É curioso observar o quanto nos sensibilizamos
com as tragédias contadas pelo Fantástico, pelo Profissão Repórter ou por
aquele documentário brilhante premiado em Cannes, sem nunca nos dar conta de
que, invariavelmente, o que se vê e se ouve nesses contextos nunca é
propriamente a verdade sobre a prostituição, mas sempre o olhar de alguém sobre
a prostituição - alguém que, provavelmente, é branco, rico e homem. Não se trata de desmentir as tragédias da
profissão mais antiga do mundo, mas de somar outros relatos. Pouco se fala, por
exemplo, da contribuição das prostitutas brasileiras para a construção de
políticas de combate à epidemia de HIV/AIDS nos anos 90.
Por Letícia Bahia
Ela era magra, linda, sonhadora,
desbocada e, como se não bastasse, ruiva. O príncipe veio não a cavalo, mas em
um carrão, e comportou-se como se estivesse no mais tradicional dos contos de
fadas, oferecendo-lhe o combo amor e dinheiro. Em troca - pra não dizerem que a
relação é totalmente assimétrica - aprendeu um pouquinho sobre a candura que a
vida de empresário durão não lhe permitia.
Qual a mulher que um dia não quis
ser puta, se ser puta era ser Julia Roberts em Uma Linda Mulher? Ocorre que,
fora dos filmes que (ainda?) reproduzem os contos de fada, a realidade da
prostituição é outra.
De acordo com o Relatório Mundial
sobre a Exploração Sexual - A prostituição no coração do crime organizado, da
Fundação Scelles, 42 milhões de pessoas (ou quase uma Espanha) se prostituem no
mundo. A pesquisa que deu origem ao documento foi realizada em 24 países e
talvez seja a maior já realizada sobre o tema. Ela aponta que, dessas 42
milhões de pessoas, a maioria (56%) está na Ásia, 75% são mulheres entre 13 e
25 anos, 2 milhões são crianças e 10% não está vinculada a cafetões ou
cafetinas.
É provável que nenhuma delas seja
ruiva, mas se a realidade da prostituição está longe do conto de fadas de Julia
Roberts, talvez um olhar mais atento possa nos mostrar que entre as 42 milhões
de pessoas que vendem sexo há muito mais diversidade do que o nosso olhar
piedoso quer enxergar.
O estigma da prostituição faz o
que qualquer estigma faz: cola na testa do indivíduo um rótulo depreciativo e
totalizador. A etiqueta de prostituta passa a definir a pessoa. Tudo o que ela
é e faz deriva desse rótulo. Naturalmente, populações estigmatizadas
(portadores de deficiência, negros, índios, homossexuais, prostitutas e outros)
não participam da construção do significado dos rótulos que lhe são atribuídos.
Não é o homossexual, mas o autor
da novela da Globo, quem define o que é ser gay. Sobre populações indígenas,
quem recheia nosso imaginário talvez seja mais o cinema americano do que o
nosso próprio, mas os índios brasileiros é que não são. Tampouco são as
prostitutas que determinam o que significa, em termos de imaginário social e de
símbolos, o que é ser puta (elas jamais decidiriam, por exemplo, que ser filho
delas seria ofensa).
Se quem define o rótulo é quem
está fora dele, não espanta a enxurrada de documentários e filmes com pinta de
cinema europeu que mostram a realidade das prostitutas no Nordeste, a realidade
das escravas sexuais na Mongólia, a realidade das mulheres cafetinadas por
empresários nos megaeventos esportivos.
A princípio pode não parecer uma
descrição ofensiva - certamente quem mostra essas realidades não quer ofender
-, mas o ponto comum entre essas histórias é a figura da mulher esmagada pelo
patriarcado e pela pobreza. Curiosamente, o lugar da mulher no mundo patriarcal
é exatamente o daquela que, vítima impotente, precisa de um herói que a
resgate.
Parece ter ficado impossível
falar sobre prostituição sem mostrá-la como necessariamente uma tragédia. Mas
por que insistir tanto nesse recorte? Se até Glória Perez já emplacou novela da
Globo sobre o tráfico de mulheres na Turquia, quem é que nós ainda estamos
tentando convencer?
Não falta ninguém, falta só o
último apagar a luz. Mas a sala ainda está abarrotada de gente que nunca
conheceu uma prostituta esbanjando opinião sobre como salvá-las. É curioso
observar o quanto nos sensibilizamos com as tragédias contadas pelo Fantástico,
pelo Profissão Repórter ou por aquele documentário brilhante premiado em
Cannes, sem nunca nos dar conta de que, invariavelmente, o que se vê e se ouve
nesses contextos nunca é propriamente a verdade sobre a prostituição, mas
sempre o olhar de alguém sobre a prostituição - alguém que, provavelmente, é
branco, rico e homem.
Não se trata de desmentir as
tragédias da profissão mais antiga do mundo, mas de somar outros relatos. Pouco
se fala, por exemplo, da contribuição das prostitutas brasileiras para a
construção de políticas de combate à epidemia de HIV/AIDS nos anos 90. Tendo
sido vítima preferencial do estigma associado ao vírus, as prostitutas (e
também os homossexuais) foram peça fundamental na construção de uma política de
saúde pública que virou referência mundial.
