terça-feira, 17 de março de 2015

Bispos brasileiros condenam a imoralidade do mercado

O Conselho Permanente da CNBB, reunido em Brasília, entre 10 e 12 deste março, divulgou nota sobre o “delicado momento pelo qual passa o país”. Dois parágrafos desse pronunciamento mostram que a sua visão da crise não se limita ao risco pelo qual passa a democracia no Brasil:

 “O escândalo da corrupção na Petrobras, as recentes medidas de ajuste fiscal adotadas pelo Governo, a crise na relação entre os três Poderes da República e manifestações de insatisfação da população são alguns dos sinais de uma situação crítica que, negada ou mal administrada, poderá enfraquecer o Estado Democrático de Direito, conquistado com muita luta e sofrimento. Esta situação clama por medidas urgentes. Qualquer resposta, no entanto, que atenda antes ao mercado e aos interesses políticos que às necessidades do povo, especialmente dos mais pobres, nega a ética e desvia-se do caminho da justiça. Cobrar essa resposta é direito da população, desde que se preserve a ordem democrática e se respeitem as instituições da comunidade política.”


É muito clara a posição dos bispos brasileiros, vacinados por crises semelhantes do passado, responsáveis por golpes de Estado e implantação de ditaduras, instrumentalizadas por conveniências econômicas de mercado e “interesses políticos” fazendo pesar o seu poder, como sempre, em prejuízo das “necessidades do povo, especialmente dos mais pobres.”

Não são de hoje, portanto, essas preocupações. As discussões jurídicas, por exemplo, sobre inconstitucionalidades viciando o exercício de determinados poderes, sejam eles públicos ou privados, quase sempre ignoram algumas disposições da Constituição Federal, consideradas alheias a esse tipo de debate, por compreenderem valores éticos. Isso jamais acontece quando o direito de propriedade privada ou qualquer outro direito patrimonial típicos das garantias de mercado, surgem ameaçados ou violados. Autoridades administrativas ou judiciais atuam, então, com extraordinária agilidade e presteza em sua defesa, quase sempre baseadas no “devido processo legal” mesmo quando, comprovadamente, estejam infringindo a lei, pelo descumprimento da sua função social que lhes é inerente. 


Entretanto, como tantas vezes lembrado, um dos “objetivos Fundamentais da República Federativa do Brasil”, como prevê o art. 3º, inciso III, da Constituição Federal, é o de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. O respeito devido a uma disposição como essa, se avaliado conforme os seus efeitos concretos, tem ficado dependente de projetos futuros e incertos, quase sempre despidos de garantias efetivas. Daí a pouca ou nenhuma atenção que se lhes dá. Embora questionáveis, somente políticas públicas compensatórias, do tipo Bolsa família, Minha Casa Minha vida, Pro Uni, Luz para todos e outras, buscam atenuar, quando menos, os efeitos anti-sociais da desigualdade econômica vigente, injusta e imoral.

Como essa realidade dá um testemunho inconveniente para os interesses do mercado, assim que surge uma crise socioeconômica e política como a atual, em tudo semelhante às que deram origem aos golpes de 1954 e de 1964, o clamor de censura contra a moralidade pública faz-se ouvir, predominantemente, naquela parte da sociedade civil composta por grandes empresas e “gente bem posta na vida” com poder de compra e venda favorecido pelo mercado, sabidamente tão atento a esse poder quanto indiferente aos efeitos socialmente nocivos que ele cria.

Abre-se então uma boa chance de acentuar o discurso moralista anti-corrupção, colocando toda a responsabilidade por esse mal no Estado e nas/os suas/seus agentes políticos.


