"Se Eva tivesse escrito o
Gênesis, como seria a primeira noite de amor do gênero humano? Eva teria
começado a esclarecer que ela não nasceu de nenhuma costela, nem conheceu
nenhuma cobra, nem ofereceu maçãs para ninguém, e que Deus nunca disse que
parirá com dor e seu marido lhe dominará. Que todas essas histórias são puras
mentiras que Adão disse à imprensa."
O escritor uruguaio Eduardo
Galeano, autor de "As Veias Abertas da América Latina", morreu nesta
segunda-feira (13) aos 74 anos em Montevidéu.
Galeano estava
hospitalizado desde a última sexta-feira (10), em decorrência de um câncer no
pulmão.
Considerado um dos mais
importantes representantes da literatura latino-americana, o autor publicou
"As Veias Abertas da América Latina" em 1971. O título, que analisa a
história da América Latina desde a colonização, se transformou em um clássico
da literatura política do continente.
Mulheres, por Eduardo Galeano
Charlotte
O que aconteceria se uma mulher despertasse uma manhã transformada em
homem? E se a família não fosse o campo de treinamento onde o menino aprende a
mandar e a menina a obedecer? E se houvesse creches? E se o marido participasse
da limpeza e da cozinha? E se a inocência se fizesse dignidade? E se a razão e
a emoção andassem de braços dados? E se os pregadores e os jornais dissessem a
verdade? E se ninguém fosse propriedade de ninguém?
Charlotte Gilman delira. A
imprensa norte-americana a ataca, chamando-a de mãe desnaturada; e mais
ferozmente a atacam os fantasmas que moram em sua alma e a mordem por dentro.
São eles, os temíveis inimigos que Charlotte contém, que às vezes consegue derrubá-la.
Mas ela cai e se levanta, e cai e novamente se levanta, e torna a se lançar
pelo caminho. Esta tenaz caminhadora viaja sem descanso pelos Estados Unidos, e
por escrito e por falado vai anunciando, nos começos do século XX, um mundo ao
contrário.
O trecho acima faz parte de uma coletânea
intitulada Mulheres, de Eduardo Galeano, publicada pela L&PM Pocket, e que
reúne textos selecionados pelo próprio autor dos seus livros, como a trilogia
Memória do fogo (Os nascimentos, As caras e as máscaras e O século do vento), O
livro dos abraços, As palavras andantes, Vagamundo, Dias e noites de amor e
guerra e outros.
Os textos constantes em Mulheres enfocam, de
forma lírica e poética, às vezes triste e até engraçada, pequenas histórias de
mulheres da América Latina ou ligadas a essa região. São pessoas célebres,
algumas nem tanto ou ainda anônimas, não importa. São mulheres que, com sua
vivência, deixaram marcas no dia a dia das pessoas com as quais conviveram e,
por isso, devem ser lembradas.
Com a pena firme e a alma leve,
Galeano toca o universo feminino de deusas de carne e osso, assim como o poeta
gaúcho, da mulher companheira com "graça de garça para enfeitar a
primavera e garra de fera para lutar a vida inteira". Fala de cientistas e
militantes, de uma peregrina da revolução que "dedicou sua turbulenta vida
a lutar contra o direito de propriedade do marido sobre a mulher, do patrão
sobre o operário e do amo sobre o escravo", de rainhas da Mãe África e do
império britânico, do clarão da noite e da escuridão de alguns dias.
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