quarta-feira, 6 de julho de 2016

A cultura do estupro da sua origem até a atualidade

Diariamente, os noticiários divulgam casos de estupro. Dentre os denunciados, apenas uma porcentagem chega ao nosso conhecimento pelas mídias. No Brasil, segundo dados do IPEA, 0,26% da população sofre violência sexual, indicando, anualmente, 527 mil tentativas e casos de estupro consumados no país.


por Verinha Kollontai, do feminismo sem demagogia Original

Em 2013, o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) apontou que em 2012 foram notificados 50.617 casos de estupro no Brasil. Para nosso assombro, constata-se que existe uma porcentagem que não chega a ser denunciada. A taxa de notificação à polícia é estimada em apenas 19,1% (IPEA).

São diversos os motivos para as denúncias não serem realizadas, todos eles relacionados com o fato de que, socialmente, existe a imputação pela culpa do ato à própria vítima, ao mesmo tempo em que há a vitimização do estuprador. A reprodução desta imputação de culpa vitima duplamente a mulher.

Por que isso acontece?

Como bem disse Engels (Friedrich Engels), a violência de gênero é um reflexo direto da maior derrota histórica do sexo feminino, quando, ao serem retiradas da esfera do trabalho produtivo para serem encarceradas dentro de casa, as mulheres passam a servircomo reprodutoras de herdeiros para os homens que detinham os meios de produção.

É importante frisar que nem todas as mulheres serviram a este propósito. As mulheres pobres, em sua grande parcela, por exemplo, passaram a servir à prostituição. O advento da propriedade privada celebra a inauguração do mundo patriarcal e a redução da humanidade histórica das mulheres a meros objetos, parte delas servindo a produção de herdeiros e outra parte à satisfação da luxúria dos homens.

A construção da Cultura do Estupro

Quando lemos este tipo de explicação, parece que tudo aconteceu de forma pacífica, mas não foi bem assim. Sabemos que houve resistência por parte das mulheres. Imagine o cenário: antes livres, as mulheres possuíam liberdade para exercer sua sexualidade, trabalhavam na esfera produtiva ombro a ombro com os homens e detinham o mesmo respeito pela comunidade e, de repente, passam a ser trancafiadas dentro do lar reduzidas a objeto de procriação? Foi com muita violência que os homens submeteram as mulheres a este cárcere privado em um primeiro momento para mais tarde utilizarem-se da tática da ideologia.

As ideologias são conjuntos de falsas ideias usadas para justificar a inferioridade de um grupo de pessoas por ser quem são. Um bom exemplo é a ideologia de gênero, que fixa rígidos papéis para o homem e a mulher, colocando o gênero feminino em uma posição subalterna e dependente do homem, tanto financeiramente quanto emocionalmente. Desta forma, criadas para acreditar em sua inferioridade frente aos homens, as mulheres passaram a se submeter às tentativas de se encaixar em um estereótipo e reproduzindo a rivalidade entre si, onde o homem é visto como troféu.

Neste período, temos relatos de mulheres que eram vendidas por seus pais a homens que as colocariam em uma posição de serventia ou de matrimônio forçado. Em ambos os casos, elas são entregues para ser estuprada. Não há romantismo na criação da instituição família, esta é a verdade.

Após o advento da propriedade privada dos meios de produção, a violência sexual contra a mulher ganha ares de romance e passa a ser naturalizada em todos os tempos. Passamos por várias culturas e tempos históricos, e a mulher é sempre contemplada como um objeto, que existe para servir aos homens. Vivendo em posição desumana, nenhuma afronta à humanidade da mulher foi prontamente repudiada, nem mesmo crimes, que sempre foram minimizados. Os exemplos de banalização da violência sexual contra a mulher são antigos e não é difícil encontrar a romantização destes exemplos pela literatura:

Na Grécia, temos a mais alta divindade do panteão Grego, que se divertia sexualmente raptando e estuprando mulheres, como foi o caso de Europa, que o estupro lhe rendeu uma gravidez.

O mito conta que Zeus, metamorfoseou–se em um touro branco, e quando Europa colhia Flores o avistou e encantou–se, foi acariciá-lo e num momento de distração, Zeus a raptou e a levou para a ilha de Creta, onde sem revelar sua identidade,estuprou-a e a engravidou. Europa foi mãe de Minos, que tornaria–se rei de Creta. Quanto a este caso não houve protesto, ninguém se indignou.


