O papado de Francisco continua a
alvoroçar o catolicismo e a opinião pública mundiais, num pontificado que, ao
lado da promessa de fomento à “opção pelos pobres”, tem ousado fazer críticas
às engrenagens de um capitalismo em crise em níveis bem acima do esperado.
Para discutir o papel daquele que
muitos consideram o maior líder político da atualidade, o Correio da Cidadania,
21-06-2016, entrevistou o filósofo franco-brasileiro Michael Löwy, estudioso da
Teologia da Libertação.
“Obviamente, ele pretende levar a
sério o compromisso da Igreja com os pobres, suprimir os vínculos dos bancos do
Vaticano com a máfia e tentar reduzir o poder conservador da Cúria Romana. Sua
tentativa de elaborar uma concepção um pouco mais aberta da família e da
sexualidade foi diluída pelo Sínodo dos Cardeais... Há muitas resistências.
Parece que os setores mais reacionários da Igreja têm uma prece especial sobre
Bergoglio: ‘Nosso Pai que está no Céu, ilumine-o ou... Elimine-o’”, pontuou.
Ao mesmo tempo em que reconhece o
papel e importância do novo papado, Löwy contrabalança parte da visão otimista
que existe hoje relativamente às posturas de Francisco. Não por conta da
polêmica em relação à ditadura argentina, mas por ponderar que a crítica ao
capitalismo e aos modos de acumulação fazem parte da tradição da Igreja. O
filósofo faz questão, de toda forma, de ressaltar, que "a esquerda deve
tratar com respeito as convicções religiosas e considerar os militantes
cristãos de esquerda como parte essencial do movimento de emancipação dos oprimidos.
A teologia da libertação nos ensina também a importância da ética no processo
de conscientização e a prioridade do trabalho de base”.
Na entrevista, Löwy também
comenta o encontro do Papa em Havana com o patriarca Kiril, líder da Igreja
Ortodoxa russa, e avalia a possibilidade de união entre as três grandes
religiões monoteístas frente ao capitalismo, entre outras observações que podem
ser lidas na íntegra a seguir. Eis a entrevista.
Quem é Papa Francisco? O que
pretende?
Gostaria, antes de responder sua
pergunta, de homenagear a memória do fundador do Correio da Cidadania, meu
querido amigo e companheiro de lutas Plínio de Arruda Sampaio, um cristão
socialista comprometido com a luta do povo brasileiro por sua emancipação, um
adversário intransigente da ditadura militar, do latifúndio, do imperialismo e
do perverso sistema capitalista. Sua vida foi um exemplo de coerência ética e
política, de dignidade e de coragem.
Jorge Mario Bergoglio, o Papa
Francisco, não era considerado um homem de esquerda. Seu comportamento durante
a ditadura militar argentina é um exemplo de "pecado por omissão":
não apoiou e tampouco se opôs ao regime. Não é, portanto, surpreendente que
tenha sido eleito Pontifex Maximum pelo mesmo conclave que havia eleito
Ratzinger - Bento XVI - pouco tempo antes.
Entretanto, apenas eleito,
surpreendeu por uma sucessão de iniciativas corajosas, a começar pela visita à
Lampedusa, para denunciar o tratamento dado pela Europa aos refugiados
(muçulmanos em sua maioria). Em relação à teologia da libertação, sua atitude é
radicalmente distinta da dos dois pontífices anteriores: Gustavo Gutierrez foi
convidado ao Vaticano e o processo de canonização de Monsenhor Romero, aberto.
Se lemos atentamente as Encíclicas de Bergoglio, percebe-se a influência de uma
corrente importante do catolicismo da Argentina: a teologia da libertação
não-marxista, representada por pensadores como Juan Carlos Scannone.
Obviamente, ele pretende levar a
sério o compromisso da Igreja com os pobres, suprimir os vínculos dos bancos do
Vaticano com a máfia e tentar reduzir o poder conservador da Cúria Romana. Será
que conseguirá? Sua tentativa de elaborar uma concepção um pouco mais aberta da
família e da sexualidade foi diluída pelo Sínodo dos Cardeais... Há muitas resistências.
Parece que os setores mais reacionários da Igreja têm uma prece especial sobre
Bergoglio: "Nosso Pai que está no Céu, ilumine-o ou... Elimine-o".
A encíclica Laudato Si ataca
frontalmente o sistema capitalista. O que isto significa vindo de um Papa?
Bergoglio não é marxista e a
palavra “capitalismo” não aparece na Encíclica. Mas fica muito claro que para
ele os dramáticos problemas ecológicos de nossa época resultam das “engrenagens
da atual economia globalizada”, engrenagens que constituem um sistema global,
“um sistema de relações comerciais e de propriedade estruturalmente perverso”.
Quais são, para Francisco, estas
características “estruturalmente perversas”?
