Leilão de virgindade, venda de órgãos e bebês, infanticídio.
Como alguns pensadores vão aos limites da razão para justificar o que o senso
comum rejeita.
Guilherme Rosa
No dia 24 de outubro, a catarinense Ingrid Migliorini, de 20
anos, vendeu sua virgindade. Provocou desprezo, censura, indignação. Foi
barrada de um desfile na Fashion Rio porque Tito Bessa Júnior, diretor da marca
que a havia convidado, recebeu dezenas de mensagens de repúdio. Para os que
atulharam a caixa de mensagens de Bessa, Ingrid, ao submeter seu corpo ao
mercado, se degradou pessoalmente, mas também, e mais importante, feriu os
códigos de ética que cimentam a nossa existência em comum. Para certos
pensadores, no entanto, a ideia de que a virgindade possa ser transacionada não
tem nada de chocante. Eles não param aí. Também deveria haver, dizem eles, um
mercado para órgãos, embriões e até mesmo bebês, pois essa solução, apesar da
aparência ultrajante, resultaria na verdade em maior benefício social. Algumas
variantes desse tipo de pensamento vão ainda mais longe: ao substituir a moral
pela lógica, ou reduzir os problemas éticos a teoremas, não se detêm nem mesmo diante
de ideias como o infanticídio. O desafio peculiar que esses filósofos,
cientistas, juristas e economistas representam é que eles não se mostram como
"inimigos da sociedade" ou "transgressores". Eles não
rejeitam as leis, os princípios de justiça e a democracia. Pretendem ser, no
máximo, reformadores – que levam a razão até os seus limites para,
hipoteticamente, aperfeiçoar nosso modo de vida e livrá-lo de tabus e
superstições.
Um desses pensadores é o jurista americano Richard Posner,
de 73 anos, autor de cerca de 40 livros, que há pelo menos quatro décadas é um
dos pensadores mais citados — e criticados — dos Estados Unidos. Ele é
considerado a principal figura de uma área conhecida como Análise Econômica do
Direito, que busca usar a economia para explicar as leis e as instituições
jurídicas existentes e prever os impactos que mudanças nessas estruturas podem
trazer. Ainda na ativa, suas sentenças não acompanham a heterodoxia de seus
livros. Porém, quando seu nome foi cotado para a Suprema Corte Americana, suas
ideias debelaram as chances de conseguir a vaga.
Em seus livros mais recentes, o juiz se descreve como um
pragmático, que interpreta as leis sem levar em conta princípios morais,
pensando em suas consequências práticas. Para ele, as interações de mercado
preservam a autonomia das pessoas envolvidas, por serem voluntárias e levar em
conta os interesses individuais. "Um principio fundamental em seu
pensamento é o consenso, o acordo. Ele diz que é justo alguém vender seu corpo,
desde que isso não tenha consequências sobre outras pessoas", diz Bruno
Meyerhof Salama, professor de Direito na Fundação Getúlio Vargas.
Em seu livro Sex and Reason, de 1992, Posner usa uma análise
de custo-benefício para descrever como o comportamento sexual se desenvolveu desde
a Grécia Antiga até os dias de hoje. Ele analisa o "preço" de cada
tipo de comportamento — monogamia, bigamia, homossexualismo, heterossexualismo
— na equação de uma sociedade. Segundo o jurista, a análise do comportamento
sexual deve ser moralmente indiferente, como se o que estivesse sendo analisado
fosse uma simples preferência alimentar. Ele propõe que o estado deveria
abandonar as tentativas de manter controle sobre o comportamento sexual privado
e consensual, e todas leis nesse sentido deveriam ser moralmente neutras. Nesse
tipo análise, o leilão da virgindade é perfeitamente justificável.
Oferta e procura – O russo Alexander Stepanov, 23 anos,
também leiloou sua virgindade em outubro, na mesma página de internet em que
Ingrid Migliorini ganhou 1,5 milhão de reais. O maior lance recebido por ele,
no entanto, foi de apenas 5.200 reais. Esse é um exemplo claro de como as leis
do mercado, de oferta e procura, podem regular até o leilão do próprio corpo.
Na visão de Posner, a virgindade perdeu seu valor simbólico
há muito tempo. Nas sociedades antigas, ela era muito valorizada, tanto pela
tradição quanto pela religião. O verdadeiro motivo, no entanto, era que a
virgindade da noiva dava ao marido a certeza de que era pai de todos os filhos
nascidos após o casamento. "A principal razão para isso deve ter sido a
extrema dificuldade, antes dos testes de paternidade, de provar quem era o
verdadeiro pai de uma criança", escreve Posner.