Também não é permitido comparar a
prostituição a outras profissões que, igualmente, a maioria de nós não deseja
para seus filhos e filhas. Não, nada é mais degradante do que ela. Mas se a
prostituição oferece alto risco de infecção por DSTs, um motoboy em São Paulo
está a mercê do trânsito que mata 7 motociclistas a cada dia.
Se elas estão no ofício por falta
de opção, eu pergunto qual é a faxineira que escolhe limpar na privada o rastro
das fezes alheias. Infelizmente, pouca gente admite esse tipo de comparação.
Ela é a pior e ponto, não insista no debate. Onde foi que pegamos a curva
errada e discutir a prostituição em toda a sua complexidade se tornou sinônimo
de dizer que se prostituir é bacana?
Há de ser culpa da Julia Roberts,
essa princesa eterna, repetitiva e enfadonha que a gente tem tanta dificuldade
de matar. Em todas as suas versões ela nos lembra: sexo e amor tem que andar
sempre de mãos dadas. Não se deve separá-los, não é coisa de mulher que se
preze. Nós passamos milênios sendo treinadas para vincular obrigatoriamente
amor e sexo, luz de velas e sexo, comida italiana e sexo.
Essa é a lógica que estrutura o
amor romântico patriarcal, o amor nos moldes das religiões cristãs - elas, que
tanto batalham pela nossa coroa de rainhas do lar. O sexo, dentro desse
contexto, é o maior valor da mulher, e por isso ela deve entregá-lo a poucos.
Se for a um só, tanto melhor. Se for a nenhum, aí a gente beatifica, como
fizemos com aquela moça que, dizem, pariu sem trepar.
A ideia de que o sexo deve ser
concedido com parcimônia é irmã da ideia de que o sexo suja a mulher. Nós
sabemos que existe uma relação direta entre o valor da mulher e seu número de
parceiros e estripulias sexuais. É só por isso que faz sentido para quem é
machista chamar a presidenta de vadia: porque aproximar uma mulher do sexo é
rebaixá-la.
Em uma sociedade patriarcal, o
sexo só é bem visto se for presente especial concedido a um homem. Sexo é
desonroso se for feito entre dois homens, entre duas mulheres, entre muita
gente, com muita gente, e também se puder ser vendido, principalmente se quem
vende é uma mulher. Em uma sociedade capitalista é preciso ser dono de algo
para vender esse algo, e a mulher ser dona do próprio sexo é a mais alta transgressão da lógica patriarcal.
É claro que precisamos
problematizar a proporção imensa de mulheres que fazem uso do corpo em
detrimento das ideias, mas é igualmente importante refletir sobre porque a
sedução feminina se tornou arma indigna enquanto o mesmo não aconteceu com a
força, atributo maior da masculinidade.
Jogar a prostituição no saco do
proibicionismo decidindo que ela é essencialmente uma coisa ruim, um mau a ser
extirpado, é triste e simplório. Nós já conseguimos mudar esse paradigma em
relação às drogas. Antes elas eram más, hoje elas podem ser más, a depender da
relação que se estabelece com elas. Hoje entendemos que por trás do abuso de
drogas estão fatores como a pobreza, o desemprego, a história familiar, a
depressão ou mesmo o desejo.
Graças a essa mudança de
paradigma - as drogas não são más, a relação que se estabelece com elas é que
pode ser boa ou má - temos conseguido caminhar, muito lentamente, para longe da
guerra às drogas e construir contextos de acolhimento para quem precisa.
Se queremos seguir o exemplo de
países que trocaram a proibição das drogas por modelos regulatórios, por que
essas mesmas pessoas se recusam a ver com bons olhos a regulação da
prostituição? Por que se referem ao PL Gabriela Leite como o PL da cafetinagem?
Que se faça críticas, vá lá. Mas jogar o único projeto decente no lixo em nome
do proibicionismo é um equívoco sem tamanho.
Já basta de tratar as putas com
condescendência, de falar com elas do alto da nossa generosidade branca.
Precisamos parar de dizer a elas o que é melhor pra elas. Não é admissível
dizer que uma profissão exercida por 42 milhões de pessoas, com toda a
diversidade que cabe dentro desse número enorme, deve ter como única resposta a
extinção.
Que possamos encontrar no debate
sobre prostituição a diversidade que o feminismo tanto valoriza. Que possamos
ouvir Amara Moira, Monique Prada e tantas outras mulheres que têm falado sobre
o tema com propriedade e conhecimento de causa.
Sobretudo, que a gente não seja e
não veja umas nas outras nem a donzela na torre nem a bruxa, nem Eva nem
Lilith, porque nós somos muito mais complexas do que qualquer fábula do
patriarcado jamais dará conta de descrever.
Leticia Bahia é Psicóloga e
feminista
Fonte: Brasil Post
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