Diariamente, os noticiários
divulgam casos de estupro. Dentre os denunciados, apenas uma porcentagem chega
ao nosso conhecimento pelas mídias. No Brasil, segundo dados do IPEA, 0,26% da
população sofre violência sexual, indicando, anualmente, 527 mil tentativas e
casos de estupro consumados no país.
por Verinha Kollontai, do
feminismo sem demagogia Original
Em 2013, o Anuário do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) apontou que em 2012 foram notificados
50.617 casos de estupro no Brasil. Para nosso assombro, constata-se que existe
uma porcentagem que não chega a ser denunciada. A taxa de notificação à polícia
é estimada em apenas 19,1% (IPEA).
São diversos os motivos para as
denúncias não serem realizadas, todos eles relacionados com o fato de que,
socialmente, existe a imputação pela culpa do ato à própria vítima, ao mesmo
tempo em que há a vitimização do estuprador. A reprodução desta imputação de
culpa vitima duplamente a mulher.
Por que isso acontece?
Como bem disse Engels (Friedrich
Engels), a violência de gênero é um reflexo direto da maior derrota histórica
do sexo feminino, quando, ao serem retiradas da esfera do trabalho produtivo
para serem encarceradas dentro de casa, as mulheres passam a servircomo
reprodutoras de herdeiros para os homens que detinham os meios de produção.
É importante frisar que nem todas
as mulheres serviram a este propósito. As mulheres pobres, em sua grande
parcela, por exemplo, passaram a servir à prostituição. O advento da
propriedade privada celebra a inauguração do mundo patriarcal e a redução da
humanidade histórica das mulheres a meros objetos, parte delas servindo a
produção de herdeiros e outra parte à satisfação da luxúria dos homens.
A construção da Cultura do Estupro
Quando lemos este tipo de
explicação, parece que tudo aconteceu de forma pacífica, mas não foi bem assim.
Sabemos que houve resistência por parte das mulheres. Imagine o cenário: antes
livres, as mulheres possuíam liberdade para exercer sua sexualidade,
trabalhavam na esfera produtiva ombro a ombro com os homens e detinham o mesmo
respeito pela comunidade e, de repente, passam a ser trancafiadas dentro do lar
reduzidas a objeto de procriação? Foi com muita violência que os homens
submeteram as mulheres a este cárcere privado em um primeiro momento para mais
tarde utilizarem-se da tática da ideologia.
As ideologias são conjuntos de
falsas ideias usadas para justificar a inferioridade de um grupo de pessoas por
ser quem são. Um bom exemplo é a ideologia de gênero, que fixa rígidos papéis
para o homem e a mulher, colocando o gênero feminino em uma posição subalterna
e dependente do homem, tanto financeiramente quanto emocionalmente. Desta
forma, criadas para acreditar em sua inferioridade frente aos homens, as
mulheres passaram a se submeter às tentativas de se encaixar em um estereótipo
e reproduzindo a rivalidade entre si, onde o homem é visto como troféu.
Neste período, temos relatos de
mulheres que eram vendidas por seus pais a homens que as colocariam em uma
posição de serventia ou de matrimônio forçado. Em ambos os casos, elas são
entregues para ser estuprada. Não há romantismo na criação da instituição família,
esta é a verdade.
Após o advento da propriedade
privada dos meios de produção, a violência sexual contra a mulher ganha ares de
romance e passa a ser naturalizada em todos os tempos. Passamos por várias
culturas e tempos históricos, e a mulher é sempre contemplada como um objeto,
que existe para servir aos homens. Vivendo em posição desumana, nenhuma afronta
à humanidade da mulher foi prontamente repudiada, nem mesmo crimes, que sempre
foram minimizados. Os exemplos de banalização da violência sexual contra a
mulher são antigos e não é difícil encontrar a romantização destes exemplos
pela literatura:
Na Grécia, temos a mais alta
divindade do panteão Grego, que se divertia sexualmente raptando e estuprando
mulheres, como foi o caso de Europa, que o estupro lhe rendeu uma gravidez.
O mito conta que Zeus,
metamorfoseou–se em um touro branco, e quando Europa colhia Flores o avistou e
encantou–se, foi acariciá-lo e num momento de distração, Zeus a raptou e a
levou para a ilha de Creta, onde sem revelar sua identidade,estuprou-a e a
engravidou. Europa foi mãe de Minos, que tornaria–se rei de Creta. Quanto a
este caso não houve protesto, ninguém se indignou.
Por outro lado temos exemplo do
estupro de homens também, e a postura que se assume é completamente diferente.
