"Como um discurso recorrente
na nossa cultura, repetido para os meninos, criou uma sociedade dividida e
extremamente machista", escreve Maria Lucia Homem, psicanalista e autora
do livro No limiar do silêncio e da letra.
Eis o artigo.
“Como ele é lindo. Você é o mais
lindo, o mais forte, o mais esperto. Vai ser sucesso com as garotas. Boneca é
coisa de menina. Casinha é coisa de menina. Engole esse choro. Coisa de menina.
Apanhou? Vai lá e dá porrada. Deixa de ser fraco. De ser covarde. Tá com medo?
Coisa de bicha. Cala essa boca e engole esse choro. Já falei. Vai apanhar até
aprender a ser macho.”
Essas são falas recorrentes na
nossa cultura, escutadas e repetidas ad nauseam [argumentação por repetição]
aos meninos. Como se casa e filho (“boneca e casinha”) não fossem algo
fundamental para qualquer ser humano e um dos pilares da masculinidade
contemporânea. Como se ainda, em pleno século 21, precisássemos perpetuar uma
divisão social de papéis, afetos e trabalho a partir da anatomia. Macho: rua e
domínio; fêmea: casa e submissão.
Como se sentir, chorar e ter medo
fossem tipos inferiores de reação, não permitidos. Moralizamos as emoções e os
sentimentos e, novamente, as sexualizamos: boys don't cry, meninas são
histéricas. Ao homem, o ideal (?) do controle sobre os afetos; à mulher, o
desvario. O mundo mudou, mas continuamos repetindo, inconscientemente, os
parâmetros de uma antiguidade clássica longínqua no tempo e na lógica. Afinal,
já não fizemos a virada moderna, laica e democrática?
Como lidar com a carga dos
afetos? Batendo. Como lidar com a violência recebida? Revidando. Senão,
bicha/homossexual que passa a ser não simplesmente uma forma de gozo que
atravessa o corpo, mas xingamento moral. E ainda, mais intrincado, forma de
nomear o lugar de uma sensibilidade humana que, voltamos, ainda parece ser
historicamente identificada ao feminino.
Sem dúvida, nada disso faz mais
sentido hoje, ao menos nas camadas penetradas pela modernidade ocidental,
embora ainda achamos estranho um menino brincar de boneca e casinha. Damos para
ele carros e armas. Como se só os homens dirigissem ou gostassem de dirigir ou
dirigissem melhor que as mulheres. E damos armas aos meninos – de todos os
tipos e tamanhos, com o antigo maniqueísmo polícia x ladrão, ou só com ladrão –
como no game Homeless?, em que a escolha é entre ser mendigo ou bandido (como
estamos aprendendo, na segunda opção se ganha muito mais dinheiro). Enfim,
carros, armas e poder.
A história continua. O menino
cresce e tem que se haver mais uma vez com a sexualização de seu próprio corpo
e seu psiquismo. Fica adolescente. “Aê, garoto. Esse é o cara. Vai ser o terror
das minas. Ele é fogo. Garanhão. Cata todas. Quantas você pegou? Sheik. Só com
as princesas.” Mulher é coisa para se ter e acumular, bens de consumo e
circulação há séculos. O candidato a homem é ensinado a ter mulheres, numa
lógica quantitativa simples: quanto mais, melhor. Série consumista em que a
mercadoria – mulher – é objeto. Ela não pode dizer não; ele não pode dizer não
(a essa lógica).
“Ela está me seduzindo. Com esse
shortinho. Ai, mulata assanhada, que passa com graça, fazendo pirraça, fingindo
inocente, tirando o sossego da gente. Ai, meu Deus, que bom seria se voltasse a
escravidão: eu pegava a escurinha. A novinha tá no grau. A bebezinha já fez
corpo. Ih, tá de mimimi? Não quer dar? Qualé, mano, tu não é macho? Vai pra
cima.”
Essas falas apontam para uma
mesma estrutura: a mulher é um ser sedutor, que tem aí seu poder sobre os
homens. E, assim provocados, os homens devem se mostrar plenamente homens. É
nesse ponto que a trama fica mais complexa: o homem em posição de desejo não
pode ter medo nem da recusa nem da perda de virilidade. Se a mulher diz não? Se
ele brocha? Diante dela – mulher, ser enigmático, potente, que pode me
manipular a ponto de modificar minha mente e o órgão mais incontrolável do meu
corpo – diante dela, o homem vacila. Ele então vira “macho”.
Macho é praticamente a defesa do
homem diante do enigma da mulher. Macho é a máscara fálica em todo o seu desespero,
amparando o homem diante da angústia: fragilidade, medo e dúvida. E, num grau
mais subterrâneo ainda, é o anteparo que o machismo promove aos próprios
impulsos ditos ‘femininos’, à própria condição de gozo masoquista que é o mais
basal do humano. E a narrativa se densifica: “O Chevette, ele é sinistro. Mais
de vinte engravidou. Nós fecha nessa p... No claro e no escuro. Nós ‘roba’, nós
trafica. Nós não gosta de andar duro. É só guerrilheiro bolado. Que anda
trepado e pesado de ouro. Nós tem um montão de novinha. Nós dá condição no
bagulho. Se der a b... pra outro nós mata.”
Aquele menino que sentia medo e
desejo se torna, para além de um macho convicto, um estuprador em potencial.
Ele toma o que ele quer, afinal, ele faz a lei. Essa a ilusão. Tudo está na
roda: a mulher, a criança, a filha, a enteada, a prima, a sobrinha, a amiga, a
ex, a filha do amigo, a mulher do amigo, a que passa na rua ou no baile. Todas
estão a serviço do meu gozo e do olhar cúmplice do outro macho que sustenta
esse meu lugar de onipotência imaginária. Se essa fantasia se quebra, se uma
humilhação se dá, eis o impulso para mais uma atuação de onipotência delirante.
Sim, desde criança domino o choro
que não pode estar em mim e a ‘mulher’ que não pode estar sobre mim: uso a força
do meu corpo e todo o meu desespero para te dominar. E cala essa boca se não te
arrebento mais.
Paulina, do filme homônimo, sabe
disso e nos surpreende, numa textura enigmática e revolucionária. Ela pretende
operar uma subversão dessa lógica: “Não me serve nada ser vítima. Sou uma
consequência de um mundo horrível que só gera violência.”
Ela denuncia. Ela se expõe e
marca o ato. Mas não personaliza. Não acusa singularmente. Ela decide não
contra-atacar no nível do sujeito.
E mais, ela guarda o filho. Como
se ele fosse uma possibilidade de respiro e transformação de toda essa lógica.
Como se esse seu filho pudesse sentir, pensar e refletir sobre o mundo. Só. E
de uma maneira mais livre.
Aguardemos as próximas gerações,
então.
Fonte: –O Estado de S.Paulo
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