Passados dez anos do assassinato
da missionária americana, as lições do episódio foram esquecidas. Entre 2002 e
2013, quase metade de todos os assassinatos de ativistas ambientais do mundo
ocorreram no Brasil.
O dia 12 de fevereiro de 2005
deveria ser histórico na comunidade do Carmelino, no Município de Porto de Moz,
foz do rio Xingu, Estado do Pará. Autoridades como a então Ministra Marina
Silva e o Presidente do Incra, Rolf Hackbart, pousavam de helicóptero para
participar de uma reunião com mais de mil ribeirinhos da Reserva Extrativista
Verde para Sempre, criada no ano anterior. O Estado Brasileiro parecia
finalmente ter chegado ali naquele cantinho da Amazônia, cujos moradores
lutavam havia anos contra madeireiros ilegais e grileiros pelo apoio ao uso
sustentável dos recursos da área. Era para ser uma celebração. Mas o rumo
daquele encontro – e da história da região – virou do avesso na hora do almoço.
A reunião foi abruptamente
interrompida por uma sentença, que me foi anunciada por telefone pelo pároco
Porto de Moz, padre Ney: “Carlos, mataram a Dorothy.” Eu caí desmaiado. A
reunião acabou. E o governo do então presidente Lula levava um tapa na cara
daqueles que mandam e desmandam na Amazônia.
Eu havia conversado com a irmã
Dorothy Stang pela última vez no dia 24 de dezembro de 2004. Liguei para
desejar-lhe um bom Natal e tentar deixar uma mensagem de esperança.
As ameaças dos grileiros e
madeireiros em Anapu eram tantas e tão explícitas que seguiam até um certo
método: começava com pressões sobre as famílias para abandonar os lotes de
terra. Depois, os roçados e as florestas dos lotes eram incendiados e
“pulverizados” com semente de capim (cresce rápido e domina o terreno, tornando
difícil estabelecer um novo roçado de milho, mandioca ou feijão). Tiros eram
ouvidos à noite, próximos às casas. Resistindo à pressão até aquele momento, a
família recebia a visita indesejada de capangas dos grileiros, que atiravam no
fundo de todas as panelas da casa enquanto subiam o tom das ameaças verbais. Se
o caboclo ainda insistisse em permanecer no lote, sua casa era incendiada e ele
podia ser morto.
Esse era o cotidiano da irmã
Dorothy. Eram essas as coisas que ela relatava quando ligava para mim. Vivendo
desde a década de 60 no Brasil e desde o início da década de 80 na região de
Anapu, a freira não tinha medo. Mas pedia ajuda.
Pouco mais de um mês antes do
Natal, eu havia encontrado o Ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, num
evento em Manaus. Conversei com ele sobre a situação em Anapu, a violência
contra as comunidades locais e as ameaças à irmã Dorothy, ao Padre Amaro e a
outras lideranças locais por fazendeiros e madeireiros de Altamira e
Transamazônica. Após me ouvir, o ministro pediu que eu enviasse documentos que
tivesse a respeito para seu gabinete, para que seus assessores pudessem se
inteirar do assunto e para tomada de decisão.
A tarefa era simples, pois irmã
Dorothy, a quem encontrei várias vezes ao longo daquele ano de 2004, tinha me
dado cópias das muitas denúncias feitas ao Ibama, ao Incra, e à Polícia Civil,
com detalhes da ação daqueles que queriam expulsar à força famílias e
comunidades inteiras em Anapu das terras que pleiteavam do Incra, em Projetos
de Desenvolvimento Sustentável, uma forma de assentamento da reforma agrária
adequado às áreas florestais. Eu já havia enviado a documentação seguidas vezes
à PF, sem sucesso.
O ministro desceu a ordem: no
início de dezembro de 2004, recebi um telefonema de um dos diretores da Polícia
Federal que, por dever de ofício, pediu que eu explicasse o que estava
acontecendo. Contei a ele sobre o que sabia sobre a violência em Anapu e as
ameaças de morte contra Dorothy e seus companheiros. Ouvi logo como resposta
que a PF recebia várias denúncias como aquela por semana. Depois de eu insistir
sobre a gravidade da situação e ameaças de morte, o diretor pediu que eu lhe
enviasse documentos e me disse que iriam fazer uma averiguação no local. Enviei
mais uma vez cópias do calhamaço de documentos que a irmã Dorothy havia me
passado.
Na véspera daquele Natal de 2004,
disse à missionária que não sabia se a PF iria ou não ao local, mas que, pelo
menos, tinham dito que iriam avaliar a situação. E despedi-me desejando-lhe uma
noite de paz junto àqueles que eram sua família, o padre Amaro e os
comunitários de Anapu. Infelizmente, o primeiro agente da PF – com a roupa do
corpo, sem viatura ou reforços – só botou os pés em Anapu em fevereiro de 2005,
para investigar o assassinato.
A missionária católica Dorothy
Mae Stang chegou ao Brasil em 1966, para servir de início no Maranhão e depois
na Amazônia. Quando chegou a Altamira, pediu ao bispo do Xingu, D. Erwin
Kräutler, que a instalasse “no lugar mais pobre daqui”. Ganhou a missão de
atuar como professora na miserável Anapu, na Transamazônica.