Na mitologia grega encontramos o caso de Laio, que estuprou Chrysippus, este
ataque sexual ficou conhecido como “O crime de Laio”, foi caracterizado como um
exemplo de arrogância no sentido original da palavra, ou seja, violenta indignação.
Neste caso, não houve romancear da situação, houve punição! Sua punição foi tão
grave que destruiu não só o próprio Laio, mas também seu filho, Édipo, sua
esposa Jocasta, seus netos (incluindo Antígona) e membros de sua família.
Constatamos por aí que a
naturalização do estupro além de perniciosa, é sexista: Para estupros cometidos
contra as mulheres, silêncio. Para estupros cometidos contra homens,
indignação, criminalização e punição.
Outro caso envolvendo Zeus, onde
ele se acumplicia do estupro da própria filha que teve com Deméter, a jovem
Perséphone, foi eternizado em mármore, numa escultura que mostra todo desespero
da mulher que raptada por Hades, foi levada ao inferno onde foi violada.
Os Tempos Bíblicos, relatados no
velho testamento, também são um grande exemplo: a mulher era caracterizada como
propriedade masculina, previsto por lei. (Êxodos 20:17, a mulher aparece
listada entre os bens materiais do homens). Em Israel, assim como em todo
Oriente Médio, o ato do estupro não era entendido como um abuso, mas sim como
um adultério. Visto que a mulher era vista como propriedade do homem, a vítima
do crime era o homem, que detinha a propriedade que fora “danificada”.
E assim segue Roma, que
acreditava que existiam assuntos que o Estado não deveria interferir. Se
continuarmos a pesquisa, podemos analisar que, em todo cenário, há um silêncio
cúmplice da violência sexual cometida contra a mulher.
No Brasil Colônia
No Brasil a história do estupro
vem desde seu descobrimento, quando os portugueses chegam ao Brasil, encontram
as mulheres indígenas e as estupram. A miscigenação do povo brasileiro começa
aí.
Mais adiante com a chegada de
negros e negras para fins de servirem em sistema de escravidão aos senhores da
casa grande, as mulheres negras, que não estavam nesta polarização esposa x
prostituta, eram violentadas sexualmente, pelos senhores. Se engravidassem, o
filho seria mais um escravo da fazenda como todos os outros ou seria vendido.
Para o escravizador, mulheres negras eram bens móveis sub-humanos, apenas
propriedades.
Dentre os homens negros, um era
escolhido para ser usado como “reprodutor”, sempre um escravizado forte e de
boa saúde. O tratamento dispensado a ele era diferenciado da escravaria, a
função dele não era a lida pesada, mas sim estuprar as mulheres negras para
engravidá-las, assim tornando-se uma fábrica de bebês que serviriam como novos
escravos ou seriam vendidos e de alguma forma atenderiam as demandas que
gerariam riquezas a seus donos.
A maioria dos nossos antepassados
foram geradospor estupros. Mulheres negras e índias, que sem opção da escolha
de parceiros afetivos, eram obrigadas a gestar numerosas proles resultantes
destes estupros, estão no centro da história da miscigenação do povo
brasileiro. E tudo isso, era visto com grande naturalidade.
A reação à cultura do Estupro
A tentativa de superação da
herança patriarcal é relativamente recente na história. Apenas no século 19 a
palavra “estuprador” foi mencionada oficialmente, e sua menção era carregada de
cunho racista. O termo, registrado no dicionário Oxford, onde foi feita sua
primeira referência, era originalmente “RAPENIGGER”, ou “estuprador negro”.
Homens brancos raramente eram punidos por crimes de estupro e se fossem
condenados, suas penas eram irrisórias. Para os homens negros, o castigo era
diferente: eles eram facilmente julgados e condenados.
O movimento feminista ocidental
desponta no final dos séculos XIX e XX e faz parte da reação contra a cultura
do estupro. Entretanto, no Brasil, apenas há uma década iniciou-se o debate a
respeito do assunto. No código Civil de 1916, onde o homem era chefe de família
e a mulher era considerada relativamente incapaz, admitia-se a tese de legítima
defesa da honra para inocentar feminicidas. Em 1979, começou a discussão da
possibilidade do marido ser responsabilizado pelo estupro da esposa, já que a
ideologia até então, passada de geração em geração, fixada pelo patriarcado, é
a de propriedade, servidão sexual e submissão.