Antes de tudo, é um sistema no
qual predominam “os interesses ilimitados das empresas” e “uma discutível
racionalidade econômica”, uma racionalidade instrumental que tem por único
objetivo aumentar o lucro. Para o Papa, esta perversidade não é própria de um
país ou outro, mas de "um sistema mundial, onde predominam a especulação e
o princípio de maximização do lucro, e uma busca de rentabilidade financeira
que tende a ignorar todo o contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e o meio
ambiente. Assim, se manifesta a íntima relação entre degradação ambiental e
degradação humana e ética".
A obsessão do crescimento
ilimitado, o consumismo, a tecnocracia, o domínio absoluto da finança e a
divinização do mercado são outras características perversas do sistema. Em sua
lógica destrutiva, tudo se reduz ao mercado e ao “cálculo financeiro de custos
e benefícios”. Mas sabemos que “o meio ambiente é um desses bens que os
mecanismos de mercado não são capazes de defender ou de promover adequadamente”.
O mercado é incapaz de levar em conta valores qualitativos, éticos, sociais,
humanos ou naturais, isto é, “valores que excedem cálculos”.
O poder “absoluto” do capital
financeiro especulativo é um aspecto essencial do sistema, como revelou a
recente crise bancária. O comentário da Encíclica é contundente: “a salvação
dos bancos a todo custo, fazendo a população pagar o preço, confirma o domínio
absoluto das finanças que não têm futuro e só pode gerar novas crises, depois
de uma longa, custosa e aparente cura".
Sempre associando a questão
ecológica e a questão social, Francisco constata: "a mesma lógica que
dificulta tomar medidas drásticas para inverter a tendência ao aquecimento
global é a que não permite cumprir com o objetivo de erradicar a pobreza".
Existe uma longa tradição de crítica do capitalismo liberal, ou dos
"excessos " do capital na Igreja Católica. Mas nenhum Papa foi tão
longe nesta condenação como Francisco.
Em 12 de fevereiro, Papa
Francisco e o e o Patriarca Kirill, encontraram-se em nome de suas igrejas
quase 1.000 anos após o cisma, em Cuba, e assinaram um documento que contém
este texto: “O nosso encontro fraterno teve lugar em Cuba, encruzilhada entre
Norte e Sul, entre Leste e Oeste. A partir desta ilha, símbolo das esperanças
do “Novo Mundo” e dos acontecimentos dramáticos da história do século XX,
dirigimos a nossa palavra a todos os povos da América Latina e dos outros
continentes”. Um “Novo Mundo” na visão dos dois líderes religiosos é um mundo
socialista?
Francamente, não atribuo tanta
importância a este encontro, que tem mais a ver com a diplomacia das relações
inter-religosas do que com a revolução cubana... O "Novo Mundo" de
que falam não é o "mundo socialista", mas simplesmente o continente
americano, designado há séculos como "Novo Mundo". O conceito de
"socialismo" não faz parte do vocabulário de nenhum do dois líderes
religiosos.
O que a Teologia da Libertação
tem a ensinar para a esquerda mundial, considerando suas diferentes correntes
de pensamento?
Em primeiro lugar, ela nos ensina
que a religião pode ser outra coisa, diferente de simples "ópio do
povo". Aliás, Marx e Engels já haviam previsto a possibilidade de
movimentos religiosos com uma dinâmica anticapitalista. A esquerda deve tratar
com respeito as convicções religiosas e considerar os militantes cristãos de
esquerda como parte essencial do movimento de emancipação dos oprimidos. A
teologia da libertação nos ensina também a importância da ética no processo de
conscientização e a prioridade do trabalho de base, junto às classes populares,
em seus bairros, igrejas, comunidades rurais e escolas.
Uma unidade política de caráter
anticapitalista e anti-imperialista entre as grandes religiões monoteístas
(Cristã, Judaica e Islã) é possível no ponto de vista de alguns teólogos e
mais, fundamental para superar o capitalismo em escala global. O que pensa
sobre isso? É possível superar o capitalismo sem esta unidade?
Não acredito em unidade
anticapitalista das "grandes religiões monoteístas"... O que pode
existir é uma convergência ecumênica entre correntes progressistas,
anticapitalistas, anti-imperialistas, ecologicamente conscientes, em todas as
religiões, não só as três que menciona. Por exemplo, o budismo, o hinduísmo,
religiões africanas, umbanda, candomblé, religiões indígenas das Américas etc.
Já existem redes progressistas, como a Associação de Teólogos do Terceiro
Mundo, que é ecumênica. Não sei se superar o capitalismo sem esta convergência
é possível ou não, mas ela é uma contribuição importante para a conscientização
de amplas camadas populares.
A igreja católica no Brasil está
alinhada ao Papa Francisco?