Em Porto Alegre, desde o dia 9 deste março, as mulheres da Via Campesina e do MST deram uma eloqüente resposta a esse tipo de pregação “moralista”. Em tudo surpreendente para o momento que vive o país, promoveram um gigantesco protesto visando denunciar uma outra corrupção, sistemática e muito própria do nosso sistema econômico. Mesmo que o atraso na execução da reforma agrária fosse o cenário de fundo dessa iniciativa, predominou a defesa da terra e do meio ambiente, contra grandes empresas nacionais e transnacionais que produzem, vendem e utilizam agrotóxicos aqui no Brasil. Acompanhadas de gente doente pela utilização desses venenos, receberam apoio de muitos movimentos sociais e até de representantes da Defensoria Pública do Estado, do Ministério Público do Estado e da União. 


Como puderam? Será que não sentem estar o país atento e preocupado com  problemas de muita outra magnitude? Sentem elas muito bem isso, mas também sabem e sofrem com aquela outra corrupção tão grande ou até maior. Essa, por comprovar disfunções do mercado, é habilmente escamoteada. Não deve aparecer, embora gere problemas ligados à nossa soberania e segurança alimentar, ao nosso território devastado e desmatado, aos desequilíbrios climáticos responsáveis por nossas enchentes, tempestades e secas, às violências praticadas contra índias/os, quilombolas, sem-terra e sem-teto, além de outros grupos de gente excluída socialmente. Assassinatos resultantes de conflitos por terra, mortes resultantes de envenenamento provocado por pesticidas, uso indiscriminado de sementes transgênicas, violações históricas praticadas contra os direitos humanos fundamentais sociais dessas multidões pobres, são fatos que  revelam os pecados do deus mercado. Assim, é de todo inconveniente chegarem à luz. 

Isso tudo não é efeito de crises políticas episódicas, mas sim de uma crise permanente criada por uma corrupção moral permanente. É claro que, no meio dessa confusão toda, quem não quer senão garantia de ordem, segurança e paz, mesmo quando se sabe nada disso ser possível sem justiça, a violência crítica que desaba sobre esse outro tipo de protesto, partido de gente pobre,  desvela um “zelo pela moralidade pública”, porque precisa disfarçar a  imoralidade  privada,  a própria origem e causa dele, onde a conveniência e o poder do mercado cumprem um decisivo papel.

A nota da CNBB não esquece esse fato. O atendimento prioritário dos interesses do mercado “nega a ética e desvia-se do caminho da justiça.” É manifesta, por sinal,  a sintonia aí presente com repetidos pronunciamentos do Papa Francisco. Na sua primeira exortação apostólica (Evangelii gaudium) de novembro de 2013, ele afirmou:

“Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais.

A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política econômica, mas às vezes parecem somente apêndices adicionados de fora para completar um discurso político sem perspectivas nem programas de verdadeiro desenvolvimento integral.

Quantas palavras se tornaram molestas para este sistema! Molesta que se fale de ética, molesta que se fale de solidariedade mundial, molesta que se fale de distribuição dos bens, molesta que se fale de defender os postos de trabalho, molesta que se fale da dignidade dos fracos, molesta que se fale de um Deus que exige um compromisso em prol da justiça. Outras vezes acontece que estas palavras se tornam objeto duma manipulação oportunista que as desonra. A cômoda indiferença diante destas questões esvazia a nossa vida e as nossas palavras de todo o significado. A vocação dum empresário é uma nobre tarefa, desde que se deixe interpelar por um sentido mais amplo da vida; isto permite-lhe servir verdadeiramente o bem comum com o seu esforço por multiplicar e tornar os bens deste mundo mais acessíveis a todos.”

Se existe, portanto, algum certificado moral a ser atribuído aos protestos ora em curso no Brasil, uma forma segura para isso não pode ser medida só pelo volume do seu grito e pelo número das/os manifestantes. Além da necessidade de bem se identificar quem o promove, os fins visados pela iniciativa, as adesões angariadas e públicas, a ideologia política subjacente, todos os interesses em causa, é indispensável discernir se o poder presente na manifestação de revolta e indignação não é o dessa outra corrupção que a inspira.

*Jacques Távora Alfonsin é advogado, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.Tradução: Mari-Jô Zilveti


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