O Conselho Permanente da CNBB,
reunido em Brasília, entre 10 e 12 deste março, divulgou nota sobre o “delicado
momento pelo qual passa o país”. Dois parágrafos desse pronunciamento mostram
que a sua visão da crise não se limita ao risco pelo qual passa a democracia no
Brasil:
É muito clara a posição dos
bispos brasileiros, vacinados por crises semelhantes do passado, responsáveis
por golpes de Estado e implantação de ditaduras, instrumentalizadas por
conveniências econômicas de mercado e “interesses políticos” fazendo pesar o
seu poder, como sempre, em prejuízo das “necessidades do povo, especialmente
dos mais pobres.”
Não são de hoje, portanto, essas
preocupações. As discussões jurídicas, por exemplo, sobre
inconstitucionalidades viciando o exercício de determinados poderes, sejam eles
públicos ou privados, quase sempre ignoram algumas disposições da Constituição
Federal, consideradas alheias a esse tipo de debate, por compreenderem valores
éticos. Isso jamais acontece quando o direito de propriedade privada ou
qualquer outro direito patrimonial típicos das garantias de mercado, surgem
ameaçados ou violados. Autoridades administrativas ou judiciais atuam, então,
com extraordinária agilidade e presteza em sua defesa, quase sempre baseadas no
“devido processo legal” mesmo quando, comprovadamente, estejam infringindo a
lei, pelo descumprimento da sua função social que lhes é inerente.
Entretanto, como tantas vezes
lembrado, um dos “objetivos Fundamentais da República Federativa do Brasil”,
como prevê o art. 3º, inciso III, da Constituição Federal, é o de “erradicar a
pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. O
respeito devido a uma disposição como essa, se avaliado conforme os seus
efeitos concretos, tem ficado dependente de projetos futuros e incertos, quase
sempre despidos de garantias efetivas. Daí a pouca ou nenhuma atenção que se lhes
dá. Embora questionáveis, somente políticas públicas compensatórias, do tipo
Bolsa família, Minha Casa Minha vida, Pro Uni, Luz para todos e outras, buscam
atenuar, quando menos, os efeitos anti-sociais da desigualdade econômica
vigente, injusta e imoral.
Como essa realidade dá um
testemunho inconveniente para os interesses do mercado, assim que surge uma
crise socioeconômica e política como a atual, em tudo semelhante às que deram
origem aos golpes de 1954 e de 1964, o clamor de censura contra a moralidade
pública faz-se ouvir, predominantemente, naquela parte da sociedade civil
composta por grandes empresas e “gente bem posta na vida” com poder de compra e
venda favorecido pelo mercado, sabidamente tão atento a esse poder quanto
indiferente aos efeitos socialmente nocivos que ele cria.
Abre-se então uma boa chance de
acentuar o discurso moralista anti-corrupção, colocando toda a responsabilidade
por esse mal no Estado e nas/os suas/seus agentes políticos.
Em Porto Alegre, desde o dia 9
deste março, as mulheres da Via Campesina e do MST deram uma eloqüente resposta
a esse tipo de pregação “moralista”. Em tudo surpreendente para o momento que
vive o país, promoveram um gigantesco protesto visando denunciar uma outra
corrupção, sistemática e muito própria do nosso sistema econômico. Mesmo que o
atraso na execução da reforma agrária fosse o cenário de fundo dessa
iniciativa, predominou a defesa da terra e do meio ambiente, contra grandes
empresas nacionais e transnacionais que produzem, vendem e utilizam agrotóxicos
aqui no Brasil. Acompanhadas de gente doente pela utilização desses venenos,
receberam apoio de muitos movimentos sociais e até de representantes da
Defensoria Pública do Estado, do Ministério Público do Estado e da União.
Como puderam? Será que não sentem
estar o país atento e preocupado com
problemas de muita outra magnitude? Sentem elas muito bem isso, mas
também sabem e sofrem com aquela outra corrupção tão grande ou até maior. Essa,
por comprovar disfunções do mercado, é habilmente escamoteada. Não deve
aparecer, embora gere problemas ligados à nossa soberania e segurança
alimentar, ao nosso território devastado e desmatado, aos desequilíbrios
climáticos responsáveis por nossas enchentes, tempestades e secas, às violências
praticadas contra índias/os, quilombolas, sem-terra e sem-teto, além de outros
grupos de gente excluída socialmente. Assassinatos resultantes de conflitos por
terra, mortes resultantes de envenenamento provocado por pesticidas, uso
indiscriminado de sementes transgênicas, violações históricas praticadas contra
os direitos humanos fundamentais sociais dessas multidões pobres, são fatos
que revelam os pecados do deus mercado.
Assim, é de todo inconveniente chegarem à luz.
Isso tudo não é efeito de crises
políticas episódicas, mas sim de uma crise permanente criada por uma corrupção
moral permanente. É claro que, no meio dessa confusão toda, quem não quer senão
garantia de ordem, segurança e paz, mesmo quando se sabe nada disso ser
possível sem justiça, a violência crítica que desaba sobre esse outro tipo de
protesto, partido de gente pobre,
desvela um “zelo pela moralidade pública”, porque precisa disfarçar
a imoralidade privada,
a própria origem e causa dele, onde a conveniência e o poder do mercado
cumprem um decisivo papel.
A nota da CNBB não esquece esse
fato. O atendimento prioritário dos interesses do mercado “nega a ética e
desvia-se do caminho da justiça.” É manifesta, por sinal, a sintonia aí presente com repetidos
pronunciamentos do Papa Francisco. Na sua primeira exortação apostólica
(Evangelii gaudium) de novembro de 2013, ele afirmou:
“Enquanto não forem radicalmente
solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos
mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da
desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo,
problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais.
A dignidade de cada pessoa humana
e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política econômica,
mas às vezes parecem somente apêndices adicionados de fora para completar um
discurso político sem perspectivas nem programas de verdadeiro desenvolvimento
integral.
Quantas palavras se tornaram
molestas para este sistema! Molesta que se fale de ética, molesta que se fale
de solidariedade mundial, molesta que se fale de distribuição dos bens, molesta
que se fale de defender os postos de trabalho, molesta que se fale da dignidade
dos fracos, molesta que se fale de um Deus que exige um compromisso em prol da
justiça. Outras vezes acontece que estas palavras se tornam objeto duma
manipulação oportunista que as desonra. A cômoda indiferença diante destas
questões esvazia a nossa vida e as nossas palavras de todo o significado. A
vocação dum empresário é uma nobre tarefa, desde que se deixe interpelar por um
sentido mais amplo da vida; isto permite-lhe servir verdadeiramente o bem comum
com o seu esforço por multiplicar e tornar os bens deste mundo mais acessíveis
a todos.”
Se existe, portanto, algum
certificado moral a ser atribuído aos protestos ora em curso no Brasil, uma
forma segura para isso não pode ser medida só pelo volume do seu grito e pelo
número das/os manifestantes. Além da necessidade de bem se identificar quem o
promove, os fins visados pela iniciativa, as adesões angariadas e públicas, a
ideologia política subjacente, todos os interesses em causa, é indispensável
discernir se o poder presente na manifestação de revolta e indignação não é o
dessa outra corrupção que a inspira.
*Jacques Távora Alfonsin é
advogado, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG
Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.Tradução: Mari-Jô Zilveti
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