Sempre que a vinheta carnavalesca
da Globo é exibida na televisão, o Brasil reafirma sua herança racista e
misógina. Ainda mais preocupante é que poucos parecem se incomodar com o
racismo explícito.
Por Jarid Arraes na Revista Fórum
No Brasil, impera a ilusão de uma
convivência racial harmoniosa, segundo a qual pessoas de diferentes cores e
miscigenações conviveriam na mais perfeita paz, sem que suas características
físicas jamais se tornassem alvo de discriminação. No entanto, esse discurso
cai por terra facilmente: o racismo brasileiro está vivo e, de fato, é tão bem
aceito na sociedade que questioná-lo soa como um ultraje. Um exemplo dessa
realidade é a existência do Globeleza, quadro da Rede Globo que exibe mulheres
negras – chamadas por eles de “mulatas” – no período do carnaval.
Não é difícil compreender onde
mora o racismo do Globeleza: a Rede Globo seleciona somente mulheres negras
para que representem a sexualidade do Carnaval, que, como sabemos, está
relacionada ao sexo considerado “promíscuo”; ou seja, ano após ano, a mulher
negra é associada a um objeto sexual descartável, que representa uma
sexualidade compulsiva, sem que possua qualquer valor fora desse papel. Essa é
uma mentalidade racista que existe desde os tempos de escravidão, quando
mulheres negras escravizadas eram estupradas por homens brancos, que mantinham
seus casamentos com mulheres brancas, mas usavam as negras de forma abusiva e
violenta.
Sempre que a vinheta carnavalesca
da Globo é exibida na televisão, o Brasil reafirma sua herança racista e
misógina. Ainda mais preocupante é que poucos parecem se incomodar com o
racismo explícito. É possível até ouvir posicionamentos moralistas, de pessoas
que repudiam o quadro por seu conteúdo de nudez, mas dificilmente denunciarão a
problemática racial e os prejuízos que a Globo vem causando às mulheres negras
todos os anos.
As críticas feitas contra o
Globeleza não são recentes. Tanto o movimento negro quanto o feminista já
elaboraram teorias e protestos de longa data no constante esforço de
eliminá-lo. Os estereótipos racistas e machistas, afinal, se repetem bastante.
Toda a polêmica envolvendo o seriado Sexo e as Nêgas, de Miguel Falabella, é
mais um exemplo do padrão racista da televisão brasileira, tão fortemente utilizado
pela Rede Globo.
Eliane Oliveira, mestre em
Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e membro do Núcleo
de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiros (NEIAB), é categórica em sua
análise: o Globeleza e a série Sexo e as Nêgas repetem os mesmos papéis
destinados às mulheres negras. “Uma permanência da relação com o sexual, com o
exótico. É racismo e machismo misturado, me parece que não conseguem perceber
nós negras para além da cama, um estigma colonial que não desaparece, que não é
superado, os sinhôs e sinhás achando que a preta está ali para servir, a seu
bel prazer”.
Escolhida para a rejeição
Érika Moura, Nayara Justino e
Valéria Valenssa: “Engana-se profundamente quem pensa que a posição de
Globeleza só traz frutos positivos para a mulher escolhida” (Foto: Reprodução)
Engana-se profundamente quem pensa
que a posição de Globeleza só traz frutos positivos para a mulher escolhida. O
caso de Nayara Justino, escolhida como Globeleza por voto popular pela
programação da Globo, escancara a perversidade por trás desse quadro: Nayara
foi eleita pelos telespectadores e foi coroada como musa do carnaval, mas logo
passou a receber ataques e ofensas racistas, principalmente pela internet. O
discurso repetido discriminava Nayara por ter a pele muito escura e não possuir
traços faciais considerados delicados.
Por causa do racismo do público,
a Rede Globo empurrou Nayara para a geladeira e fez de tudo para escondê-la, o
que a levou a cair em depressão. Para 2015, a Globo elegeu uma nova “mulata”: a
paulista Erika Moura, que tem a pele mais clara e a aparência física mais
próxima do padrão negro que a emissora permite ser mostrado em sua telinha. “A
Erika é linda e pelo que sei, a seleção foi feita dentro das escolas de samba.
A Nayara também é linda e foi escolhida pelo voto popular. A meu ver, o
problema está na padronização ou estereotipia da mulher negra aceitável para a
tela da TV. Ou seja, tem negra que pode e negra que não pode. Alguém com os
traços marcadamente negros, tom de pele mais escuro, lábios grossos e nariz
redondo não passa pelo crivo racista do público brasileiro”, explica Oliveira.
Segundo Oliveira, tanto Erika
quanto Nayara são mulheres negras e lindas, sem que uma seja mais ou menos bela
que a outra – o problema é a tentativa da emissora de embranquecer a beleza
negra para aproximá-la do padrão europeu. “Basta ver como anunciam a nova
escolhida: ‘uma morena linda’”, exemplifica. Ela ainda explica que o padrão
racial da Globo é o padrão racial dos brasileiros, que parecem não entender que
50% da população do país é negra. “A impressão que tenho é de que nós não
existimos como telespectadores nem como consumidores, não precisamos nos ver
representados, pois apenas o desejo, o gosto, o dinheiro do branco é que conta.