No século 20, se tornou muito mais fácil estabelecer a
paternidade. Além disso, métodos contraceptivos ajudaram a evitar que o sexo
antes do casamento pudesse acabar em gravidez. E, mesmo quando isso acontece,
as mães solteiras não são mais tão mal vistas em nossa sociedade. Como
resultado, os custos de ter sexo antes do casamento caíram muito, derrubando
com eles o mito da virgindade. Se alguns homens ainda valorizam isso, e estão
dispostos a pagar milhões, não haveria impedimentos morais, na visão de Posner
e companhia.
Posner também não vê grandes problemas na prostituição. Ele
lança sobre ela o mesmo olhar que lança sobre o casamento. Enquanto no
matrimônio o casal trocaria serviços sexuais por serviços de proteção e
cuidado, as prostitutas trocam seus serviços por dinheiro. No passado, quando
um marido pagava um dote ao pai da noiva, ele nada mais estava fazendo do que
pagar pela virgindade.
Tráfico de mulheres
A atual novela das nove, Salve Jorge, está colocando em
discussão o tráfico internacional de mulheres. Na trama, a personagem Morena é
vítima de um esquema e viaja ao exterior acreditando que trabalhará como
garçonete. No entanto, ela vai parar em uma casa de prostituição. Essa é a vida
de inúmeras mulheres vindas do terceiro mundo, que passam a viver situações
degradantes sendo obrigadas a vender seu corpo longe de sua terra natal.
Alguns pensadores, no entanto, defendem que esse tipo de
situação acontece mais por causa de leis que reprimem a prostituição e a
imigração ilegal do que por conta da venda de sexo em si. Segundo um estudo de
Leyla Gulcur, psicóloga da Universidade de Nova York, a situação de imigrante e
trabalhadora ilegal é que faz com que essas mulheres sofram discriminação. A
exploração econômica que elas sofrem se deve ao fato de não terem para quem
recorrer devido à sua insegurança jurídica no novo pais.
Mesmo nos casos em que elas foram levadas a esses países de
forma forçada, essa condição impede que procurem a polícia para se proteger.
Segundo a pesquisadora, o foco das políticas para defender essas mulheres não
deveria ser o confronto da prostituição. "Suas necessidades podem ser
atingidas ao reconhecer o trabalho sexual e liberalizar as políticas
migratórias para prevenir o abuso de terceiros", escreve Gulcur.
Segundo o pensador, se houver comum acordo, a prostituição
não é diferente de outras formas de comércio — e traria benefícios tanto para a
prostituta quanto para o homem. Na verdade, alguns pesquisadores defendem que
as condições degradantes enfrentadas por algumas prostitutas devem-se
justamente à repressão dessa prática. (Veja no box ao lado). Na maioria das
sociedades, a prostituição é reprovada, mas o estado não tem conseguido coibir
a prática, provando que as relações consensuais privadas não estão ao alcance
da lei.
Mercado de rins — Essa racionalidade sem limites leva Posner
e outros pensadores a justificarem a venda do corpo em um sentido mais literal.
Ao defender a lógica do mercado e os acordos consensuais, eles conseguem
justificar uma rede de comércio de órgãos, que poderia ajudar diminuir as filas
de espera para transplantes. Alguns órgãos, como rins e fígados, poderiam ser
vendidos inclusive durante a vida, do mesmo modo como acontece com sangue,
esperma, cabelo e óvulos em alguns países.
O economista Gary Becker, ganhador do prêmio Nobel de
Economia em 1992, fez uma análise das filas de espera pelo transplante de rim
nos Estados Unidos. Segundo seus dados, 90.000 pessoas aguardam por doações do
órgão e cerca de 4.000 morrem todos os anos durante essa espera. "Se o
altruísmo fosse suficientemente poderoso, o suprimento de órgãos seria grande o
suficiente para satisfazer a demanda, e não haveria nenhuma necessidade de
mudar o sistema atual", escreveu Becker no blog que divide com Richard
Posner.
Ele defende que a principal razão para a diferença entre
oferta e demanda é a proibição da venda de rins. Se as leis fossem alteradas,
as pessoas passariam a ceder seus órgãos em troca de ganhos financeiros. Becker
cita um estudo da Universidade de Buffalo afirmando que, nesse mercado, o preço
de um rim seria de 15.000 dólares e um fígado chegaria a 35.000.
Segundo Posner, esse comércio iria acabar completamente com
as filas de espera, uma vez que existem bilhões de pessoas que estariam
dispostas a dar um rim sobressalente para ganhar dinheiro. "A repugnância
que a ideia de vendermos partes do corpo desperta em muitas pessoas não me
parece ter nenhuma base racional", afirma o jurista.