Como vitória do movimento
feminista de 1970 e 1980, em 1988, a Constituição Federal foi modificada, dando
à mulher igualdade das funções em âmbito familiar. Com relação ao estupro, é
vergonhoso que apenas em 2009 as leis tenham sido alteradas para tornar-se um
crime contra a mulher. Anteriormente, era descrita como um ataque ao homem, pai
ou marido, que tivesse sua integridade moral afrontada e manchada pelo crime
sexual sofrido pela mulher. Com a Lei n° 12.015, de 7 de agosto de 2009, o
estupro passou a ser um crime contra a dignidade e liberdade sexual da vítima.
A Cultura do Estupro na prática
A reação à cultura do estupro
ainda é pequena. Com o advento das redes sociais, ficou mais fácil para os
grupos oprimidos se organizarem em torno de pautas cruciais. Desta forma, temos
ouvido falar com mais frequência do termo “cultura do Estupro”. Mas o que seria
isto afinal?
A cultura do estupro é
banalização do estupro, a ponto de ser naturalizado pela sociedade e não trazer
espanto e nem indignação. Esta cultura se fortalece pela mistura de ideologias
de ódio, que se interseccionam. É muito fácil perceber a misoginia sendo
gritada em discursos que culpabilizam as vitimas.
Idéias propagadas
A cultura do estupro se
estabelece a partir da aceitação do estupro como uma punição social. O castigo
se dá por um suposto rompimento com os papéis de gênero rigidamente fixado. E
as ideias que o lugar da mulher é longe de espaços públicos são ainda
frequentes.
Lugar de mulher é dentro de casa,
protegida pelas paredes do lar, pelo seu marido, cuidando dos filhos e servindo
a família. Fora disso, qualquer mulher que seja estuprada estaria provocando a
situação. Esta ideia é completamente falsa já que, no geral, 70% dos estupros
são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima. Ou seja,
a maioria dos agressores está dentro de casa.
A mulher deve se precaver para
não ser estuprada, tratando o homem como um ser irracional, incapaz de conter
seus extintos, como se eles fossem imutáveis. Sabemos que o ato de estuprar é
algo que foi concebido e fortalecido socialmente baseado no poder do homem
sobre a mulher, logo não é biológico e nem imutável.
Não é Novinha! Ela é Criança ou
adolescente! Uma das ideias que o movimento feminista tenta combater
ultimamente é o termo oriundo da cultura do estupro: “novinha”. O que você
chama de novinha, nós chamamos de criança.
Este discurso ficou evidente com
o caso de Valentina, participante de 12 anos do programa de TV Master Chef, que
foi alvo de ameaças de estupro nas redes sociais. O caso mais recente é o da
adolescente de 17 anos, estuprada por 30 homens e exposta nas redes sociais, em
vídeos gravados pelos criminosos. Os comentários de culpabilização das adolescentes
pela postura e ato criminoso praticado contra elas estão facilmente acessíveis
em conversas pessoais, públicas ou nas redes.
A idade de consentimento no
Brasil é de 14 anos, mas mesmo assim, o atendimento de gestantes com idade
inferior e pares adultos nos hospitais públicos é rotineiro.
O conceito carregado no termo
“novinha” provoca a ideia de que a jovem sabe o que está fazendo, carregando-a
de responsabilidade e exigindo maturidade precoce; tudo isso nos resulta dados
alarmantes. Segundo o IPEA, em 2011 88,5% das vítimas de estupro eram mulheres,
mais da metade com idade abaixo dos 13 anos, 51% eram negras. Em resumo, 70%
dos estupros vitimizaram crianças e adolescentes.
A ofensiva do movimento Feminista.
Embora a ofensiva do movimento
feminista contra a cultura do estupro e pela punição rigorosa, exigindo
respostas do legislativo e do Estado para violência sexual contra a mulher, o
que temos é uma regressão em relação ao quadro.
Em 2012, nos marcos de uma
derrota e retrocesso, a então presidenta Dilma Roussef, que havia sancionado a
Portaria 415 do Ministério da Saúde, voltou atrás quando acusada de abrir
brecha para qualquer tipo de aborto. O projeto visava autorizar o aborto para
casos de estupro e anencéfalos,em todos os hospitais da rede pública. Em casos
de estupro, a mulher não precisaria fazer B.O, o que seria pular uma etapa
relatada como degradante pelas vítimas, já que o atendimento é feito de maneira
desumanizada e com questionários humilhantes.
Em 2012 também obtivemos uma
importante vitória contra a MP 557, que previa um cadastro de grávidas,
facilitando a identificação das que fizessem aborto. Felizmente, a luta das
mulheres obrigou o governo a não renovar a MP.
