No ano passado, poucas semanas
antes do início da Copa do Mundo, mais precisamente no dia 23 de maio, centenas
de policiais invadiram o "Prédio da Caixa" em Niterói, onde roubaram,
espancaram e estupraram prostitutas que lá atendiam e residiam. Após a operação,
o prédio foi lacrado e cerca de 400 profissionais do sexo e pequenos
comerciantes foram despejados. Apenas uma das prostitutas, Isabela (é seu pseudônimo),
conseguiu registrar queixa e denunciar o caso.
Poucos dias depois, em
represália, ela sofreu um sequestro-relâmpago. Conversei com ela pouco depois
disso, na época identificando-a por um pseudônimo. Desde então, seu caso foi
discutido na ALERJ, ganhou a atenção de várias ONGs e uma atenção especial por
parte do deputado Jean Wyllys, que levou a denúncia à Comissão de Direitos
Humanos e Minorias do Congresso Nacional. Segundo nota em seu site, a comissão
"enviou solicitação de informações ao governo fluminense sobre a situação
de violência enfrentada por esse grupo de mulheres de Niterói e ainda não obteve
resposta".
Ainda em Brasília, Isabela
participou de um encontro de Defensores e Defensoras dos Direitos Humanos e
tentou ingressar no programa de proteção a defensores de direitos humanos da
Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Numa
audiência com a ministra Ideli Salvatti, na qual ela descreveu ter sofrido
"total preconceito", teve seu ingresso no programa negado. Em outro
evento na mesma semana, uma das coordenadoras da SDH teria dito que Isabela
"não passava de uma puta".
Conversei com a Soraya Simões,
coordenadora do Observatório da Prostituição / Le Metro / IFCS / UFRJ e
professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional
(IPPUR/UFRJ). Ela é uma das signatárias de uma carta que critica a postura da
SDH e o programa em si. "Eles responderam com uma carta ameaçadora à
reitoria da UFRJ, mas, na mesma época, a comissão permanente do Brasil na ONU,
em Genebra, também enviou uma carta questionando a posição da SDH, e teve uma
resposta em outro tom", criticou.
A SDH tem dois programas de
proteção, o programa de proteção a vítimas e testemunhas (PPVTA ou Provita) e o
programa de proteção a defensores de direitos humanos (PPDDH). O primeiro
fornece à pessoa uma nova identidade e um endereço, tornando-a invisível para
seus inimigos. O segundo é diferente: mantém a identidade do defensor de
direitos humanos, permitindo a continuidade de seu ativismo. Ainda segundo
Simões, "a Isabela queria entrar no programa dos defensores, mas a SDH
queria colocá-la no de vítimas e testemunhas. De qualquer maneira, basta buscar
rapidamente na internet para ver a quantidade de críticas que existem a ambos
os programas, algumas vindas inclusive de pessoas beneficiadas por eles. A
questão é que a SDH está mais interessada em criar fatos políticos e
celebrações em torno dos programas do que na segurança da população em
si".
Pelo telefone, pedi à
coordenadora-geral de proteção aos defensores de direitos humanos, Fernanda
Calderaro da Silva, uma posição sobre o caso. Ela me encaminhou à assessoria de
imprensa da SDH, que solicitou um pedido formalizado por e-mail; feito isso, me
prometeram uma resposta até as 17h – e não rolou até agora.
Após seis meses, o programa da
ONG Justiça Global, que protegia Isabela, chegou ao final; assim, tendo negado
seu ingresso no programa de proteção, ela retornou à sua vida normal. No último
mês, ela alega que as ameaças voltaram, que seu pai desapareceu e que ela foi
sequestrada novamente. Dessa vez, os sequestradores utilizaram seu celular para
se passar por Isabela e sondar seus contatos com ativistas e ONGs. Após três
dias, ela foi solta no meio da estrada e fugiu do Estado, pegando carona num
caminhão. Conversamos pelo telefone, e ela me explicou com detalhes o que
aconteceu.
VICE: Logo depois que a gente
conversou, no ano passado, você passou a ser protegida por ONGs. Conta como foi
esse período e o que aconteceu de lá pra cá.
Isabela: Então, desde aquela
[vez], a gente conseguiu, através da "Da Vida", articular dois apoios
de duas instituições de fora do Brasil, Frontline e Fundação Urgente, que me
apoiaram por seis meses num projeto [em] que pagavam minhas despesas. Pagavam
tudo. Nesse período, eu fiquei em segurança. Quando acabou esse projeto, eu
tive de voltar a me virar sozinha; em novembro, eu voltei a morar na Baixada.
Nesse meio-tempo, eu também fui pro Equador representar o Brasil numa
plataforma latino-americana de trabalhadoras sexuais e, quando eu voltei de lá,
eu voltei a morar na Baixada. Também consegui uma audiência com a ministra da
Secretaria de Direitos Humanos, lá em Brasília. Aí, um dia antes de eu ir lá, a
polícia entrou na minha casa. Quebraram tudo, me deram quatro facadas e não
pude fazer nada. Falaram [a] todo momento que eu não podia falar, denunciar,
coisas assim. Fui pro hospital, me mediquei e fui pra Brasília mesmo assim.
Chegando lá, total preconceito na Secretaria de Direitos Humanos, total
preconceito da ministra Ideli Salvatti comigo. Foi bem claro que não iriam me
proteger, pois nunca iriam trabalhar com prostitutas e que não poderiam fazer
nada. Inclusive, um dos assessores dela quase me agrediu. Era um encontro de
defensores e defensoras dos direitos humanos no Brasil, tinha vários defensores
e a pauta principal deles era minha entrada num programa de proteção de
defensores, mas lá eles se negaram a isso, e eu voltei sem ter isso e pronto.
