Um policial da Cidade do Cabo, na
Áfrixa do Sul, é notório entre as trabalhadoras sexuais da cidade. O cara
aparentemente devota a maior parte do seu tempo em fazer da vida delas um
inferno. No início de julho último, no subúrbio de Woodstock, ele e outros
colegas policiais encurralaram um grupo de oito trabalhadoras sexuais e as
colocaram na traseira do camburão. Eles dirigiram até o principal rio da
cidade. Lá os policiais teriam dado a elas três opções: ou jogamos vocês no
rio, ou vocês chupam nossos paus, ou vamos prender e estuprar vocês.
Esse estilo pouco convencional de
policiamento é o segredinho sujo da capital sul-africana. Isso demonstra uma
maré de abuso sistêmico — incluindo chantagem, espancamentos e estupros —
contra trabalhadoras sexuais, uma seção da sociedade vista como subumana. É
tudo uma questão de poder. As trabalhadoras sexuais raramente dão queixa de
incidentes assim, porque sabem que se pedirem ajuda serão ignoradas e talvez
até punidas, especialmente se os perpetradores são os próprios policiais.
Ainda assim, naquela ocasião, uma
das mulheres jogadas no rio fez uma ligação. Ela falou com as únicas pessoas em
quem confiava para conseguir justiça: uma equipe de cinco ex-trabalhadoras
sexuais que se tornaram assistentes jurídicas. Sua missão: estar na linha de
frente para proteger as colegas dessa onda de ódio e brutalidade.
"Na Cidade do Cabo, a
polícia e os clientes acham que podem fazer qualquer coisa, sem medo da
lei", explicou a assistente jurídica Eunice Griffith April, em frente ao
escritório local da SWEAT (Sex Workers and Advocacy Task Force), uma
organização que reúne projetos para trabalhadoras sexuais na África do Sul.
"Nosso trabalho é divulgar a notícia de que as trabalhadoras sexuais podem
conseguir ajuda, que elas podem nos chamar. Oferecemos um ombro para chorar,
nas ruas, em casa e no tribunal. Como ex-trabalhadoras sexuais, também passamos
por isso. Nós entendemos."
A equipe de assistentes
jurídicas, parte do Women's Legal Centre, está preparando uma queixa formal
sobre o incidente no rio com o ministro da polícia e uma unidade independente
de investigação policial. Elas pedem a demissão do oficial em questão, que tem
um histórico tóxico de abuso e violência contra trabalhadoras sexuais que
começa em 2012, incluindo acusações de estupro e tentativa de assassinato.
Outra assistente jurídica é Lisa
Gladile, que trabalhou por 15 anos na indústria do sexo antes de conseguir esse
emprego. "Decidi me tornar uma assistente jurídica porque vi como
trabalhadoras sexuais sofrem. Essas coisas também aconteceram comigo", diz
Lisa. "Então pensei 'Se eu conseguir esse emprego, vou fazer o possível
para ajudá-las."
Como Eunice, ela se divide entre
turnos matinais e noturnos fazendo contatos e ajudando com pedidos de fiança,
multas e aparições em tribunais. Atualmente ela está ajudando num caso
envolvendo o suposto estupro de uma trabalhadora sexual por um policial em
2012, que só chegou ao tribunal depois que o Women's Legal Centre pressionou
implacavelmente a promotoria pública local. A equipe também está investigando a
morte de uma trabalhadora sexual chamada Lerato em 2012. Ela morreu de
problemas respiratórios depois que a polícia usou spray de pimenta contra ela e
a trancou num camburão por 10 horas.
A polícia não facilita a vida das
assistentes. "Somos assediadas pela polícia porque alguns deles não gostam
do que estamos fazendo. Eles nos ameaçam e dizem coisas como: 'Vocês não são
advogadas de verdade'", diz Eunice.
A maior parte da violência contra
trabalhadoras sexuais é cometida por clientes, mas a polícia não fica muito atrás.
A violência e assédio policial, incluindo prisões ilegais, chantagem e estupro
coletivo, é um "um tema onipresente" na vida das trabalhadoras
sexuais, diz uma pesquisa. Outro estudo, realizado pela Women's Legal Centre
com 300 trabalhadoras sexuais na Cidade do Cabo, descobriu que 70% delas já
tinha sofrido abuso policial: espancamentos, ataque com spray de pimenta e
violência sexual. Prisões arbitrárias de trabalhadoras sexuais são comuns,
apesar de a Suprema Corte ter proibido isso em 2009.
Stacey-Leigh Manoek, advogada do
Women's Legal Centre, me disse: "Os policiais agem com impunidade porque
podem". O centro já registrou depoimentos de trabalhadoras sexuais
contando que a polícia destruiu propriedade delas; roubou e queimou seus pertences;
as obrigou a comer camisinhas; além de estupros e mortes.
