O Brasil está entre os países com
maior índice de homicídios de mulheres no mundo – quadro que reforça a urgência
de respostas eficazes do Estado e da sociedade para prevenir e punir a
violência de gênero.
Na América Latina, instituições internacionais traçam
recomendações para enfrentar o alto índice de assassinatos de mulheres,
enquanto 11 países latino-americanos já criaram leis específicas para coibir o
feminicídio.
Feminicídio é o assassinato de
uma mulher pela condição de ser mulher. Suas motivações mais comuns são o ódio,
o desprezo ou o sentimento de perda da propriedade sobre as mulheres, em uma
sociedade marcada pela desigualdade de gênero, como a brasileira
Com uma taxa de 4,4 assassinatos
em 100 mil mulheres, o Brasil está entre os países com maior índice de
homicídios femininos: ocupa a sétima posição em um ranking de 84 nações,
segundo dados do Mapa da Violência 2012 (Cebela/Flacso). “Mais de 43 mil
mulheres foram assassinadas no País na última década, uma realidade vergonhosa
que torna a tipificação penal do feminicídio uma demanda explícita e urgente,
cuja real aplicação tem no Judiciário elemento indispensável”, comenta Flávio
Crocce Caetano, secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça.
No País, o cenário que mais
preocupa representantes do Estado engajados em impedir a mais extrema das
violências de gênero é o do feminicídio íntimo, aquele cometido em contexto de
violência doméstica. Além desse, outras duas circunstâncias que caracterizam
este crime são a prática de violência sexual ou a tortura e mutilação da vítima
antes ou depois do assassinato – segundo Projeto de Lei do Senado que pode
criar uma tipificação penal específica para esse crime (PLS 292/2013).
De acordo com o Mapa da
Violência, altas taxas de feminicídio costumam ser acompanhadas de elevados
níveis de tolerância à violência contra as mulheres e, em alguns casos, são
exatamente o resultado dessa negligência. Os mecanismos pelos quais essa
tolerância é exercida podem ser variados, mas um prepondera: a culpabilização
da vítima como justificativa dessa forma extrema de violência.
“Basicamente, o mecanismo de
autojustificação de várias instituições, principalmente aquelas que deveriam
zelar pela segurança e pela proteção da mulher, coloca a vítima como culpada. A
mulher é responsabilizada pela violência que sofre. Este tipo de postura
institucional de tolerância à violência e impunidade não só permite como
incentiva o feminicídio”, avalia o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz,
responsável pelo Mapa da Violência.
Esse quadro coloca desafios para
o poder público, que busca formas de avançar na efetivação da Lei Maria da
Penha e ainda debate novos caminhos para complementar a legislação e coibir de
maneira efetiva o assassinato de mulheres.
A preocupação no Brasil está em
sintonia com a crescente dedicação de organizações internacionais a este tema:
órgãos da ONU discutem a criação de protocolos para investigar e enfrentar o
problema, enquanto 11 países latino-americanos já criaram leis específicas para
coibir o feminicídio.
Por falta de um tipo penal
específico ou de protocolos que obriguem a designação do assassinato de uma
mulher em razão do gênero em grande parte da rede de Saúde ou Segurança
Pública, o feminicídio ainda conta com poucas estatísticas que apontem sua real
dimensão no País.
O Mapa da Violência 2012 é uma
referência sobre o tema e revelou que, entre 1980 e 2010, mais de 92 mil
mulheres foram assassinadas, sendo 43,7 mil só na última década – ou seja, em
média, a cada 2 horas uma brasileira foi morta por condições violentas.
Além de grave, o número aumentou.
Comparando-se o número de mortes no primeiro ano (1980) e no último (2010) do
período estudado, os homicídios passaram de 1.353 para 4.465 – um aumento de
assustadores 230%.
O Mapa da Violência mostrou ainda
que é no ambiente doméstico que mais ocorrem as agressões contra as mulheres.
No estudo, em 71,8% dos atendimentos registrados a violência aconteceu na
residência da vítima e 41% das mortes femininas ocorreram dentro de casa. Em
42,5% dos casos, o agressor é o parceiro ou ex-parceiro da mulher. Na faixa
entre os 20 e os 49 anos, esse percentual salta para 65%.
“São grupos familiares que,
repetidamente, à revelia, violentam as mulheres e seguem como se nada tivesse
acontecido”, frisa Jacobo. “Esse é um problema que tem que ser enfrentado, pois
se trata de um grupo vulnerável, que legalmente deve ter proteção prioritária e
está sendo oprimido”, complementa.
Uma certeza entre especialistas é
que esses dados mostram que a violência doméstica é a maior motivadora dos
feminicídios no Brasil. Para a juíza Adriana Ramos de Mello, do Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), “este é um problema muito sério. O Brasil
está em 7º lugar no Mapa da Violência e grande parte desses assassinatos ocorre
no âmbito doméstico e é fruto de uma sociedade patriarcal marcada pela
desigualdade de poder nas relações”.
