A Vale foi responsabilizada pelo Ministério do
Trabalho e Emprego por submeter 309 pessoas a trabalho análogo ao de escravo em
Itabirito, Minas Gerais. Segundo auditores fiscais, motoristas eram submetidos
a jornadas exaustivas e a condições degradantes e foram vítimas de fraude,
promessas enganosas e ameaças. Eles também não podiam usar o banheiro e tinham
que trazer água de casa.
Por Leonardo Sakamoto
Questionada, a Vale afirma que uma empresa
terceirizada é a responsável pelos trabalhadores. A matéria é de Ana Aranha, da
Repórter Brasil:
Ela é a maior produtora de minério de ferro do
mundo, está presente em cinco continentes e é a maior exportadora do Brasil.
Apesar do vigor internacional, a Vale economizou na faxina do banheiro dos
funcionários responsáveis pela retirada do minério de ferro das minas de Minas
Gerais. O ar empesteado e as fezes espalhadas no chão foram apenas o primeiro
sinal, quando a equipe do Ministério do Trabalho e Emprego começou a
fiscalização, de que eram graves os problemas trabalhistas na Mina do Pico. Ao
final do primeiro dia de inspeção, o canteiro foi interditado e a Vale
responsabilizada por submeter 309 pessoas ao trabalho análogo ao de escravo.
O ambiente era “repugnante”, nas palavras dos
auditores fiscais da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Minas
Gerais. A inspeção, que teve início no dia 2 de fevereiro, autuou a empresa por
32 infrações trabalhistas.
As vítimas eram motoristas que levavam o
minério de ferro pela estrada particular da Vale que liga duas minas em
Itabirito. Embora fossem empregados por uma empresa subcontratada, a Ouro
Verde, os auditores consideraram a terceirização como ilícita e
responsabilizaram a Vale.
Procurada pela reportagem, a mineradora
encaminhou nota apresentando a Ouro Verde como única responsável pelas
infrações: “A Vale informa que a empresa contratada, Ouro Verde, teve seu
canteiro de obras inspecionado pelo Ministério do Trabalho, quando foram
definidas adequações no local necessárias e relacionadas à legislação de saúde
e segurança. A contratada foi formal e imediatamente notificada pela Vale a
providenciar essas adequações”.
Mas os órgãos fiscalizadores têm uma visão
diferente: “A Vale sabia de tudo e deixou correr solto. Temos um relatório em
que eles detectam e registram mais de 30 inconformidades nessa terceirizada”,
diz o auditor fiscal Marcelo Campos, coordenador do Projeto de Combate ao
Trabalho Análogo ao de Escravo em Minas Gerais e responsável pela ação.
“A Vale é a responsável por esses motoristas,
não há dúvida disso”, afirma a procuradora Adriana Augusta de Moura Souza, que
abriu um inquérito no Ministério Público do Trabalho para investigar a
caracterização de trabalho escravo. Ela lembra que, em 2013, uma sentença
judicial já proibia a Vale de terceirizar os motoristas internos. “A sentença é
clara, o juiz cita expressamente a questão do transporte como atividade que não
pode ser terceirizada”, diz a procuradora. Além desse, há diversos outros casos
em que a justiça vedou a terceirização.
A Vale contesta essa sentença e se recusa em
assumir a contratação dos trabalhadores. A multa acumulada pela “desobediência”
está em R$ 7 milhões – equivalente a menos de 1% do lucro da empresa em 2014.
Apesar da dor de cabeça com a justiça, essa
ainda parece ser a solução que apresenta o melhor negócio para a empresa.
Segundo levantamento da procuradora do MPT, mais de 50% das atividades
realizadas dentro do complexo minerário da Vale são terceirizadas, da implosão
de rochas ao transporte. Quanto mais a empresa terceiriza, observa a
procuradora, piores são as condições ofertadas aos trabalhadores.
Jornada exaustiva, sem água e sem banheiro –
Devido ao estado de calamidade instalado no banheiro da Mina do Pico, os
motoristas eram obrigados a fazer suas necessidades na estrada e não podiam
tomar banho ou trocar de roupa ao fim do expediente. Voltavam para casa com
roupa e pele sujas.
Tudo no ponto de parada estava tão sujo que
ninguém tinha coragem de beber do bebedouro, que ficava logo ao lado do
banheiro empesteado, lembra um motorista com mais de 30 anos de experiência que
falou com a reportagem sob a condição de anonimato. “Até água pra beber tinha
que levar de casa. Fazia mais de 20 anos que não via serviço ruim assim. Foi o
pior da minha vida.”