Por outro lado temos exemplo do estupro de homens também, e a postura que se assume é completamente diferente. Na mitologia grega encontramos o caso de Laio, que estuprou Chrysippus, este ataque sexual ficou conhecido como “O crime de Laio”, foi caracterizado como um exemplo de arrogância no sentido original da palavra, ou seja, violenta indignação. Neste caso, não houve romancear da situação, houve punição! Sua punição foi tão grave que destruiu não só o próprio Laio, mas também seu filho, Édipo, sua esposa Jocasta, seus netos (incluindo Antígona) e membros de sua família.

Constatamos por aí que a naturalização do estupro além de perniciosa, é sexista: Para estupros cometidos contra as mulheres, silêncio. Para estupros cometidos contra homens, indignação, criminalização e punição.

Outro caso envolvendo Zeus, onde ele se acumplicia do estupro da própria filha que teve com Deméter, a jovem Perséphone, foi eternizado em mármore, numa escultura que mostra todo desespero da mulher que raptada por Hades, foi levada ao inferno onde foi violada.


Os Tempos Bíblicos, relatados no velho testamento, também são um grande exemplo: a mulher era caracterizada como propriedade masculina, previsto por lei. (Êxodos 20:17, a mulher aparece listada entre os bens materiais do homens). Em Israel, assim como em todo Oriente Médio, o ato do estupro não era entendido como um abuso, mas sim como um adultério. Visto que a mulher era vista como propriedade do homem, a vítima do crime era o homem, que detinha a propriedade que fora “danificada”.

E assim segue Roma, que acreditava que existiam assuntos que o Estado não deveria interferir. Se continuarmos a pesquisa, podemos analisar que, em todo cenário, há um silêncio cúmplice da violência sexual cometida contra a mulher.

No Brasil Colônia

No Brasil a história do estupro vem desde seu descobrimento, quando os portugueses chegam ao Brasil, encontram as mulheres indígenas e as estupram. A miscigenação do povo brasileiro começa aí.

Mais adiante com a chegada de negros e negras para fins de servirem em sistema de escravidão aos senhores da casa grande, as mulheres negras, que não estavam nesta polarização esposa x prostituta, eram violentadas sexualmente, pelos senhores. Se engravidassem, o filho seria mais um escravo da fazenda como todos os outros ou seria vendido. Para o escravizador, mulheres negras eram bens móveis sub-humanos, apenas propriedades.


Dentre os homens negros, um era escolhido para ser usado como “reprodutor”, sempre um escravizado forte e de boa saúde. O tratamento dispensado a ele era diferenciado da escravaria, a função dele não era a lida pesada, mas sim estuprar as mulheres negras para engravidá-las, assim tornando-se uma fábrica de bebês que serviriam como novos escravos ou seriam vendidos e de alguma forma atenderiam as demandas que gerariam riquezas a seus donos.

A maioria dos nossos antepassados foram geradospor estupros. Mulheres negras e índias, que sem opção da escolha de parceiros afetivos, eram obrigadas a gestar numerosas proles resultantes destes estupros, estão no centro da história da miscigenação do povo brasileiro. E tudo isso, era visto com grande naturalidade.

 A reação à cultura do Estupro

A tentativa de superação da herança patriarcal é relativamente recente na história. Apenas no século 19 a palavra “estuprador” foi mencionada oficialmente, e sua menção era carregada de cunho racista. O termo, registrado no dicionário Oxford, onde foi feita sua primeira referência, era originalmente “RAPENIGGER”, ou “estuprador negro”. Homens brancos raramente eram punidos por crimes de estupro e se fossem condenados, suas penas eram irrisórias. Para os homens negros, o castigo era diferente: eles eram facilmente julgados e condenados.

O movimento feminista ocidental desponta no final dos séculos XIX e XX e faz parte da reação contra a cultura do estupro. Entretanto, no Brasil, apenas há uma década iniciou-se o debate a respeito do assunto. No código Civil de 1916, onde o homem era chefe de família e a mulher era considerada relativamente incapaz, admitia-se a tese de legítima defesa da honra para inocentar feminicidas. Em 1979, começou a discussão da possibilidade do marido ser responsabilizado pelo estupro da esposa, já que a ideologia até então, passada de geração em geração, fixada pelo patriarcado, é a de propriedade, servidão sexual e submissão.


