Começar a dizer “não” a essa
barbárie é colocar a primeira pedra para construir uma sociedade de mulheres e
homens livres
O Brasil vive um momento
importante de tomada de consciência a respeito de algumas atrocidades cometidas
pela sua classe política que até ontem pareciam normais. Por exemplo, o
repúdio, por parte dos cariocas, principalmente das mulheres, ao jovem pré-candidato
à Prefeitura da cidade Pedro Paulo, que já bateu na sua mulher várias vezes,
ato que inicialmente negou, mas que acabou confessando. E que justificou com um
raciocínio espantoso: “Quem não tem alguma briga dentro de casa? Quem não tem
um descontrole? Quem não exagera em uma discussão? Fomos um casal como outro
qualquer. Quem não passa por isso? Quem às vezes não perde o controle?”.
Afirmar que a maioria dos homens
casados se descontrola a ponto de perder a cabeça e chegar a bater em sua
mulher é uma ofensa aos bilhões de homens que respeitam sua mulher, uma
achincalhação contra os homens pacíficos, aqueles que nunca praticam violência
contra a a esposa nem contra mulher alguma. É um escárnio.
Certos políticos, inclusive
dentre os mais destacados, como Eduardo Paes, prefeito do Rio de Janeiro, são
tão convencidos de seu poder, que causou surpresa em muitas pessoas, e
escandalizou outras, a sua afirmação de que a violência, quando perpetrada
contra a própria mulher, pertence à esfera da vida privada do casal.
Assim, o seu amigo e pupilo,
Pedro Paulo, poderia aspirar, segundo ele, ao governo de uma cidade-símbolo
como o Rio apesar de ter espancado sua esposa Alexandra várias vezes, já que
isso seria normal.
Como reagiu, acertadamente,
Miriam Leitão, em O Globo, “a agressão contra a mulher não é um problema
pessoal. É, de fato e de direito, um crime, e, portanto, algo de interesse
coletivo”. E ela acrescenta que considerar a agressão à mulher por parte do
marido como algo que deverias ficar entre quatro paredes “é uma atitude
reveladora do desprezo pela mulher, sua causa e sua luta”.
Se há algo positivo que tem
surgido a partir deste caso, é que, em meio à crise de falta de confiança, no
país, naqueles que dirigem o seu destino, é a força que a sociedade vem
conquistando na hora de decidir sobre a vida pública.
O que o jovem Pedro Paulo poderia
fazer de melhor seria desistir de sua candidatura, por maior que seja o apoio
que possa ter dentro de seu partido, pois eu li que os cariocas — a começar
pelas cariocas — já traçaram a sua sentença. E são eles que votam.
Se o novo movimento de tomada de
consciência da própria dignidade e da liberdade que tem surgido entre as
mulheres brasileiras continuar avançando, muitas coisas poderão, sem dúvida,
começar a mudar.
Os políticos habituados, por
exemplo, a fazer chacota daqueles que lhes cobram decoro parlamentar sabendo
que podem se eleger com base no peso de seus partidos, em dinheiro, muitas
vezes fruto da corrupção, e com a compra de votos dos eleitores menos
alfabetizados, poderiam começar a ter uma vida menos fácil.
As mulheres, por sua vez, que
estão despertando e tomando consciência de seus direitos e até do fato de serem
maioria, e que se recusam a ser vistas como um objeto que os homens podem
tratar como bem entendem, devem ser, hoje, as primeiras a dar um “basta” a
afirmações como essa, que procura classificar como de ordem doméstica a
violência perpetrada pelos maridos.
Péssimo papel está desempenhando
para a democracia política um prefeito que, como Paes, considera normal que um
marido bata na sua mulher, desde que seja algo feito em privado. Da mesma
forma, é uma ofensa às mulheres a afirmação feita pela esposa do candidato,
Alexandra, de que seu marido a agrediu apenas duas vezes e que não se trata de
um homem violento. Isso, apesar de ele lhe ter arrancado um dente com socos
diante de sua filha Manuela, de 10 anos de idade.
Esse caso me faz lembrar uma
espanhola que, depois de ter sido agredida fisicamente pelo marido dentro de
casa, ao ser interrogada pela polícia se ele lhe batia muito, respondeu: “Meu
marido me bate dentro do normal”.
Nesse “normal” se encaixam, como
um tumor na alma, séculos de submissão da mulher ao marido, medos ancestrais, e
uma convicção secreta, avalizada às vezes pela própria religião, que exige da
mulher, diante do altar, “obediência em tudo ao seu marido”. Começar a dizer
“não” a essa barbárie é colocar a primeira pedra para construir uma sociedade
de mulheres e homens livres, com tudo o que isso implica de respeito às
diferenças.
Fonte: El Pais
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