Aluga-se útero – O pragmatismo também leva Posner a defender
a barriga de aluguel: o direito de uma mulher "emprestar" seu útero
para gerar o embrião de outras pessoas. Normalmente, isso acontece quando a mãe
original é infértil, e precisa de outra barriga para carregar seu filho durante
nove meses. A lei brasileira, por exemplo, proíbe que isso seja feito em troca
de dinheiro.
O jurista defende, no entanto, que a barriga de aluguel seja
objeto de comércio. "A prostituta vende sexo, do mesmo modo como a barriga
de aluguel vende reprodução", escreve. Ele afirma que uma mulher fértil
tem todo o direito de ajudar uma mulher infértil em troca de dinheiro. Alguns
críticos dizem que a prática é um arranjo comercial para a produção de um bebê.
Posner se defende dizendo que, sem a barriga de aluguel, a criança poderia nem
nascer. Além de trazer vantagens para as duas mães, o acordo também traz
vantagens para uma terceira parte: a criança.
Outros críticos dizem que, nos limites, o raciocínio
permitiria que mães vendessem seus filhos mesmo depois de nascidos. Posner
concorda, mas não vê nenhum problema nisso.
Bebês a venda – O processo de adoção costuma ser complexo e
demorado. As crianças devem primeiramente ser destituídas de suas famílias
biológicas por meio de procedimentos legais, e os pais adotivos passam por
rigorosas análises de assistentes sóciais e psicólogos. Posner defende que
esses procedimentos também devem ser substituídos pelas leis do mercado.
"O termo venda de bebês, embora inevitável, é
enganador. Uma mulher que desiste de seus direitos parentais por um pagamento
não está vendendo seu bebê; bebês não são bens, e não podem ser comprados e
vendidos. Ela está vendendo seus direitos de paternidade", escreve no
livro Sex and Reason. Esses direitos seriam diferentes dos direitos de posse e
os novos pais não teriam poderes maiores do que os pais biológicos.
Segundo o jurista, sempre que o estado impõe um limite ao
preço de algum bem, isso cria uma falta generalizada desse bem no mercado
regular e um mercado negro, onde ele está disponível a preços bem maiores. É
isso que acontece com a adoção, onde já existe um comércio irregular de
crianças para pais desesperados.
Posner propõe a criação de um mercado de bebês, com
regulamentações para impedir abusos. Os pais adotivos, por exemplo, não devem
possuir nenhum tipo de registro criminal. E as crianças devem ser adotadas
ainda bebês, para que não se lembrem da família original. Novamente, diz ele, é
uma situação na qual os dois lados da transação têm vantagens. A criança
também, pois ganha pais em condições de criá-la.
Limites do mercado – No livro, O que o dinheiro não compra
(Ed. Civilização Brasileira), o filósofo Michael Sandel critica o tipo de visão
que considera o mercado como o regulador perfeito das relações humanas. Como
ele resume: existem coisas que o dinheiro pode — mas não deveria — comprar. Sua
primeira crítica diz respeito ao pressuposto de que as decisões de ambas as
partes de um contrato são sempre voluntárias. Ele diz que enormes injustiças
podem ser cometidas quando alguém compra ou vende algo em condições de grave
necessidade econômica, pressionado pela pobreza e pela fome.
Outra crítica de Sandel é que a mercantilização pode mudar
os valores que damos a algum produto, criando uma visão degradante da pessoa
humana. Ele cita o caso da venda de crianças, onde os bebês se tornariam mera
mercadoria. "As inevitáveis diferenças de preço reforçariam a ideia de que
o valor de uma criança depende de raça, sexo, potencial intelectual,
capacidades ou incapacidades físicas", afirma no livro.
Sandel ainda afirma que o mercado altera o caráter dos bens
que são vendidos. Muitas vezes remunerar alguém por algo que ele faria de graça
tira sua vontade de fazê-lo. O filósofo cita um estudo clássico de Richard
Titmuss feito nos anos 1970, que comparou o sistema de doação de sangue em
vigor na Inglaterra e com o dos Estados Unidos. Enquanto no primeiro todo o
sangue é doado por voluntários, no segundo boa parte vem da compra por bancos
de sangue comerciais.
O resultado nos Estados Unidos foi ruim. Grande parte dos
doadores moravam em favelas e bairros pobres, gerando uma redistribuição dos
pobres para os ricos. Ali, o sistema de compra de sangue levava à uma escassez
crônica, desperdício de sangue e maior risco de contaminação. Segundo Sandel,
transformar o sangue em mercadoria corrói o bom sentimento dos doadores
voluntários, que enxergam no ato uma compensação psicológica, não monetária.
