Seis anos após a promulgação da Lei Maria da Penha, o Brasil
tem demonstrado esforços no combate à violência contra a mulher, e o número de
denúncias vem aumentando, mas a maioria ainda esbarra em um velho obstáculo que
beneficia os agressores: a impunidade.
A legislação que foi sancionada em 2006 é considerada modelo
internacionalmente e leva o nome da ativista cearense que ficou paraplégica
após ser baleada pelo marido, que a espancou por mais de dez anos.
O serviço Ligue 180, criado na mesma época da promulgação da
lei, recebeu quase 3 milhões de ligações nos últimos seis anos, sendo 330 mil
denúncias de violência, algo interpretado por especialistas como um sinal de
que cada vez mais mulheres vêm utilizando este canal em busca por justiça.
Mas analistas avaliam que, na prática, o que impede o avanço
do país rumo à eliminação da violência contra a mulher é o Judiciário, que
ainda processa os casos com muita lentidão. Além disso, muitos juízes ainda
tratam a questão com preconceito e machismo, primando por tentativas de
conciliação mesmo diante das evidências de abusos, dizem pesquisadores da área.
Também há indícios de uma morosidade do governo nas esferas
municipal, estadual e federal em agilizar a estruturação da rede de atendimento
à mulher prevista pela lei.
Mais violência
Enquanto isso, estatísticas recentes mostram uma tendência
de aumento da violência.
Segundo um levantamento do Instituto Sangari, baseado em
dados obtidos de certidões de óbito e da Organização Mundial de Saúde (OMS,
ligada à ONU), o Brasil acumulou mais de 90 mil mortes de mulheres vítimas de
agressão nos últimos 30 anos.
Em 1980 eram 1.353 assassinatos deste tipo por ano, e em
2010 a crifra saltou para 4.297. Além disso, o Brasil fica em 7º lugar no
ranking dos países com mais mortes de mulheres vítimas de agressão.
Algo que Eleonora Menicucci, ministra chefe da Secretaria de
Políticas para as Mulheres (SPM), órgão do governo federal, classifica como
"lamentável".
"É realmente lamentável que o Brasil ainda esteja na 7ª
posição neste ranking. Eu gostaria que a gente nem aparecesse, mas creio que
todas as nossas políticas públicas impactam este cenário e que estamos no
caminho certo", disse em entrevista à BBC Brasil.
Impunidade
Para Wania Pasinato, socióloga e pesquisadora do Núcleo de
Estudos da Violência da USP, as estatísticas soam como um alerta de que a lei
não está sendo aplicada como deveria e que o país falha em não reduzir mais o
sofrimento e as mortes de milhares de brasileiras.
Já a ministra Eleonora Menicucci argumenta que na visão do
governo federal o combate à impunidade é importante e configura a segunda etapa
do esforço para conter a violência.
Mas ela admite que é "ponto pacífico" que existe
uma "morosidade enorme nos processos".
Na metade deste ano a SPM lançou a campanha
"Compromisso e Atitude no Enfrentamento à Impunidade e à Violência contra
às Mulheres", focando no Ministério Público e Conselho Nacional de
Justiça.
"Temos duas frentes: mudar a mentalidade da sociedade e
do Judiciário. São os juízes que vão dar velocidade aos processos e
audiências", explica, acrescentando que "o Brasil é um país muito
grande, as culturas e os procedimentos são muito diferentes".
Ela destaca, no entanto, que entre julho de 2010 e dezembro
de 2011 em todo o país foram realizadas 26.410 prisões de agressores, 4.146
detenções preventivas e que mais de 685.905 processos de agressão contra
mulheres estão tramitando em cortes brasileiras.
O Observatório Lei Maria da Penha, ligado à Universidade
Federal da Bahia (UFBA), que monitora a aplicação da lei em todo o Brasil, diz
que ainda há muito machismo e preconceito entre delegados e juízes, que tendem
a classificar a violência contra a mulher como um assunto de foro íntimo,
relegado a um segundo plano diante de outras questões.
"Há casos de mulheres que denunciam o agressor e
esperam mais de seis meses por uma audiência, e o juíz ainda tende a ignorar a
gravidade da denúncia e primar pela conciliação e a retirada da queixa.
Sobretudo no Nordeste, vemos até o assédio de policiais contra as mulheres no
momento da denúncia, quando elas estão fragilizadas", diz Márcia Tavares,
uma das pesquisadoras do grupo.
Wania Pasinato acredita que o Judiciário brasileiro
simplesmente não está preparado para aplicar uma legislação de proteção à
mulher.
"Eles veem apenas a dimensão criminal. O posicionamento
de juízes e da segurança pública precisa ser modernizado. É necessário haver
mais esforço, o que não está acontecendo. Muitos magistrados desconhecem
totalmente a lei".
Estrutura
Um dos aspectos mais elogiados da lei Maria da Penha é o
fato de que a legislação vê a violência contra a mulher não só como um problema
criminal mas também social.
E para agir com mais eficiência rumo à uma transformação
real da cultura de dominação machista e agressão, o texto da lei prevê a
criação de uma rede de atendimento composta por diversas esferas, entre elas
juizados especiais e abrigos onde as mulheres podem ficar seguras após fazer
denúncias.
Mas até mesmo a SPM reconhece que essa estrutura ainda está
muito aquém do necessário.
"É realmente verdade, infelizmente. A rede de proteção
e as delegacias especiais são estaduais, já as casas-abrigo são municipais.
Estamos propondo que os juizados sejam regionais, para melhorar essa
estrutura", diz a ministra Eleonora Menicucci.
Ela explica que a SPM repassa recursos federais aos Estados
a cada quatro anos, quando ocorre um acordo mediante a apresentação de
projetos. No ciclo atual, apenas três Estados já renovaram suas verbas
(Distrito Federal, Paraíba e Pará), recebendo um total de R$ 29,9 milhões. Os
outros estão pendentes.
A pesquisadora da USP Wania Pasinato diz que os
investimentos para que a rede seja de fato ampliada e que "a maioria das
tentativas têm fracassado".
"Fica difícil transformar esse direito formal em um
atendimento concreto sem essas estruturas previstas pela lei".
Para a socióloga, o alto número de assassinatos de mulheres
no país é um alerta de que a lei, de fato, não está sendo aplicada como
deveria, e que a sociedade brasileira ainda precisa avançar para aceitar o fato
de que "bater em mulher" é crime.
"Passamos por muitas transformações e o papel da mulher
foi alterado de forma muito radical no país. Temos uma presidente mulher, algo
muito simbólico. São mudanças que a nossa cultura machista ainda não conseguiu
absorver e que ameaçam os homens com a mentalidade dominadora".
Fonte: BBC Brasil
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