Como vitória do movimento feminista de 1970 e 1980, em 1988, a Constituição Federal foi modificada, dando à mulher igualdade das funções em âmbito familiar. Com relação ao estupro, é vergonhoso que apenas em 2009 as leis tenham sido alteradas para tornar-se um crime contra a mulher. Anteriormente, era descrita como um ataque ao homem, pai ou marido, que tivesse sua integridade moral afrontada e manchada pelo crime sexual sofrido pela mulher. Com a Lei n° 12.015, de 7 de agosto de 2009, o estupro passou a ser um crime contra a dignidade e liberdade sexual da vítima.

A Cultura do Estupro na prática

A reação à cultura do estupro ainda é pequena. Com o advento das redes sociais, ficou mais fácil para os grupos oprimidos se organizarem em torno de pautas cruciais. Desta forma, temos ouvido falar com mais frequência do termo “cultura do Estupro”. Mas o que seria isto afinal?



A cultura do estupro é banalização do estupro, a ponto de ser naturalizado pela sociedade e não trazer espanto e nem indignação. Esta cultura se fortalece pela mistura de ideologias de ódio, que se interseccionam. É muito fácil perceber a misoginia sendo gritada em discursos que culpabilizam as vitimas.

Idéias propagadas

A cultura do estupro se estabelece a partir da aceitação do estupro como uma punição social. O castigo se dá por um suposto rompimento com os papéis de gênero rigidamente fixado. E as ideias que o lugar da mulher é longe de espaços públicos são ainda frequentes.


Lugar de mulher é dentro de casa, protegida pelas paredes do lar, pelo seu marido, cuidando dos filhos e servindo a família. Fora disso, qualquer mulher que seja estuprada estaria provocando a situação. Esta ideia é completamente falsa já que, no geral, 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima. Ou seja, a maioria dos agressores está dentro de casa.

A mulher deve se precaver para não ser estuprada, tratando o homem como um ser irracional, incapaz de conter seus extintos, como se eles fossem imutáveis. Sabemos que o ato de estuprar é algo que foi concebido e fortalecido socialmente baseado no poder do homem sobre a mulher, logo não é biológico e nem imutável.

Não é Novinha! Ela é Criança ou adolescente! Uma das ideias que o movimento feminista tenta combater ultimamente é o termo oriundo da cultura do estupro: “novinha”. O que você chama de novinha, nós chamamos de criança.

Este discurso ficou evidente com o caso de Valentina, participante de 12 anos do programa de TV Master Chef, que foi alvo de ameaças de estupro nas redes sociais. O caso mais recente é o da adolescente de 17 anos, estuprada por 30 homens e exposta nas redes sociais, em vídeos gravados pelos criminosos. Os comentários de culpabilização das adolescentes pela postura e ato criminoso praticado contra elas estão facilmente acessíveis em conversas pessoais, públicas ou nas redes.



A idade de consentimento no Brasil é de 14 anos, mas mesmo assim, o atendimento de gestantes com idade inferior e pares adultos nos hospitais públicos é rotineiro.

O conceito carregado no termo “novinha” provoca a ideia de que a jovem sabe o que está fazendo, carregando-a de responsabilidade e exigindo maturidade precoce; tudo isso nos resulta dados alarmantes. Segundo o IPEA, em 2011 88,5% das vítimas de estupro eram mulheres, mais da metade com idade abaixo dos 13 anos, 51% eram negras. Em resumo, 70% dos estupros vitimizaram crianças e adolescentes.

A ofensiva do movimento Feminista.

Embora a ofensiva do movimento feminista contra a cultura do estupro e pela punição rigorosa, exigindo respostas do legislativo e do Estado para violência sexual contra a mulher, o que temos é uma regressão em relação ao quadro.

Em 2012, nos marcos de uma derrota e retrocesso, a então presidenta Dilma Roussef, que havia sancionado a Portaria 415 do Ministério da Saúde, voltou atrás quando acusada de abrir brecha para qualquer tipo de aborto. O projeto visava autorizar o aborto para casos de estupro e anencéfalos,em todos os hospitais da rede pública. Em casos de estupro, a mulher não precisaria fazer B.O, o que seria pular uma etapa relatada como degradante pelas vítimas, já que o atendimento é feito de maneira desumanizada e com questionários humilhantes.

Em 2012 também obtivemos uma importante vitória contra a MP 557, que previa um cadastro de grávidas, facilitando a identificação das que fizessem aborto. Felizmente, a luta das mulheres obrigou o governo a não renovar a MP.