Diferentemente de outros países
da América Latina nos quais o homicídio associado à violência sexual é o mais
preocupante, no Brasil o homicídio por alguém que manteve ou mantém uma relação
de afeto com a vítima é o mais alarmante. Em geral, o feminicídio é precedido
por outras formas de violência e, portanto, poderia ser evitado.
“O feminicídio íntimo é um
contínuo de violência. Antes de ser assassinada a mulher já passou por todo o
ciclo de violência, na maior parte das vezes, e já vinha sofrendo muito tempo
antes. A maioria dos crimes ocorre quando a mulher quer deixar o relacionamento
e o homem não aceita a sua não subserviência”, explica a magistrada do Rio de
Janeiro.
População avalia que risco de feminicídio é real
Recente pesquisa de opinião
revela que a percepção da população brasileira é de que a vida da mulher de
fato está em grande risco quando ela sofre violência doméstica. Segundo o
levantamento Percepção da Sociedade sobre Violência e Assassinatos de Mulheres
(Data Popular/Instituto Patrícia Galvão), lançada em agosto, 85% dos
entrevistados acham que as mulheres que denunciam seus parceiros ou ex quando
agredidas correm mais risco de serem assassinadas.
O silêncio, porém, também não é
apontado como um caminho seguro: para 92%, quando as agressões contra a
esposa/companheira ocorrem com frequência, podem terminar em assassinato. Ou
seja, o risco de morte por violência doméstica é iminente e sabido.
Para a socióloga Fátima Pacheco
Jordão, especialista em pesquisas de opinião, estudos mostram a seriedade do
problema. “De um lado as estatísticas do Brasil em relação ao resto da América
Latina são terríveis, os números em si do Mapa da Violência já mostram a
gravidade. O segundo ponto é que a pesquisa sobre assassinatos revela a
percepção de naturalidade da população, mostrando que, para a maioria, o fim
violento por homicídio é passível de acontecer correntemente”, explica.
Segundo a especialista, o contexto
de violência doméstica agrava ainda mais o quadro. “Se pensarmos a questão do
valor da residência, do abrigo privado, da condição familiar como o espaço mais
perigoso para as mulheres, o problema ultrapassa qualquer limite de aceitação.
Ou seja, vai além de um grau de civilização, está no plano da barbárie, no qual
o espaço privado esconde execuções e torturas”, destaca.
Equipamentos para cumprir a lei
Entre as propostas para evitar
essas ‘mortes anunciadas’, algumas são mais recorrentes na avaliação dos
especialistas: o engajamento das instituições públicas para efetivar plenamente
a Lei Maria da Penha é um caminho, tanto no sentido de proteção à vida das
mulheres, no curto prazo, quanto para coibir o problema, por meio das ações de
prevenção à violência de gênero no longo prazo.
“São necessárias também políticas
de prevenção e reeducação, porque a Lei sozinha não extingue o crime. Nesse
sentido, a responsabilidade do Estado, e também da sociedade, é trabalhar na
implementação dos serviços que a Lei Maria da Penha propõe, como políticas de
educação, uma rede intersetorial de atendimento em Saúde, Assistência Social,
Segurança Pública e Justiça. Precisamos que sejam implementadas em todo o País
as Defensorias das Mulheres, as Varas de Enfrentamento à Violência
Intrafamiliar e contra as Mulheres, casas abrigo e serviços de atenção
psicossocial”, afirma a médica Ana Flávia d’Oliveira, pesquisadora da Faculdade
de Medicina da Universidade de São Paulo.
Para a juíza do TJRJ, Adriana
Mello, é preciso discutir mais a questão da violência contra as mulheres no
campo da educação e também com profissionais que atuam na atenção às vítimas,
especialmente nos equipamentos de Saúde e Segurança Pública e no Sistema de
Justiça.
Além dos desafios para a
efetivação da Lei Maria da Penha, outras ações são discutidas para complementar
o enfrentamento ao feminicídio. Entre elas, está a proposta de criação de um
tipo penal específico para este crime, que auxilie a produzir dados para
embasar políticas públicas. Também a adoção de protocolos para investigação do
feminicídio, que por um lado auxiliariam na produção desses dados, e por outro
garantiriam maior eficácia na coleta de provas e perícia para dar materialidade
a este tipo de crime.
“Como boa parte desses homicídios
é íntimo, a cena do crime pode ser desfeita, as provas e testemunhas podem ser
mais difíceis também. Isso pode prejudicar a investigação e, consequentemente, o
processo penal. Então, a instauração de protocolos de investigação para a
Polícia, Ministério Público e Magistratura é recomendada”, explica a juíza.