Boa parte dos bispos da CNBB está
alinhada com Francisco. Alguns até gostariam que ele fosse mais longe. Outros,
pelo contrário, acham que ele está colocando em perigo a doutrina da fé e
tentam colocar obstáculos para suas propostas. Mas a Igreja brasileira, apesar
de seus limites, em particular no que concerne ao direito das mulheres sobre
seu corpo - divórcio, contracepção, aborto - é uma das mais progressistas do
mundo católico.
Objetivamente, Papa Francisco tem
condições de criar uma unidade internacional de caráter progressista para
enfrentamento ao capitalismo?
Não! Nem objetivamente, nem
subjetivamente. O Papa não se coloca tarefas deste tipo! Para enfrentar o
capitalismo necessitamos da unidade internacional dos trabalhadores, da
juventude, das mulheres, dos indígenas, dos explorados e oprimidos, que são a
esmagadora maioria da humanidade. O Papa poderá, eventualmente, contribuir para
uma tomada de consciência social e ecológica de um amplo setor dos fieis
católicos. Já é muito!
A “Opção Preferencial pelo
Pobre”, conjunto de ideias e ações práticas contrárias à lógica da acumulação e
retenção de capital do atual sistema político e econômico, se colocadas
plenamente em prática resultará em confrontos violentos. Como se posicionará o
Papa neste cenário, em sua avaliação?
A Igreja, tradicionalmente, busca
"evitar" os confrontos violentos. Mas na Conferência de Medellín dos
bispos latino-americanos, em 1968, foi adotada uma resolução importante que
reconhece o direito de insurreição do povo contra tiranias e estruturas
opressivas. Como sabemos, alguns membros do clero levaram sua opção libertária
e seu compromisso com a luta dos pobres até as últimas consequências,
participando de movimentos armados de emancipação.
Foi o caso de Camilo Torres na
Colômbia, que resolveu aderir ao Exército de Libertação Nacional e foi morto em
combate em 1966. Poucos anos depois, um grupo de jovens dominicanos deu seu
apoio à ALN, dirigida por Carlos Marighella, no combate contra a ditadura
militar. E nos anos 1970, os irmãos Cardenal e vários outros religiosos
participaram da Frente Nacional de Libertação da Nicarágua. É difícil prever,
no momento atual, que tipo de "confrontos violentos" se darão contra
o sistema capitalista, e menos ainda qual será a posição do Papa Francisco
frente a uma situação deste tipo.
Mudando de assunto, mas para não
deixar escapar a oportunidade, como você enxerga o atual momento político
brasileiro? Que desfecho gostaria que a crise política, econômica, social e
ética tivesse?
Vejo a conjuntura brasileira
atual com muita preocupação. Tenho muitas críticas ao governo de Dilma
Rousseff, fez demasiadas concessões ao capital financeiro, aos bancos, aos
latifundiários e tomou várias medidas opostas aos interesses das classes
populares. Por outro lado, não posso deixar de manifestar um repúdio categórico
à aprovação do processo de impeachment que afastou a presidente, um verdadeiro
golpe de Estado pseudo-legal.
É uma verdadeira farsa
tragicômica o que acaba de se passar no Congresso: uma quadrilha de gângsteres
políticos, comprometida com os escândalos de corrupção, derruba a presidenta
democraticamente eleita - um dos poucos políticos não acusados de corrupção, -
por supostas "irregularidades administrativas". Tudo isso em nome de
"Deus", da "Pátria", da "Família", se escondendo
atrás da bandeira nacional. Sem falar nos adeptos da ditadura militar e dos
métodos de tortura do coronel Ustra. Uma vergonha!
É triste ver como o Partido dos
Trabalhadores, que em sua origem tinha uma grande coerência ética e política,
acabou sendo envolvido no escândalo da Petrobras. Mas ele está longe de ser o
único! É absurdo pretender, como o faz a média conservadora, que o PT tem o
monopólio da corrupção: os principais dirigentes da oposição, a começar pelo
famigerado Eduardo Cunha - e dezenas de outros, do PSDB, do PMDB, do PP etc. -
estão comprometidos com o "assunto".
Minha esperança é que a Frente
Brasil Popular, que inclui partidos de esquerda e movimentos sociais, consiga
seus objetivos: ao mesmo tempo impedir o golpe e obrigar o governo de Dilma a
romper com as políticas neoliberais. Só uma ampla mobilização do povo
brasileiro, dos trabalhadores, da juventude, das mulheres, dos negros, de todos
os explorados e oprimidos, poderá por um fim à tentativa da oligarquia
reacionária de tomar o poder e acabar com a democracia no Brasil.
Minhas simpatias vão ao Partido
do Socialismo e da Liberdade (PSOL), um dos poucos a não estar comprometido com
Lava Jatos e outras ignomínias; ele é, a meu ver, o digno herdeiro do que de
melhor havia no PT das origens, quando ainda se propunha a acabar com o grande
inimigo dos trabalhadores e da democracia: o sistema capitalista.
Fonte: Ihu
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