Pois por trás do que parecem ser sábias palavras de pai e mãe, das quais nos lembramos com carinho e se tornam leis supremas para o resto da vida, não raro escondem-se discursos que mantém privilégios. A maior parte das incumbências que se atribuem aos gêneros não é por conta de características físicas que diferenciam homens e mulheres – elas são capazes de fazer tudo o que nós fazemos, nós é que não somos capazes de fazer tudo o que elas podem fazer.
Entrei em uma loja de armarinhos, há algum tempo, e pedi
determinado rolo de linha e agulha para poder pregar alguns botões fujões e
arrumar a maldita bainha de uma calça que insistia em se soltar, num desespero
de causa para tocar o chão.
Um grupo de simpáticas senhoras de cabelos brancos, ouvindo
minha conversa com a balconista, veio me dar os parabéns. Achei engraçada a
cena e expliquei que fazer isso era mais barato que apelar sempre para os
serviços de um profissional – o que seria vergonhoso, ainda mais para um neto
de costureira.
Até que uma delas reclamou que a nora era uma “inútil''
porque não sabia pregar um botão da camisa do filhinho dela.
De forma bastante delicada, para não atrapalhar aquele
momento, perguntei se o pimpolho não poderia ele mesmo fazer isso. Rindo de
forma doce, ela soltou um “claro que não!''. Afinal, ele era homem. Eu é que
estava indo além das minhas tarefas e preenchendo cartelas no grande bingo da
vida.
Resgatei essa história que já havia contado porque alguns
amigos reclamaram que eu exagero quando digo que a família pode ser uma das
instituições responsáveis por passar preconceitos adiante, reforçando uma
programação machista do indivíduo, por exemplo.
Pois por trás do que parecem ser sábias palavras de pai e
mãe, das quais nos lembramos com carinho e se tornam leis supremas para o resto
da vida, não raro escondem-se discursos que mantém privilégios.
A maior parte das incumbências que se atribuem aos gêneros
não é por conta de características físicas que diferenciam homens e mulheres –
elas são capazes de fazer tudo o que nós fazemos, nós é que não somos capazes
de fazer tudo o que elas podem fazer.
A menos que você seja um homem trans, é claro. Daí,
engravidar é possível.
Da mesma forma, uma “tradição'' não existe desde sempre, ela
é construída ao longo tempo, feito camadas de cebola sobrepostas, e não raro
embute em sua gênese uma relação dominador/dominado, fantasiada de história e
costume, cujo real significado perde-se na repetição passiva sem reflexão.
Em suma, limpar a casa e cuidar dos filhos não é coisa de
mulher. Muito menos fazer bainha de calça.
Daí alguns leitores dizem: “Ah, mas eu sou homem e, mesmo
assim, passo a vassoura na casa, levo os filhos na escola e prego botões.
Então, você está errado, japa''.
Se você se orgulha de fazer sua obrigação, provavelmente
deve ver essas atividades como favores feitos a alguém – à sua companheira,
talvez? O que é ridículo. Isso deveria ser tão corriqueiro – entre nós, homens
– como respirar ou comer, atos que fazemos sem questionar ou nos sentir
grandiosos por isso.
Mas se a família me doutrinou direitinho em preconceitos e
visões excludentes de mundo, quem sou eu para negar?
Enfim, pobres noras.
Fonte: Blog de Sakamoto
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