Foi decisão dela: ela disse que não ia me incluir e pronto. Nada aconteceu.
Fui de novo me articulando
sozinha, de um lado pra outro, com ajuda do pessoal da Da Vida. Fiquei muito
tempo sem ter o que fazer, sem ter onde morar, e o pessoal Da Vida se articulou, e alugaram uma casa pra
mim. Voltei à minha vida normal, minha rotina, trabalhando na Da Vida e também
como prostituta em outro lugar. Mas, quando foi agora depois do carnaval, acho
que tudo volta ao normal. Aí os processos voltaram, e eles foram atrás de mim;
foram à casa do meu pai atrás de mim, e, desde então, meu pai está
desaparecido...
Como foi isso?
A polícia foi à casa do meu pai
entregar uma intimação, e meu pai disse que não sabia de mim, mas no mesmo dia
meu pai desapareceu e ninguém sabe de nada. Já faz 34 dias.
Aí, depois disso, você foi
sequestrada, né?
Nesse meio-tempo, o pessoal da
ONU está querendo fazer um relatório sobre o meu caso: fui procurada pelo
Consulado Americano, pelos direitos humanos. Porque eles emitem um relatório
anual [em] que falam dos casos graves de violação aos direitos humanos no
Brasil, e eles querem colocar meu caso. Aí, no dia [em] que eu fui ao
Consulado, um pessoal da polícia ligou, disse que estava com meu filho, que era
pra eu ir encontrá-los. Fiquei tão desesperada que não chequei nada, não
confirmei nada – fui direto. Quando eu fui ao lugar marcado, eles não estavam
com meu filho; me colocaram num carro, me levaram para uma casa num lugar muito
longe. Fiquei lá três dias. Pegaram tudo meu: documento, celular, tudo. Ficaram
com acesso ao meu Facebook e Whats App. E foram passando trote para algumas
pessoas que me dão apoio, de ONGs e movimentos sociais, para tentar sondar o
que estava acontecendo. Mas aí o pessoal sentiu a minha falta e começou a
enviar e-mail dizendo que o Consulado Americano já queria articular com a Polícia
Federal, etc. Aí os policiais começaram a ficar com medo. Aí me soltaram no
meio da estrada: eu fiquei com muito medo, mas consegui pegar carona com dois
caminhoneiros e fui parar em outro Estado, onde eu tinha conhecidos. E estou
aqui até agora, e nada acontece.
Só que, no meio disso tudo, vi
que as organizações que dizem me apoiar, quando veem a dificuldade, se
distanciam de mim.
Você reconheceu algum dos
policiais? São os mesmos das outras vezes em que você foi ameaçada?
Não, eram outros. Eram policiais,
acho que [da Polícia] Civil. Eles me conhecem, mas eu não os conheço.
Eu sei que deve ser horrível, mas
você pode descrever pra gente como foi esse sequestro? Foi violento?
Isso foi na semana retrasada, foi
dia 10. Quando aconteceu isso, do meu pai ficar desaparecido, o pessoal da
Justiça Global me orientou a ficar num local escondido na região serrana até
que eles articulassem algo concreto e seguro pra mim; só que, nesse meio-tempo,
quando eu estava indo pra lá, me ligaram falando que estavam com meu filho.
Falaram para eu encontrá-los no centro do Rio. Aí eu fui no desespero. Aí
cheguei lá no lugar marcado, numa esquina atrás da Alerj, e eles me botaram no
carro. Pelo caminho que eles fizeram, parecia que era pro lado de Xerém: uma
casa muito velha. Eles me bateram muito, e, em certo momento, eu pensei que
eles fossem me matar. Só que um deles dizia: "Se a gente matar, vai vir
muita gente atrás dela: isso vai repercutir no mundo inteiro". Eles falam
muito isso: que, se me matassem, eles tinham noção do peso que seria, mas que,
se eu não parasse, eles iam matando um por um da minha família e quem mais
estiver ao meu redor. E pegaram meu telefone, identidade; me davam pouca
comida; e, depois, me largaram na BR.
O que eles querem exatamente que
você faça? Ou pare de fazer?
Eles querem que eu pare de falar
a merda que a policia fez.
Mas ainda assim você continua
denunciando...
Fiz, sim, algumas [denúncias],
mas nada aconteceu. A comissão de direitos humanos diz que vai designar uma
comissão para averiguar o caso...
Você acabou se tornando uma
ativista. Conte para mim como foi esse encontro no Equador ao qual você foi.
Fui em um encontro de
trabalhadoras sexuais da América Latina representando o Brasil. Foi uma ótima
experiência, pude ver que, no mundo todo, a polícia trata as prostitutas do
mesmo jeito.
Todas sofrem ameaças graves, mas
pude ver e trocar experiências do que eu sofri e sofro, mas elas não sofreram
nada igual.
Você me mostrou um vídeo em que
um deputado age de maneira totalmente preconceituosa com a sua profissão.
Parece que eles desconhecem que se prostituir não é crime.
A profissão de prostituta tem CBO
desde 2002. A profissão tem de ser vista como outras profissões normais. Tem de
descriminalizar as casas de prostituição. Mas é muito preconceito envolvido e
descaso total.
E hipocrisia também? Afinal,
muitos dos que fazem, julgam e aplicam as leis também frequentam prostitutas,
né?
Sim, inúmeros. Sem dúvida.
Fonte: http://www.vice.com
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