Embriões e crianças – Há pensadores, contudo, que não têm
uma fé irrestrita nos poderes do mercado, mas também deixam que seu sistema de
pensamento os conduza a regiões extremas. É o caso do filósofo Peter Singer,
professor de bioética na Universidade de Princeton. Ele se filia ao
utilitarismo, tradição filosófica inaugurada pelo inglês Jeremy Bentham no
final do século XVIII. Um dos pilares dessa tradição é a ideia de que o ato
moralmente justo é sempre aquele que resulta num acréscimo da felicidade geral,
em detrimento da dor. Singer adota, além disso, uma definição peculiar de
"pessoa" - palavra que em seu vocabulário se aplica tão somente a
seres dotados de autonomia, de autoconsciência e da capacidade para vivenciar
as sensações de dor e prazer.
A combinação desses dois conceitos faz com que Singer
defenda o direito ao aborto, à eutanásia - e até mesmo ao infanticídio, em
determinadas condições. Ele o faz sem eufemismos nem atenuações. "Se o
feto não tem o mesmo direito à vida que a pessoa, é possível que o bebe
recém-nascido também não tenha, e a vida de um bebê recém-nascido tem menos valor
para ele do que têm as vidas de um porco, de um cão ou de um chimpanzé, para
esses animais", diz ele em um de seus livros. E ainda: "Decididamente
devemos impor condições muito rigorosas ao infanticídio permissível; contudo,
essas restrições talvez se devessem mais aos efeitos do infanticídio sobre os
outros do que ao erro intrínseco de matar um bebê." Em consonância com sua
crença de que as decisões morais devem ser tomadas levando em conta a
"quantidade de felicidade geral", ele sugere que a opção pelo
infanticídio deve ser tomada somente quando a criança, ao nascer, apresenta
doenças e malformações que indicam uma vida de sofrimentos pela frente. Peter
Singer já foi chamado de Dr. Morte da filosofia.
Seguindo a mesma linha de pensamento, no começo deste ano,
os filósofos Alberto Giublini e Francesca Minerva, da Universidade de
Melbourne, na Austrália, causaram indignação ao publicar um artigo na revista
Journal of Medical Ethics. Eles defendiam que, se o aborto é permitido em
alguns casos, a vida do recém-nascido poderia ser terminada nas mesmas
condições, uma vez que não haveria grandes diferenças entre os dois.
Por causa de repercussão, os filósofos redigiram uma carta
aberta ao público se desculpando "pela ofensa causada pelo artigo".
Eles se justificaram dizendo que o artigo deveria ser lido apenas por
filósofos, que seriam capazes de entender que se tratava de uma discussão
intelectual, e não de uma proposta de política pública.
Limites da razão — A resposta dos australianos revela o
quanto existe de artificial nesse tipo de proposta. Quando não é feita com o
intuito direto de chocar, ela responde a uma espécie de fetichismo da lógica e
dos conceitos. Confrontados com o ultraje de quem não participa do mesmo jogo
de abstrações, eles reagem com surpresa e alguma consternação - como no caso de
Giublini e Minerva - ou com soberba, dizendo que os críticos são incapazes de
se livrar de suas superstições.
Diante disso, cabe avançar um pouco na crítica. Primeiro,
essas tentativas de melhorar o mundo no laboratório do raciocínio puro não são
capazes de prever todas as consequências sociais de mudanças que, quebrando com
antigas tradições, autorizassem, por exemplo, a venda de bebês ou o
infanticídio. "Não existe uma teoria certeira sobre como funcionam as
crenças humanas. Não sabemos como mudanças na lei, monetarizando algumas
relações por exemplo, podem alterar essas crenças e os comportamentos que nelas
são baseados", afirma Bruno Meyerhof Salama.
Segundo, o repúdio a essas soluções radicais, desenhadas nos
limites da razão, raramente brota de "superstições". Quase sempre ele
tem origem no senso comum - que é algo muito diferente. Ou àquilo que o
escritor britânico C. S. Lewis chamou certa vez de "retidão elementar da
reação humana". Lewis refletia sobre a maneira como algumas crenças
fundamentais das sociedades do Ocidente foram forjadas ao longo do tempo. Não
queria dizer que elas tinham de ser imutáveis, apenas que não deveriam ser
descartadas como mero entulho pela razão. Disse ele: "Essa retidão elementar
da reação humana, à qual estamos sempre prontos a atribuir os epítetos de
vulgar, crua, burguesa e convencional, está longe de nos ser conferida;
trata-se de um delicado equilíbrio de hábitos laboriosamente adquiridos e
facilmente perdidos, de cuja manutenção dependem tanto nossas virtudes e nossos
prazeres como, talvez, a própria sobrevivência da espécie."
Fonte: Veja
Um comentário:
Quando uma menina de 20 anos chega ao ponto de leiloar sua virgindade e se torna estral de um dos assuntos mais comentados na mídia sem, no entanto, causar indignação na mesma proporção, é sinal de que chegamos a decadência moral.
Abraços,
Dedetizadora
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