Vivemos essa falácia de branqueamento há séculos e não conseguimos nos livrar
desse ranço, o colorismo é a herança que parece não ter fim”, lamenta.
A situação é complexa e difícil,
sobretudo quando colocamos na berlinda a saúde psicológica de mulheres como
Nayara Justino. Em poucos meses, a mulher que foi aclamada e aplaudida pelo
público pode se tornar o alvo de chacota do país, mas ao final ainda terá de
agradecer pela oportunidade concedida. Essa é uma lógica cruel, mas
naturalizada. No entanto, é fundamental não se deixar ludibriar, porque não
existe lado positivo no racismo e na objetificação sexual. O espaço concedido,
quando construído sobre preconceito racial, pode desmoronar muito rapidamente.
Mas como resolver o problema? Como lutar contra a gigante midiática e a relação
de dependência que a emissora impõe aos artistas negros?
“Penso que a relação ‘Mulher
negra e Carnaval’ precisa ser problematizada, pois para além de ser uma festa
cultural do Brasil, o Carnaval é também uma festa comercial e a ‘mulata tipo
exportação’ é mais um item a ser comercializado”, afirma Oliveira. A mulata, nesse
contexto, seria a personificação da exotificação e objetificação da mulher
negra. “Amo as passistas, o samba no pé, o cuidado com o corpo e a dedicação à
comunidade, mas questiono por que essas mulheres não têm o mesmo destaque
midiático que têm as globais que ocupam os postos de destaque nos desfiles, por
exemplo”, contesta.
Eliane Oliveira, mestre em
Ciências Sociais, defende o fim do quadro “Globeleza”: “É racismo e machismo
misturado” (Foto: Arquivo pessoal)
E as brancas?
Algumas pessoas pontuam que,
apesar das duras críticas ao Globeleza, concursos com mulheres brancas, como o
Miss Universo, não sofrem os mesmos protestos. Mas isso não passa de um engano,
baseado na mais pura ignorância. O movimento feminista aponta, sim, o sexismo existente
em concursos de beleza voltados para mulheres brancas. De fato, o Globeleza
parece ser a única disputa entre negras que recebe algum destaque, já que em
todas as outras competições femininas as mulheres brancas são absoluta maioria.
Até mesmo na Bahia, o estado brasileiro com a maior população negra, já houve
polêmicas devido à ausência de candidatas negras na seleção para o Miss Brasil.
É importante lembrar que diversas
feministas negras, tais como Eliane Oliveira, não enxergam a inclusão das mulheres
negras como uma solução definitiva para o problema. “Não encaro concursos de
Misses de forma positiva em nenhum contexto”, salienta. “Acho esse tipo de
coisa uma aberração. Qual a explicação racional para mulheres disputarem entre
si quem é mais bonita? Meu feminismo não me deixa enxergar lógica numa situação
em que mulheres batalhem entre si por um posto que é totalmente ilusório;
beleza é subjetiva, o gosto é socialmente construído.”
Mas a exclusão das mulheres
negras de concursos como o Miss Brasil tem ramificações e consequências; são
resultados que explicam o Globeleza, já que essa é uma das únicas oportunidades
para que as mulheres negras possam ser avaliadas como belas, ainda que de forma
machista e distorcida. “O Globeleza, na minha opinião, é algo que já deveria
ter desaparecido da televisão há muito tempo. Mas, ao invés disso, por termos
no Brasil uma mídia seletiva e uma sociedade racista, esse é um dos poucos
espaços de destaque que a mulher negra ainda consegue disputar na TV. Entendo
que muitas moças almejem tal posto; afinal, quais as outras possibilidades que
elas possuem na TV, ser atriz e fazer papeis subalternos?”, analisa. O fato é
que falta representatividade para as mulheres negras na televisão e, mesmo
quando aparecem, são colocadas em posições inferiorizadas, sem paridade ou
protagonismo.
O caminho rumo à paridade é
longo, mas algumas estratégias simples, porém incisivas, são sugeridas pela
intelectual, que acredita que o Globeleza deve acabar. “Por qual motivo a Globo
tem que ter uma musa do carnaval? Penso que quem deve ter musa são as
agremiações que trabalham o ano todo para isso, e que, provavelmente, devem ter
critérios de escolha que não apenas a beleza física”, considera. “O papel da
emissora se resumiria a dar destaque às moças, mas por que será que não é
assim? Podem me dizer que a escolhida para tal posto também acaba se
beneficiando, mas acho que se não houver outros espaços para onde ela possa
crescer, do estrelato para o anonimato é uma queda vertiginosa. Basta ver o que
aconteceu com a belíssima Valéria Valenssa: depois de mais de dez anos como
Globeleza, desapareceu da mídia e, pelo que li, entrou em depressão por ter
perdido o posto de forma abrupta. Não era atriz, vivia do título, quando perdeu
o posto teve que lidar com a distância dos holofotes. Sinceramente, não vejo
nada de benéfico nessa situação.”
O carnaval está chegando; a
Globeleza samba na televisão brasileira e mais uma vez aquelas que lutam contra
o racismo recebem a hostilidade dos que se recusam a questionar os padrões. No
Brasil, infelizmente o racismo machista ainda é considerado entretenimento. Na
tela da TV, no meio desse povo, racismo a gente vê na Globo.
(Foto de capa: Reprodução/TV Globo)
Fonte: Geledes
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