O SWEAT, o Women's Legal Centre e
a organização Asijika estão pedindo a descriminalização do trabalho sexual na
África do Sul. Eles acham que uma mudança na lei é o único jeito das
trabalhadoras sexuais se protegerem contra clientes, a polícia e a
discriminação enraizada. Um caso que mostra essa realidade: Tim Osrin,
treinador de natação, foi julgado em 2014 por espancar uma empregada doméstica
numa rua da Cidade do Cabo. Sua justificativa foi que ele achou que ela era uma
trabalhadora sexual.
As assistentes jurídicas atuam
numa paisagem mortal. Em agosto de 2014, uma assistente da equipe, Anita
Mambumba, de 38 anos, foi encontrada morta com um ferimento na cabeça,
provavelmente causado por uma pedra. Ninguém foi formalmente acusado pela morte
dela.
Não há estatística oficial sobre
trabalhadores sexuais mortos no país. Segundo a SWEAT, 10 trabalhadoras sexuais
foram mortas na Cidade do Cabo este ano, quase o dobro da taxa do Reino Unido,
que tem uma população 65% maior que a cidade. Duas foram baleadas e uma foi
estrangulada e esfaqueada apenas em fevereiro.
Mas isso não é incomum. No verão
de 2014, por exemplo, cinco trabalhadoras sexuais foram mortas em incidentes
separados durante cinco semanas; baleadas, esfaqueadas ou espancadas, seus
corpos desovados em ruas, terrenos baldios ou embaixo de pontes. Dos
assassinatos que chegaram às manchetes, parece que o sistema judicial da África
do Sul não se incomodou muito em investigar e punir os suspeitos.
Em abril de 2013, a trabalhadora
sexual de 23 anos Nokuphila Kumalo foi espancada até a morte em Woodstock. O
caso teve destaque porque o principal suspeito era o fotógrafo sul-africano
internacionalmente renomado Zwelethu Mthethwa. O artista se declarou inocente.
Uma vez, quando perguntaram por
que ele fotografava pessoas marginalizadas, ele respondeu: "Para retratar
essas pessoas sob uma luz diferente... como seres humanos decentes. Pessoas
como todas as outras". Mthethwa, cujo trabalho já foi exposto no mundo
todo e faz parte da coleção do Guggenheim de Nova York, foi acusado de
"chutar e pisotear a mulher repetidas vezes usando botas pesadas".
Ainda assim, três anos depois,
apesar de uma filmagem de câmera de segurança supostamente mostrando o ataque e
indicações de que o carro dele estava na cena do crime, Mthethwa não foi
julgado ainda por causa de vários atrasos burocráticos.
Esse tipo de atraso em trazer o
suspeito à justiça por assassinar trabalhadoras sexuais não é novidade. Em
2008, Johannes de Jager foi preso logo depois de matar a trabalhadora sexual
Hultina Alexander. Nada aconteceu por cinco anos, até que ele matou uma garota
de 16 anos em 2013. Só então ele foi julgado e condenado pelos dois
assassinatos.
Duduziem, uma trabalhadora sexual
que conheci no escritório da SWEAT, disse que conhecia pessoalmente 20
trabalhadoras sexuais mortas na Cidade do Cabo em seus 10 anos de serviço. Ela
diz que poucos casos foram abordados pela mídia. Quando pergunto se ela já foi
estuprada, ela diz que sim: "Isso é o pão com manteiga desse
trabalho".
Trabalhadoras sexuais interrompem
a Conferência Internacional sobre a Aids.
Um relatório sobre os benefícios
de descriminalizar o trabalho sexual está juntando poeira na gaveta do governo
sul-africano desde 2009. No dia 18 de julho, centenas de trabalhadoras sexuais
interromperam o discurso do ministro da Justiça na 21ª Conferência
Internacional sobre a Aids em Durban, para protestar contra o estigma e a
violência, e pedir a descriminalização.
Na conferência, Chris Beyer,
presidente da Sociedade Internacional da AIDS, disse: "Pesquisas já
mostraram que intervenções para reduzir a violência contra trabalhadores
sexuais têm um grande impacto na redução do risco de pegar HIV. Essa é uma das
razões porque descriminalizar o trabalho sexual é um dos métodos mais
eficientes de reduzir a contaminação. Para poder receber pílulas de prevenção
de HIV [profilaxia pré-exposição ou PrEP] você precisa revelar que é um
trabalhador sexual, o que é difícil se isso significa admitir um ato
ilegal".
Nesse meio tempo, enquanto o
governo sul-africano faz vista grossa, Duduziem e suas colegas fazem o que
podem para combater a violência. Elas se reúnem em lugares seguros e carregam
apitos. Quem tem celular pode acessar um grupo especial no WhatsApp, no qual os
membros postam sobre clientes e policiais violentos, placas de carro
"ruins", caminhos perigosos e detalhes de ataques.
Pergunto do que ela tem mais
medo. O que ela responde vai além da cova. "Tenho medo de que meu corpo
nunca seja encontrado. Que se me matarem, vou ser enterrada e eles nunca serão
punidos."
Tradução: Marina Schnoor
Esta matéria foi originalmente
publicada na VICE UK.
Fonte: http://www.mariapreta.org/
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