"O feminicídio é uma questão cultural antes de mais nada", afirma Maria da Penha, que lembra que a violência doméstica está em todas as classes sociais: "Meu agressor era um professor universitário".
Se tudo tivesse ocorrido conforme planejado por seu
agressor, Maria da Penha estaria morta há muito tempo, e ninguém suspeitaria
que seu caso seria mais um de uma extensa lista de homicídios de mulheres no
Brasil.
Mas ela sobreviveu a duas tentativas de assassinato e lutou
para que seu marido, um economista colombiano, fosse condenado.
Hoje com 67 anos e paraplégica devido ao tiro que levou do
ex-cônjuge, ela sabe que tem um lugar especial reservado na história do país,
após ter uma lei batizada com seu nome, e que pode ajudar a salvar milhares de
vidas de mulheres.
"Gostaria de ser lembrada como uma mulher que,
perseverando após 19 anos e seis meses em busca de justiça, conseguiu mudar a
lei de um país", diz a cearense durante uma entrevista à BBC Mundo em sua
casa em Fortaleza.
"Enquanto
dormia"
Farmacêutica bioquímica, ela relembra o instante em maio de
1983 quando um tiro a condenou a passar o resto da vida em uma cadeira de
rodas. Ela tinha 38 anos.
"Meu marido atirou nas minhas costas enquanto eu
dormia", disse. "Acordei com um tiro e não sabia quem havia atirado.
Pensei que tinha sido ele, não o tinha visto".
As suspeitas dela eram baseadas nas atitudes cada vez mais
violentas que Marco Antonio Heredia vinha adotando com ela e suas filhas. Ela
havia sugerido a separação, mas ele não aceitou.
O agressor disse à polícia que o tiro que atingiu sua mulher
havia sido disparado por um criminoso em uma tentativa de assalto.
Depois de passar quatro meses e meio hospitalizada, Penha
voltou a viver com o marido e as filhas. "Continuei com ele porque não
sabia que ele havia sido o autor da primeira vez".
"Quando voltei sofri uma segunda tentativa (de
assassinato), mais dissimulada, por meio de um chuveiro elétrico danificado de
propósito (para eletrocutá-la)", afirmou. "Se eu tivesse entrado no
banho... Percebi antes que estava passando corrente (pela água)".
Quase um ano depois do disparo, convencida de que seu marido
queria matá-la, Penha o denunciou às autoridades e começou sua luta para que
Heredia fosse condenado.
Risco de morte
Heredia se declarou inocente da acusação, mas após uma série
de julgamentos e recursos que lhe renderam mais de uma década em liberdade, foi
condenado por tentativa de homicídio e começou a comprir pena em 2002.
Ele ficou 16 meses na cadeia, passou para o regime
semi-aberto e, em 2007, entrou em liberdade condicional.
Em meio à batalha judicial, o caso foi levado por ONGs à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos - que começou a pressionar o
governo brasileiro.
O Estado foi responsabilizado pela demora no processo e
convidado a tomar medidas para prevenir a violência doméstica - um delito que
até então dificilmente se punia com prisão.
Isso levou à aprovação em 2006 da Lei Maria da Penha, que
combate à violência doméstica com punições mais duras para os agressores, como
a possibilidade de prisão preventiva e o impedimento da imposição de penas
alternativas.
Uma declaração das Nações Unidas citou no ano passado essa
lei como pioneira mundialmente em defesa dos direitos das mulheres.
Apesar da lei, a quantidade de mulheres brasileiras
assassinadas continua causando preocupação - um desafio que permanece sem
solução no país, segundo especialistas.
"A lei ajuda a mudar o comportamento, mas não muda tudo
sozinha", disse a socióloga Eva Blay, uma das primeiras pesquisadoras a
estudar questões de gênero no Brasil.
Maria Magnólia Barbosa, procuradora de Justiça de estado do
Ceará, afirma que a lei também levou a um aumento das denúncias de mulheres
maltratadas, dando ao problema maior visibilidade.
"Antes (as mulheres) não tinham a quem denunciar",
explica à BBC Mundo.
"Questão
cultural"
O Ceará, onde vive Maria da Penha, é um dos estados do
Brasil com menores índices de violência doméstica, embora, segundo Maria
Magnólia Barbosa, 157 mulheres tenham morrido nos sete primeiros meses de 2012
em decorrência de agressões.
"O feminicídio é uma questão cultural antes de mais
nada", afirma Maria da Penha, que lembra que a violência doméstica está em
todas as classes sociais: "Meu agressor era um professor universitário".
Símbolo da luta pelas mulheres no país, Penha aconselha que
as que se sintam ameaçadas busquem apoio de instituições e grupos
especializados, que se protejam com sigilo e evitem ser impetuosas.
"Muitas vezes a mulher pode se desesperar por estar
vivendo uma situação assim, mas é melhor ter um pouco de cautela para que não
seja assassinada", afirma. "Porque é em momentos assim que muitas
vezes a mulher perde a vida".
Fonte: BBC Brasil
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