Sabemos que a violência sexual contra a mulher tem diversas consequências psicológicas e físicas, entre elas, a gravidez indesejada. Mesmo com esta ciência, em 2013, foi aprovado na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados, o Estatuto do nascituro, que elaborava medidas para tratar o aborto como crime, sem analisar se houve agressão sexual que impôs para as mulheres a necessidade de decisão sobre a interrupção da gravidez. Esse estatuto foi denunciado e combatido nas ruas pelo movimento feminista e barrado.

Mas os ataques não cessam e em 2015, foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 5069 que dificultaria o atendimento nas unidades de saúde às mulheres vítimas de violência sexual. O movimento feminista organizado pelas redes sociais e militância atuante foram para as ruas em diversos estados para barrar o PL e pelo Fora Cunha! O PL foi barrado.

Em 2016, diante de umas das maiores discussões levantadas sobre cultura do estupro, ocasionada pelo estupro coletivo de uma jovem de 17 anos por 30 homens, o presidente em exercício Michel Temer, acusado de não apoiar a representatividade de mulheres na composição do seu governo, nomeia Fátima Pelares para secretária de mulheres, uma mulher evangélica, conservadora e contra o aborto até em casos de estupro.

Para acabar com os Estupros é necessária uma Luta contra o machismo de Gênero, Raça e Classe.



Existe um grande descaso dos nossos governantes para com a situação das mulheres no Brasil. Segundo estudo do Instituto Latino-Americano de Estudos Socioeconômicos (ILAESE), em dez anos de mandato do PT, foi investido uma média de R$ 0,26 por mulher por ano. Mesmo com uma mulher na presidência, não obtivemos apoio para nossas pautas.

Dilma lamentou o estupro da Jovem por 33 homens em seu Facebook, mas ela se esqueceu de mencionar que, se esta jovem engravidar, não poderá ser atendida em qualquer hospital do SUS para que seja feito o aborto legal. Ela também se esqueceu de dizer que foi em seu governo que foram destinados apenas 0,26 centavos por mulher para ações preventivas e de proteção ao grupo. Outro esquecimento é o do kit anti–homofobia, que teria introduzido nas escolas o debate a respeito da diversidade, do machismo e o debate de gênero. Tudo isso seria feito se a presidenta não tivesse vetado.

Existe uma classe conservadora, que mantém os mesmos conceitos morais. Não porque são retrógrados, mas porque se privilegiam das opressões. Os ricos, pessoas que detêm os meios de produção, exploram os grupos oprimidos para obter lucro através do seu sistema econômico, o capitalismo. É a esta classe que Dilma aliou-se para governar, se comprometendo na carta ao Povo de Deus, a não pautar o aborto em seu mandato. Dilma também retirou o status de Ministério da Secretaria de Mulheres, que passou a integrar o ministério dos direitos humanos.

Agora, Temer no poder não age de forma muito diferente, já que, contrário ao governo de Dilma, que iludia as minorias esperançosas em sua gestão, governa diretamente para a classe conservadora, sem ilusões. Ele mal chegou e já enterrou o ministério dos direitos humanos e junto com ele a secretaria de mulheres. Devido à intensa mobilização das militantes nas ruas, o presidente interino voltou atrás e recriou a Secretaria de Mulheres colocando a sua frente, uma mulher conservadora e pró – vida, contra o aborto até em casos de estupro.

Temer acaba de assumir e o congresso aprova a PL 5069 na comissão de Constituição e Justiça, o que dificulta o atendimento das vítimas de estupro. Não basta ser mulher para nos representar, é necessário que seja uma mulher da classe trabalhadora, socialista, que trave uma luta certeira contras os pilares do machismo que dissemina as violência de gênero.

Organizar a Luta contra o Machismo e a Cultura do Estupro

Organizadas, as mulheres devem tomar as ruas pelos seus direitos, derrubar Temer, mas não para que Dilma volte com suas migalhas e falsas promessas. Precisamos de um governo da classe trabalhadora, que atenda nossas pautas e apoie nossas lutas.

É preciso exigir educação de gênero nas escolas, desde os primeiros anos escolares para a desconstrução da ideologia machista nas crianças.

É preciso exigir do poder público, campanhas educativas que visem atingir todas as faixas etárias, que combatam a violência contra as mulheres e junto com ela a cultura do estupro.

É preciso posicionamento firme contra setores conservadores, que tentam interferir e boicotar as políticas públicas, que se orientam para atender os diretos das mulheres.

É preciso punição dura para os estupradores e reeducação para que voltem a sociedade sem oferecer riscos as mulheres.



Fonte: Geledes

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