Na década de 1990, a vida da irmã
Dorothy mudaria de vez, com o anúncio, pelo governo Fernando Henrique, do Plano
Avança Brasil. Tratava-se de um inédito assalto de obras de infraestrutura
planejadas para a Amazônia, que incluíam o asfaltamento da BR-163, da
Transamazônica e a hidrelétrica de Belo Monte, um plano dos militares
engavetado desde o governo Collor.
A mera expectativa das obras fez
com que centenas de famílias de lugares ainda mais pobres que Anapu, no
Maranhão e no Piauí, afluíssem à região, na esperança de obter emprego na
construção da usina. Pelo mesmo motivo, reacendeu-se em todo o sul do Pará uma
corrida de grileiros às terras públicas, já que o preço da terra subiria. O
desmatamento e a extração ilegal de madeira explodiram. À irmã Dorothy, que às
vezes recebia em Anapu uma família de migrantes por dia, só restava acolher
essas pessoas e tentar dar-lhes alternativa de vida. Por isso ela lutou para
criar os PDS. E por isso ela morreu com seis tiros à queima-roupa na beira da
estrada.
A atrocidade cometida contra uma
mulher de 73 anos, freira, estrangeira, e o fato de uma ministra de Estado
estar na mesma região do Xingu no dia do crime criaram um desses momentos raros
no Brasil: um instante em que o país parece, ainda que por pouco tempo,
insurgir-se contra a própria estupidez. O plano de prevenção e controle do
desmatamento na Amazônia, que transitava de gaveta em gaveta no governo desde
2004 começou a sair do papel ali, com a megaoperação do Exército para combater
crimes fundiários e ambientais no sul do Pará.
A comoção nacional e
internacional (num tempo em que o Palácio do Planalto se importava com essas
coisas) deram ao fraco Ministério do Meio Ambiente cacife político para operar
na Amazônia conforme o plano. Uma área de 8 milhões de hectares no coração da
zona de conflito fundiário do Pará foi interditada para a criação de áreas
protegidas, para combater a grilagem. Os créditos de bancos públicos que
financiavam o desmatamento e a pistolagem foram depois cortados por decreto
presidencial. Naquele 12 de fevereiro de 2005, a taxa de desmatamento começou a
cair na Amazônia.
Passados dez anos dos disparos
feitos por Fogoió a mando dos fazendeiros “Bida” e “Taradão”, as lições do
episódio foram esquecidas. Outras lideranças morreram e continuam morrendo em
disputas fundiárias e por recursos na Amazônia – José Cláudio e Maria, João
Chupel Primo, Adelino Ramos, para citar apenas alguns. Entre 2002 e 2013, quase
metade de todos os assassinatos de ativistas ambientais do mundo ocorreram no
Brasil, conforme afirma a Global Witness. E segundo um relatório da Comissão
Pastoral da Terra, pelo mentos 174 pessoas estão hoje ameaçadas de morte na
Amazônia Brasileira.
A taxa de desmatamento caiu do
patamar de 19 mil quilômetros quadrados para algo em torno de 5 mil quilômetros
quadrados por ano na Amazônia. Apesar de lá em Brasília muita gente celebrar
estes números como estrondoso sucesso, tais taxas de destruição seriam um
escândalo em qualquer lugar do mundo. O Brasil ainda é o país que mais destrói
florestas no planeta. Além da Amazônia, pelo menos 7 mil quilômetros quadrados
de Cerrado são destruídos a cada ano no Brasil. Cerca de 93% da Mata Atlântica,
20% da Amazônia e 50% do Cerrado já viraram fumaça.
O poder público, sobretudo ao
longo dos últimos quatro anos, dá sinais preocupantes de reversão nas políticas
que permitiram que a devastação caísse: mudou o Código Florestal, anistiando
desmatamentos passados; suspendeu a criação de unidades de conservação;
abandonou a política de manejo sustentável de madeira que daria alternativas
econômicas às famílias de locais como a Transamazônica e a BR-163; e
ressuscitou todo o pacote de obras do Avança Brasil, ora rebatizado como PAC. A
usina de Belo Monte, uma das causas originais dos problemas de Anapu, saiu do
papel, com mais desmatamento e mais violência em seu rastro. Unidades de
conservação criadas no sul do Pará para conter a grilagem foram reduzidas por
decreto para acomodar um conjunto de novas usinas hidrelétricas.
O governo federal parece fiar-se
em tudo o que “fez” na década passada para seguir empurrando a Amazônia com a
barriga – e com os tratores das obras do PAC. Uma política de desenvolvimento
regional que leve em conta o potencial e as especificidades da região jamais
foi implementada, e parece distante de sê-lo.
Pode ser útil, nesta época em que
se planejam os novos compromissos internacionais do Brasil na área de
desmatamento e mudanças climáticas, lembrar do que a leniência dos agentes
públicos e de toda a sociedade fizeram com Dorothy. E recordar que a devastação
só começou a arrefecer na floresta amazônica por causa de um crime bárbaro e
uma vergonha global. Nenhum dos dois parece um bom guia para políticas
públicas, ainda mais numa região de quase 30 milhões de habitantes e que abarca
60% do território nacional. Do assassinato da educadora Dorothy Stang, lições
profundas ainda aguardam para ser aprendidas.
Carlos Rittl é
secretário-executivo do Observatório do Clima, uma coalizão de entidades da
sociedade civil
Fonte: Revista Epoca
Nenhum comentário:
Postar um comentário