Ação contra deputado é exemplo de
como as mulheres são desrespeitadas e agredidas mesmo dentro de um ambiente
institucional democrático.
O artigo é de Luciana de Oliveira
Ramos, advogada consultora em Direito Constitucional e Eleitoral, professora do
curso de pós-graduação lato sensu da FGV Direito SP, publicado por
CartaCapital, 22-06-2016.
Não é a primeira vez que
situações trágicas são estopim para avanços na sociedade. O estupro em massa da
jovem do Rio de Janeiro, ocorrido no dia 20 de maio de 2016, ganhou enorme
repercussão não apenas pela atrocidade do crime, mas especialmente depois de a
sessão de violência ser gravada e divulgada nas redes sociais.
A brutalidade do episódio foi tão
chocante que gerou reações dentro e fora do País. Manifestações que
demonstravam a existência de uma cultura do estupro ocuparam as ruas e foram
objeto de intensas discussões nos meios de comunicação e nas redes sociais.
A ideia de que os homens têm
domínio sobre a vontade e o corpo da mulher se perpetua nas sociedades
contemporâneas – em algumas mais, em outras menos. A cultura patriarcal predominante
parece dar a alguns seres do sexo masculino a liberdade de invadir a
privacidade e violentar mulheres. Essa violência pode ser de diversos tipos:
física, sexual, moral e psicológica. A naturalização dessas atitudes torna
ainda mais problemática a violência direcionada às mulheres.
Quando, em algum momento,
superarmos o estado de “quase barbárie” em que vivemos, com episódios de
estupros coletivos e com os reiterados estupros individuais, a missão ainda não
terá sido cumprida. As violências se manifestam das mais variadas formas nos
mais diversos setores da sociedade.
Estudos internacionais têm
surgido recentemente e se debruçam sobre a violência contra a mulher na
política. Vale destacar que esses estudos começaram porque, de alguma forma,
alguns países já atingiram níveis de igualdade de gênero no Parlamento. Ou
seja, há um certo equilíbrio entre a quantidade de homens e mulheres
parlamentares.
Tais estudos revelam que apesar
do atingimento de uma maior representatividade de mulheres no Legislativo, há
diversas formas de resistência à integração política da mulher, que vão desde a
violência física e o assédio até o sexismo na cobertura da mídia e plataformas
de mídia social.
Esses estudos tratam, portanto,
da violência contra a mulher na política e da violência contra a mulher no
momento das eleições.
Acontece que o Brasil não
conseguiu superar nem essa primeira etapa de minimizar a sub-representação de
mulheres no Parlamento. De acordo com os dados das últimas eleições (2014),
foram eleitas apenas 51 deputadas federais, de um total de 513 assentos na
Câmara, o que representa 9,9% da Casa Legislativa. No Senado, temos 13
senadoras (de um total de 81), o que equivale a 16% de mulheres.
De acordo com o ranking da União
Interparlamentar – que faz um levantamento periódico da participação de
mulheres no Parlamento em quase todo o mundo – o Brasil está na posição 155, de
um total de 185 colocações. Essa péssima posição põe o Brasil como o pior
colocado entre os países sul-americanos.
O Brasil também está atrás de
outros países onde mulheres costumam sofrer estupros coletivos, como o Sudão do
Sul (56ª posição com 26,5% de mulheres) e a Índia (144ª posição, com 12% de
mulheres).
Esses dados atestam um evidente
cenário de sub-representação de mulheres no Legislativo brasileiro, em especial
na Câmara dos Deputados.
Em que medida a baixa
representatividade de mulheres impacta na violência contra a mulher (deputadas
e senadoras)?
Em primeiro lugar, vale mencionar
a fala de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) quanto ao avanço da pauta do aborto. Em 2015,
o presidente da Câmara disse que a votação sobre aborto só vai acontecer se
passarem por cima de seu cadáver dele. Essa afirmação denota uma clara
resistência institucional quanto à perspectiva das mulheres a respeito de um
tema sensível. Isso significa calar a voz de uma parte importante da sociedade.
Outro exemplo foram os
xingamentos direcionados à senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) durante a
polêmica sessão do Congresso Nacional que tentava votar mudanças na meta do
superávit primário (em dezembro de 2014). Enquanto ela discursava, algumas
pessoas que estavam nas galerias a xingaram de “vagabunda”.
Em uma entrevista dada pela
senadora sobre esses xingamentos, ela disse que esse não foi um fato isolado.
Segundo ela, a o poder político no Brasil é um ambiente muito masculino. A
senadora disse ainda que é, muitas vezes, desrespeitada pelos próprios colegas
parlamentares. Para ela, fazer uma voz feminina ser ouvida é muito mais
difícil, mesmo porque os colegas são os primeiros a desrespeitarem o regimento
e se intrometerem quando estão falando.
Nas palavras da senadora, “no
fundo, é um pouco aquele sentimento de poder. De que eles podem tudo. Então
chegam lá, pegam o microfone, não respeitam a presidência, não respeitam
ninguém e mulher principalmente, porque não temos a voz tão grave quanto a
deles.”
Mais um caso que merece ser
lembrado é a agressão do deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ) em relação à deputada
Maria do Rosário (PT-RS). Em discurso no plenário da Câmara, o deputado disse
que só não "estupraria" a colega Maria do Rosário, ex-ministra de
Direitos Humanos, porque ela "não merecia". Esse é um comentário que
reflete claramente a cultura do estupro. Com esse discurso, o deputado dá a
entender que sofrer um estupro é uma benesse e não uma violência contra a
mulher.
Esses episódios não ocorreram há
um século. Eles aconteceram há um ou dois anos. Isso é preocupante e mostra
como as mulheres são desrespeitadas dentro do ambiente institucional de
democracia representativa.
Não apenas são desrespeitadas
como seres humanos, mas são inclusive agredidas dentro do ambiente onde são
elaboradas as leis de nossa sociedade. Essas barreiras à integração das
mulheres no ambiente político são prejudiciais à democracia e à sociedade como
um todo.
Ter voz dentro de uma Casa
Legislativa é seu instrumento de trabalho. Limitar a expressão dessa voz é
impedir a efetiva participação de mulheres no Parlamento.
Mas parece haver uma luz no fim
do túnel. A notícia de que o deputado Jair Bolsonaro virou réu em ação penal
por falar que Maria do Rosário não merece ser estuprada é um avanço no sentido
de que as instituições de justiça passaram a ser incluídas no debate e têm a
possibilidade de dar respostas positivas.
Na terça-feira 22, o Supremo
Tribunal Federal (STF) decidiu receber duas ações penais, tornando o deputado
réu pela suposta prática de apologia ao crime e por injúria. Ao analisar
denúncia da Procuradoria Geral da República (PGR) e queixa da própria deputada,
a Primeira Turma da Corte entendeu, por quatro votos a um, que além de incitar
a prática do estupro, Bolsonaro ofendeu a honra da colega.
Esses episódios revelam que há
violências e violências. E cada uma delas merece a devida atenção e requer
ações diferenciadas para sua completa erradicação. Mas a raiz do problema ainda
precisa ser enfrentada com seriedade.
Somente assim, as nossas filhas,
netas e bisnetas poderão ter a liberdade de ser quem quiserem, de sair para
onde quiserem sem medo de ser violentadas pelo simples fato de ser do sexo
feminino.
Fonte: Carta Capital
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