Ele lembra que era obrigado a fazer horas
extras. “A gente fica com sono, é perigoso”. A jornada exaustiva, em que a
pessoa trabalha tanto e de forma tão intensa, que coloca em risco sua saúde,
segurança e vida, foi caracterizada depois que os auditores contaram 2.777
turnos que excediam os limites permitidos.
Em um caso, um motorista dirigiu por 23 horas
com apenas um intervalo de 40 minutos. Outro trabalhou do dia 14 de dezembro a
11 de janeiro sem nenhum dia livre – nem mesmo o natal ou o primeiro de janeiro.
“Foram muitos os casos de não concessão das horas de repouso entre os turnos,
isso tipifica o artigo 149 do Código Penal, que é reduzir alguém a condição
análoga à de escravo”, afirma Aloísio Alves, procurador do MPT que recebeu
denúncias sobre jornada excessiva na Ouro Verde e acompanhou os primeiros dias
da fiscalização.
Promessas enganosas e ameaças – A supressão do
tempo de descanso era incentivada pela empresa por meio de campanhas que
ofereciam prêmios pelo aumento da produtividade, o que é proibido em atividades
que envolvem risco. Nos depoimentos aos auditores, motoristas revelam que
substituíram o almoço por bolachas e que passaram a dirigir na velocidade
máxima permitida. Eles citam acidentes que teriam acontecido depois que a
campanha teve início. “A gente começou a ver mais ultrapassagem perigosa. É
caminhão pesando 100 toneladas ultrapassando caminhão de 30 metros de
comprimento”, diz o motorista que não quer se identificar.
Tudo isso para receber um acréscimo de R$ 200 a
300 no vale refeição e para entrar no sorteio de uma moto e um aparelho de TV.
Premiação que, aliás, nunca veio. Quando perceberam que a recompensa pelo
esforço extra não fora depositada, alguns motoristas começaram a reclamar.
Alguns pararam de trabalhar em sinal de protesto.
Foi então que as ameaças teriam começado.
Segundo depoimentos registrados pelos auditores, o responsável pelos motoristas
na Ouro Verde teria rasgado o papel onde o prêmio estava anunciado e agredido
verbalmente os trabalhadores, humilhando e ameaçando de demissão quem
reclamasse. De fato, quando os auditores chegaram à mineradora, os funcionários
que reclamaram estavam sendo demitidos.
Por meio de sua assessoria de imprensa, a Ouro
Verde emitiu nota dizendo que as irregularidades constatadas na jornada dos
trabalhadores seriam “decorrentes de problemas sistêmicos no relógio
ponto”. Sobre o programa de incentivos,
a empresa “rechaça com veemência” os termos ‘promessa enganosa’ e ‘ameaça’,
afirmando que “por conta dos problemas nos relógios pontos, não foi possível
apurar os resultados obtidos pelos empregados e realizar o pagamento dentro do
prazo prometido. A empresa, no entanto, por medida de justiça com o
trabalhador, optou por pagar a premiação a todos os elegíveis,
independentemente da aferição ou não do resultado” (leia a nota na íntegra).
O custo do trabalho escravo -A mina ficou
interditada por três dias, o tempo necessário para que a empresa tomasse as
medidas de correção: lavaram e pintaram o local de descanso, consertaram o
banheiro, instalaram chuveiros e se comprometeram a respeitar a carga horária
dos funcionários. “Isso demonstra que manter os trabalhadores em dignidade não
era algo difícil para a empresa. Ao que parece, a Vale apenas não queria ter
esse custo”, aponta Campos.
Apesar de uma extensa ficha de problemas
trabalhistas e impactos socioambientais, essa é a primeira vez que a Vale é
responsabilizada pela exploração de mão de obra análoga à de escravo. A empresa
é signatária do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, afirma
possuir uma política de monitoramento de seus negócios e ter excluído de sua
cadeia de fornecedores usinas de ferro gusa que se utilizaram desse crime.
Apesar dos questionamentos da reportagem, a
Vale não respondeu se a mesma regra se aplica à terceirizada que foi flagrada
ao cometer o crime dentro da mineradora.
Fonte: Blog de Sakamoto
Nenhum comentário:
Postar um comentário