Sabemos que a violência sexual
contra a mulher tem diversas consequências psicológicas e físicas, entre elas,
a gravidez indesejada. Mesmo com esta ciência, em 2013, foi aprovado na
Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados, o Estatuto do
nascituro, que elaborava medidas para tratar o aborto como crime, sem analisar
se houve agressão sexual que impôs para as mulheres a necessidade de decisão
sobre a interrupção da gravidez. Esse estatuto foi denunciado e combatido nas
ruas pelo movimento feminista e barrado.
Mas os ataques não cessam e em
2015, foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos
Deputados, o Projeto de Lei 5069 que dificultaria o atendimento nas unidades de
saúde às mulheres vítimas de violência sexual. O movimento feminista organizado
pelas redes sociais e militância atuante foram para as ruas em diversos estados
para barrar o PL e pelo Fora Cunha! O PL foi barrado.
Em 2016, diante de umas das
maiores discussões levantadas sobre cultura do estupro, ocasionada pelo estupro
coletivo de uma jovem de 17 anos por 30 homens, o presidente em exercício
Michel Temer, acusado de não apoiar a representatividade de mulheres na
composição do seu governo, nomeia Fátima Pelares para secretária de mulheres,
uma mulher evangélica, conservadora e contra o aborto até em casos de estupro.
Para acabar com os Estupros é necessária uma Luta contra o machismo de
Gênero, Raça e Classe.
Existe um grande descaso dos
nossos governantes para com a situação das mulheres no Brasil. Segundo estudo
do Instituto Latino-Americano de Estudos Socioeconômicos (ILAESE), em dez anos
de mandato do PT, foi investido uma média de R$ 0,26 por mulher por ano. Mesmo
com uma mulher na presidência, não obtivemos apoio para nossas pautas.
Dilma lamentou o estupro da Jovem
por 33 homens em seu Facebook, mas ela se esqueceu de mencionar que, se esta
jovem engravidar, não poderá ser atendida em qualquer hospital do SUS para que
seja feito o aborto legal. Ela também se esqueceu de dizer que foi em seu
governo que foram destinados apenas 0,26 centavos por mulher para ações
preventivas e de proteção ao grupo. Outro esquecimento é o do kit
anti–homofobia, que teria introduzido nas escolas o debate a respeito da
diversidade, do machismo e o debate de gênero. Tudo isso seria feito se a
presidenta não tivesse vetado.
Existe uma classe conservadora,
que mantém os mesmos conceitos morais. Não porque são retrógrados, mas porque
se privilegiam das opressões. Os ricos, pessoas que detêm os meios de produção,
exploram os grupos oprimidos para obter lucro através do seu sistema econômico,
o capitalismo. É a esta classe que Dilma aliou-se para governar, se
comprometendo na carta ao Povo de Deus, a não pautar o aborto em seu mandato.
Dilma também retirou o status de Ministério da Secretaria de Mulheres, que
passou a integrar o ministério dos direitos humanos.
Agora, Temer no poder não age de
forma muito diferente, já que, contrário ao governo de Dilma, que iludia as
minorias esperançosas em sua gestão, governa diretamente para a classe
conservadora, sem ilusões. Ele mal chegou e já enterrou o ministério dos
direitos humanos e junto com ele a secretaria de mulheres. Devido à intensa mobilização
das militantes nas ruas, o presidente interino voltou atrás e recriou a
Secretaria de Mulheres colocando a sua frente, uma mulher conservadora e pró –
vida, contra o aborto até em casos de estupro.
Temer acaba de assumir e o
congresso aprova a PL 5069 na comissão de Constituição e Justiça, o que
dificulta o atendimento das vítimas de estupro. Não basta ser mulher para nos
representar, é necessário que seja uma mulher da classe trabalhadora,
socialista, que trave uma luta certeira contras os pilares do machismo que
dissemina as violência de gênero.
Organizar a Luta contra o Machismo e a Cultura do Estupro
Organizadas, as mulheres devem
tomar as ruas pelos seus direitos, derrubar Temer, mas não para que Dilma volte
com suas migalhas e falsas promessas. Precisamos de um governo da classe
trabalhadora, que atenda nossas pautas e apoie nossas lutas.
É preciso exigir educação de
gênero nas escolas, desde os primeiros anos escolares para a desconstrução da
ideologia machista nas crianças.
É preciso exigir do poder
público, campanhas educativas que visem atingir todas as faixas etárias, que
combatam a violência contra as mulheres e junto com ela a cultura do estupro.
É preciso posicionamento firme
contra setores conservadores, que tentam interferir e boicotar as políticas
públicas, que se orientam para atender os diretos das mulheres.
É preciso punição dura para os
estupradores e reeducação para que voltem a sociedade sem oferecer riscos as
mulheres.
Fonte: Geledes
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