Recomendações de organismos internacionais
A preocupação com os homicídios
de mulheres no Brasil está em sintonia com a crescente dedicação de
organizações internacionais ao tema. O Alto Comissariado das Nações Unidas para
os Direitos Humanos e a ONU Mulheres, por exemplo, estão finalizando a
elaboração do protocolo latino-americano de investigação de mortes de mulheres
por razões de gênero. Paralelamente e de modo complementar a esta iniciativa,
foi elaborado um Guia de Recomendações para a Investigação Eficaz do
Feminicídio, em cooperação com especialistas latino-americanos que analisaram
os erros mais frequentes cometidos nas investigações e processos nos casos de
feminicídio e traçaram recomendações para superar tais problemas. O Conselho de
Direitos Humanos das Nações Unidas também iniciou um processo interno para
criação de uma declaração ou protocolo universal sobre o feminicídio. A ideia é
apresentar uma petição para discutir o tema na Assembleia Geral da ONU no
próximo ano.
Para a ministra da Secretaria de
Políticas para as Mulheres da Presidência, Eleonora Menicucci, as iniciativas
respondem ao desafio de se enfrentar o crime do feminicídio a partir de um dos
consensos que cerca esse tema: o de que as investigações do crime têm caráter
especializado e que, muitas vezes, por falta de uma real perspectiva de gênero,
não se coletam as evidências necessárias, fomentando assim a impunidade crônica
que estimula a sua recorrência.
Tanto o Guia como o protocolo
deverão ser usados em processos de capacitação nos países latino-americanos,
para que as recomendações indicadas sejam de fato colocadas em prática, segundo
informou um dos autores do Guia, o advogado espanhol, doutor em Direito e
mestre em Direitos Humanos, Emilio Gines Santidrián, em passagem pelo Brasil.
Segundo o jurista, a publicação é
um avanço na América Latina e se soma às legislações e sentenças que visam a
penalização de feminicidas em diversos países da região. El Salvador,
Guatemala, Colômbia, Nicarágua e Bolívia já criaram leis especiais de
prevenção, atenção e sanção da violência contra as mulheres que abordam o
feminicídio. Já Costa Rica, Chile, Peru, Argentina, Honduras e México
reformaram as leis penais nacionais existentes nesse sentido. (Confira aqui o
quadro sobre as legislações da América Latina)
“Já tivemos decisões importantes
nas cortes da Guatemala, El Salvador e Peru, que ajudam a dar visibilidade para
esse tipo de crime. Essas sentenças favoráveis indicam que está havendo uma
mudança de consciência do Judiciário, que não está mais encarando esses casos
com preconceito”, aponta Santidrián, também membro do Subcomitê para Prevenção
da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas e Degradantes das
Nações Unidas.
Reconhecimento global
A sensibilização em torno do tema
também marcou a 57ª Sessão da Comissão sobre a Situação da Mulher (CSW) da ONU,
realizada em Nova York, em março deste ano, com a presença de representantes
dos 45 países membros. No encontro, houve o reconhecimento internacional do
crime de assassinato de mulheres relacionado à sua condição de gênero. A 57ª
CSW recomendou ainda o fortalecimento de legislações para punir o grave
fenômeno.
A mesma recomendação é feita pelo
Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher da ONU (CEDAW). “O
Comitê entende que é importante essa explicitação e se manifesta aos países com
a recomendação de que realizem tipificações como essa, que são positivas por
dar visibilidade ao feminicídio”, afirma a advogada e presidente do CEDAW, a
brasileira Silvia Pimentel, que também integra o Comitê Latino-Americano e do
Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem).
Sensibilização é o primeiro passo
Para a especialista da ONU, a
maior sensibilização dos órgãos internacionais – manifesta inclusive por
recomendações do CEDAW chamando atenção para o feminicídio nas análises feitas
a partir de relatórios periódicos enviados pelos países sobre a situação da
violência contra as mulheres – é um exemplo dos avanços obtidos no cenário
internacional. “Até pouco tempo, o feminicídio não era verbalizado, destacado
ou criminalizado. Simplesmente, era uma questão que não aparecia nesses
trabalhos”, destaca.
A mesma visão é compartilhada
pela representante da ONU Mulheres no Brasil, Nadine Gasman. “Cada vez mais os
países estão ratificando o feminicídio como delito específico. Isso foi feito
de diferentes maneiras, mas o que é importante para nós é que o Sistema de
Justiça está abordando o tema de uma forma específica, o que há alguns anos não
se fazia. Podemos pensar que, com melhores sistemas de informação e com mais
tempo – porque são legislações muito recentes, a tendência será diminuir a
violência contra as mulheres”, acredita a representante da ONU Mulheres.
Fonte: Compromisso e Atitude
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