Puta é toda aquela mulher que, de
algum modo, foge ao controle do patriarcado. Não importa se cobra por sexo, se
governa um país, se usa saias curtas, se dirige uma empresa ou apenas existe. O
estigma de puta não tem a ver com o fato de algumas mulheres cobrarem por sexo.
É, em verdade, fator essencial para manter a estabilidade do sistema. NADA pode
ser mais ameaçador e ofensivo a uma mulher que ter a sua imagem associada a de
uma puta.
Por Monique Prada
Há poucos dias, Letícia
Sabatella, ao passar por um grupo de manifestantes favoráveis ao impeachment da
presidenta Dilma Rousseff, foi violentamente agredida. Dentre outros
xingamentos, o mais pesado deles: puta. A atriz registrou em vídeo as chocantes
agressões e uma campanha virtual identificou seus agressores.
Letícia Sabatella, ao contrário
de mim e de milhões de mulheres mundo afora, não exerce o trabalho sexual. Para
entendermos por que motivo Letícia foi xingada de puta precisamos recorrer a
uma explicação mais ampla, portanto.
O que é uma puta?
Puta é toda aquela mulher que, de
algum modo, foge ao controle do patriarcado. Não importa se cobra por sexo, se
governa um país, se usa saias curtas, se dirige uma empresa ou apenas existe. O
estigma de puta não tem a ver com o fato de algumas mulheres cobrarem por sexo.
É, em verdade, fator essencial para manter a estabilidade do sistema. NADA pode
ser mais ameaçador e ofensivo a uma mulher que ter a sua imagem associada a de
uma puta.
Hoje, o estigma foi reforçado por
uma mulher. Eloísa Samy, advogada, conhecida por seu papel ativo nos protestos
de 2013, é aquela que pede policiamento ostensivo na repressão à prostituição
nas ruas do Rio de Janeiro em época de Olimpíadas. Segundo ela, “não se pode
admitir que um evento olímpico, que preza o bem estar das pessoas com tão
nobres ideais, se preste a servir a uma causa tão mesquinha”, causa esta que
seria a prostituição.
Eloísa, certamente mais do que
eu, sabe pelo bem estar de quais pessoas se costuma prezar em período de
megaeventos. Que populações são as mais afetadas em nome destes tão nobres
ideais. Na Copa do Mundo de 2014, em nome desta mesma causa que ela hoje
invoca, mais de 400 prostitutas tiveram, em Niterói, seus locais de trabalho
invadidos, numa ação que em tese serviria para apreender drogas e punir cafetões.
Da noite para o dia, mães de família tiveram seus poucos bens apreendidos,
ficaram sem o seu sustento e de seus filhos. Muitas delas foram roubadas e
estupradas, numa ação que teve pouco destaque – eram apenas prostitutas,
afinal. Não foram encontradas menores em situação de exploração sexual nem
drogas no local. Esta situação até hoje não teve solução.
O feminismo encarcerador de Samy
não é todo o feminismo. O feminismo é amplo e nós, prostitutas, dizemos: somos,
sim, mulheres trabalhadoras e FEMINISTAS.
Admito que feministas como Samy
possam ser bem intencionadas, mas parecem não se dar conta de que jogar a força
policial para cima de populações já marginalizadas, em especial mulheres, ao
invés de solucionar, cria ainda mais problemas. Em nome do bem estar moral
(sim), esquecem que incentivar o empoderamento das prostitutas e aliar-se a
elas é o único caminho para combater o que dizem querer combater. Com esta
política de segregação, tudo o que se consegue é alimentar um ciclo de
exploração, violência e exclusão que se diz querer combater.
Se existem mulheres, e são
muitas, exercendo atividades precárias – e a prostituição é apenas uma dentre
tantas – por conta da miséria, é com a miséria que se tem que acabar. Políticas
de encarceramento massivo aumentam, e não diminuem, a miséria. A maior causa de
encarceramento feminino hoje é o tráfico de drogas – o aumento das políticas de
repressão ao tráfico aliado à criminalização da pobreza nos levou a este
resultado. Políticas estatais de aumento à repressão ao trabalho sexual terão
resultados similares.
O feminismo radical encarcerador
está defendo princípios da bancada evangélica. Tal feminismo defende o
abolicionismo da prostituição segundo o modelo nórdico, implantado na Suécia em
1999, amplamente criticado pelas prostitutas locais e aparentemente ineficaz no
sentido de extinguir a prostituição – constatação minha, já que estamos em 2016
e ainda existem prostitutas atuando na Suécia, eu mesma tenho lido algumas.
Pois bem: proposta similar ao
modelo nórdico já tramita no congresso brasileiro. É o PL 377\2011, de autoria
do pastor deputado João Campos, declaradamente inspirado no modelo sueco e em
consonância com o que tem defendido feministas desta vertente. Ainda que
nenhuma feminista tenha sido chamada a debater com o pastor, o texto da lei é
claro. Mais do que um ataque, a comparação dos posicionamentos defendidos pelo
feminismo agora dito materialista aos posicionamentos defendidos pela bancada
evangélica é um alerta que deveria ser levado a sério, em especial neste
período de duro retrocesso. O aumento da repressão estatal é escandaloso e
escancarado, pessoas sendo retiradas de estádios e presas por protestarem conta
um governo ilegítimo, e o que estou vendo são vertentes do feminismo
legitimando essa repressão através da guerra moral contra mulheres que cobram
por sexo.
O grande ponto talvez seja óbvio
demais para que consigamos levá-lo em conta. Enquanto pessoas que não exercem o
trabalho sexual debatem qual seria o melhor meio de extingui-lo, mulheres,
muitas delas com famílias, lutam nas ruas por seu sustento diário. Deixar
decisões sobre repressão ou proteção ao trabalho sexual a pessoas para as quais
as consequências disso não tem impacto real em suas vidas é um ato de imensa
irresponsabilidade em relação às mulheres que se valem desta atividade para
sobreviver.
* Monique Prada é mulher, mãe,
trabalhadora sexual e feminista. Atualmente é presidenta da CUTS - Central
Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais, e co-editora do projeto
MundoInvisivel.org
Fonte: AzMina
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