasse documentos que tivesse a respeito para seu gabinete, para que seus assessores pudessem se inteirar do assunto e para tomada de decisão.

A tarefa era simples, pois irmã Dorothy, a quem encontrei várias vezes ao longo daquele ano de 2004, tinha me dado cópias das muitas denúncias feitas ao Ibama, ao Incra, e à Polícia Civil, com detalhes da ação daqueles que queriam expulsar à força famílias e comunidades inteiras em Anapu das terras que pleiteavam do Incra, em Projetos de Desenvolvimento Sustentável, uma forma de assentamento da reforma agrária adequado às áreas florestais. Eu já havia enviado a documentação seguidas vezes à PF, sem sucesso.

O ministro desceu a ordem: no início de dezembro de 2004, recebi um telefonema de um dos diretores da Polícia Federal que, por dever de ofício, pediu que eu explicasse o que estava acontecendo. Contei a ele sobre o que sabia sobre a violência em Anapu e as ameaças de morte contra Dorothy e seus companheiros. Ouvi logo como resposta que a PF recebia várias denúncias como aquela por semana. Depois de eu insistir sobre a gravidade da situação e ameaças de morte, o diretor pediu que eu lhe enviasse documentos e me disse que iriam fazer uma averiguação no local. Enviei mais uma vez cópias do calhamaço de documentos que a irmã Dorothy havia me passado.

Na véspera daquele Natal de 2004, disse à missionária que não sabia se a PF iria ou não ao local, mas que, pelo menos, tinham dito que iriam avaliar a situação. E despedi-me desejando-lhe uma noite de paz junto àqueles que eram sua família, o padre Amaro e os comunitários de Anapu. Infelizmente, o primeiro agente da PF – com a roupa do corpo, sem viatura ou reforços – só botou os pés em Anapu em fevereiro de 2005, para investigar o assassinato.

A missionária católica Dorothy Mae Stang chegou ao Brasil em 1966, para servir de início no Maranhão e depois na Amazônia. Quando chegou a Altamira, pediu ao bispo do Xingu, D. Erwin Kräutler, que a instalasse “no lugar mais pobre daqui”. Ganhou a missão de atuar como professora na miserável Anapu, na Transamazônica.

Na década de 1990, a vida da irmã Dorothy mudaria de vez, com o anúncio, pelo governo Fernando Henrique, do Plano Avança Brasil. Tratava-se de um inédito assalto de obras de infraestrutura planejadas para a Amazônia, que incluíam o asfaltamento da BR-163, da Transamazônica e a hidrelétrica de Belo Monte, um plano dos militares engavetado desde o governo Collor.

A mera expectativa das obras fez com que centenas de famílias de lugares ainda mais pobres que Anapu, no Maranhão e no Piauí, afluíssem à região, na esperança de obter emprego na construção da usina. Pelo mesmo motivo, reacendeu-se em todo o sul do Pará uma corrida de grileiros às terras públicas, já que o preço da terra subiria. O desmatamento e a extração ilegal de madeira explodiram. À irmã Dorothy, que às vezes recebia em Anapu uma família de migrantes por dia, só restava acolher essas pessoas e tentar dar-lhes alternativa de vida. Por isso ela lutou para criar os PDS. E por isso ela morreu com seis tiros à queima-roupa na beira da estrada.

A atrocidade cometida contra uma mulher de 73 anos, freira, estrangeira, e o fato de uma ministra de Estado estar na mesma região do Xingu no dia do crime criaram um desses momentos raros no Brasil: um instante em que o país parece, ainda que por pouco tempo, insurgir-se contra a própria estupidez. O plano de prevenção e controle do desmatamento na Amazônia, que transitava de gaveta em gaveta no governo desde 2004 começou a sair do papel ali, com a megaoperação do Exército para combater crimes fundiários e ambientais no sul do Pará.

A comoção nacional e internacional (num tempo em que o Palácio do Planalto se importava com essas coisas) deram ao fraco Ministério do Meio Ambiente cacife político para operar na Amazônia conforme o plano. Uma área de 8 milhões de hectares no coração da zona de conflito fundiário do Pará foi interditada para a criação de áreas protegidas, para combater a grilagem. Os créditos de bancos públicos que financiavam o desmatamento e a pistolagem foram depois cortados por decreto presidencial. Naquele 12 de fevereiro de 2005, a taxa de desmatamento começou a cair na Amazônia.

Passados dez anos dos disparos feitos por Fogoió a mando dos fazendeiros “Bida” e “Taradão”, as lições do episódio foram esquecidas. Outras lideranças morreram e continuam morrendo em disputas fundiárias e por recursos na Amazônia – José Cláudio e Maria, João Chupel Primo, Adelino Ramos, para citar apenas alguns. Entre 2002 e 2013, quase metade de todos os assassinatos de ativistas ambientais do mundo ocorreram no Brasil, conforme afirma a Global Witness. E segundo um relatório da Comissão Pastoral da Terra, pelo mentos 174 pessoas estão hoje ameaçadas de morte na Amazônia Brasileira.

A taxa de desmatamento caiu do patamar de 19 mil quilômetros quadrados para algo em torno de 5 mil quilômetros quadrados por ano na Amazônia. Apesar de lá em Brasília muita gente celebrar estes números como estrondoso sucesso, tais taxas de destruição seriam um escândalo em qualquer lugar do mundo. O Brasil ainda é o país que mais destrói florestas no planeta. Além da Amazônia, pelo menos 7 mil quilômetros quadrados de Cerrado são destruídos a cada ano no Brasil. Cerca de 93% da Mata Atlântica, 20% da Amazônia e 50% do Cerrado já viraram fumaça.

O poder público, sobretudo ao longo dos últimos quatro anos, dá sinais preocupantes de reversão nas políticas que permitiram que a devastação caísse: mudou o Código Florestal, anistiando desmatamentos passados; suspendeu a criação de unidades de conservação; abandonou a política de manejo sustentável de madeira que daria alternativas econômicas às famílias de locais como a Transamazônica e a BR-163; e ressuscitou todo o pacote de obras do Avança Brasil, ora rebatizado como PAC. A usina de Belo Monte, uma das causas originais dos problemas de Anapu, saiu do papel, com mais desmatamento e mais violência em seu rastro. Unidades de conservação criadas no sul do Pará para conter a grilagem foram reduzidas por decreto para acomodar um conjunto de novas usinas hidrelétricas.

O governo federal parece fiar-se em tudo o que “fez” na década passada para seguir empurrando a Amazônia com a barriga – e com os tratores das obras do PAC. Uma política de desenvolvimento regional que leve em conta o potencial e as especificidades da região jamais foi implementada, e parece distante de sê-lo.

Pode ser útil, nesta época em que se planejam os novos compromissos internacionais do Brasil na área de desmatamento e mudanças climáticas, lembrar do que a leniência dos agentes públicos e de toda a sociedade fizeram com Dorothy. E recordar que a devastação só começou a arrefecer na floresta amazônica por causa de um crime bárbaro e uma vergonha global. Nenhum dos dois parece um bom guia para políticas públicas, ainda mais numa região de quase 30 milhões de habitantes e que abarca 60% do território nacional. Do assassinato da educadora Dorothy Stang, lições profundas ainda aguardam para ser aprendidas.

Carlos Rittl é secretário-executivo do Observatório do Clima, uma coalizão de entidades da sociedade civil

Fonte: Revista Epoca

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