Catálogo (à esquerda) mostra
roupa com a mesma estampa encontrada na oficina (à direita). Foto: Montagem
(Piero Locatelli e MTPS)
Bolivianos trabalhavam mais de 12
horas por dia e viviam em condições degradantes em oficina onde costuravam
roupas da marca Brooksfield Donna, pertencente à Via Veneto – responsabilizada
pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social por trabalho análogo ao de
escravo. A empresa nega envolvimento. Entre os trabalhadores, foi resgatada uma
jovem de 14 anos. Leia a íntegra da matéria de Piero Locatelli, para a Repórter
Brasil, sobre o caso.
O mesmo tecido que estampa a capa
da página da Brooksfield Donna no Facebook estava sobre mesas de uma precária
oficina de costura na zona leste de São Paulo no começo de maio. Na rede
social, o tecido vestia o corpo de uma modelo loira, magra e alta. Na periferia
de São Paulo, ele era costurado por cinco bolivianos que trabalhavam ao menos
12 horas por dia, sete dias por semana, e moravam dentro do local de trabalho.
A Brooksfield Donna, marca
feminina de luxo do grupo Via Veneto, produziu peças com mão de obra análoga à
de escravo, de acordo com auditoria do Ministério do Trabalho e Previdência
Social realizada no dia 6 de maio e divulgada agora. A empresa nega ter
qualquer responsabilidade sobre os trabalhadores encontrados.
Na casa onde a oficina estava
instalada, não havia extintores de incêndio, as instalações elétricas eram
precárias e improvisadas, e o chão acumulava pilhas de tecidos, formando um
cenário de fácil combustão onde a única porta de saída permanecia trancada.
O forte odor também escancarava
as condições precárias de higiene, segundo os auditores fiscais. A ausência de
papel higiênico, colchões dentro da cozinha e a falta de limpeza do local
também agravavam a insalubridade. Segundo os auditores, “as condições de
segurança e saúde eram inexistentes, tanto nos locais de trabalho, como nos
locais de moradia.”
Loja da Brooksfield Donna na rua
Oscar Freire, em São Paulo. Foto: Piero Locatelli
Um dos cinco trabalhadores era
uma adolescente de 14 anos, filha do dono da oficina, Felix Gonzalo, que também
foi encontrada na mesma situação. Segundo os auditores, a adolescente não
poderia trabalhar porque a costura é uma das atividades econômicas onde é
proibida a contratação de trabalhadores menores de 18 anos. O trabalho com
instrumentos perfurantes, como a máquina de costura, está entre “as piores
formas de trabalho infantil”, que o Brasil se comprometeu a eliminar até 2016.
Dentro da oficina, os fiscais
encontraram outras duas crianças. Elas moravam com as mães, que passavam quase
todo o tempo sobre as máquinas de costura. A demanda das crianças por cuidados
agravavam os riscos de acidente em um trabalho que exige concentração e em um
ambiente onde as máquinas não tem nenhum tipo de isolamento.
Etiquetas da Brooksfield Donna na
oficina onde os trabalhadores foram encontrados. Foto: MTPS
Via Veneto comandava produção –
Embora todas as peças produzidas por essa oficina fossem para a marca
Brooksfield Donna, o local era um fornecedor “quarterizado” da Via Veneto, ou
seja, uma empresa subcontratada por outra companhia terceirizada pela marca.
Esse tipo de prática é um elemento comum nas redes que exploram o trabalho
escravo. Uma empresa intermediária, a MDS Confecções, recebia as encomendas e
as repassava à confecção de Gonzalo, que costurava as peças exclusivamente para
a Brooksfield Donna.
Cada costureiro recebia, em
média, R$6,00 por peça costurada. Roupas da mesma coleção feita na oficina
chegava a custar R$ 690,00 em lojas visitadas pela reportagem. Mesmo se um
trabalhador costurasse 293 horas por mês, mais de catorze horas por dia útil,
sua remuneração estaria abaixo do piso salarial da categoria, de R$ 1.246,50
mensais.
Detalhe de blusa costurada na
oficina onde foi encontrado trabalhadores em condição análoga à de escravo.
Foto: MTPS
A empresa alegou aos auditores
que não possui nenhuma relação com os trabalhadores. Questionada pela
reportagem, a Via Veneto afirma que não terceiriza seus serviços, e que “não
mantém e nunca manteve relações com trabalhadores eventualmente enquadrados em
situação análoga a de escravos pela fiscalização do trabalho” (Leia a íntegra
da nota).
A Via Veneto, porém, controlava
todo o processo de produção e confecção segundo os auditores fiscais do
trabalho. Era ela quem definia prazos, quantidades e os modelos das roupas. A
empresa também estabelecia o preço pago à confecção, arbitrado na elaboração de
“peças-pilotos”, os modelos a serem seguidos pelas costureiras nas oficinas.
Além disso, o pagamento dos trabalhadores pelas empresas só era feito após a
Via Veneto receber as encomendas.
Detalhes das peças encomendadas
pela Brooksfield, em mural na MDS. Foto: MTPS
A empresa também permitiu que a
MDS, contratada por ela, terceirizasse a produção para outras empresas, o que
reduz ainda mais os custos. Outras marcas que contratam a empresa para produzir
roupas, como a Le Lis Blanc e a Animale, produzem as suas peças dentro da
própria MDS, segundo a auditoria. A reportagem tentou entrar em contato com a
MDS, mas não obteve resposta da empresa. Questionada pela Repórter Brasil, a
Brooksfield não respondeu as perguntas sobre sua relação comercial com a MDS.
“Sem trabalho e em situação
famélica” – Os trabalhadores encontrados continuam em uma situação de extrema
fragilidade devido à postura da Brooksfield diante dos problemas. “A empresa
demonstra uma falta de vontade de resolver uma situação básica, de dignidade
básica do trabalhador,” diz Lívia Ferreira, auditora fiscal que coordenou a
fiscalização. “[A Via Veneto] não teve nem uma humanidade mínima de pagar para
cinco trabalhadores valores que nem são altos.” A empresa deveria pagar entre
R$ 1.062,99 e R$ 4.156,39 mil para cada trabalhador, totalizando R$ 17.688,55
para todos os cinco.
Trabalhadores não receberam
auxílio da Brooksfield, o que os deixa em uma situação de extrema fragilidade.
Foto: MTPS
A negação do problema coloca a
Via Veneto entre os grupos mais atrasadas no combate ao trabalho escravo, um
problema enraizado no DNA do setor têxtil do Brasil e do mundo. Admitir que a
escravidão existe é apenas o primeiro passo para uma série de mudanças
necessárias e urgentes no combate a esse tipo de exploração. Entre outras
medidas a serem tomadas, estariam a transparência aos clientes sobre seus fornecedores
e o monitoramento das condições de trabalho nessa cadeia.
Como a empresa sequer tomou o
primeiro passo nesse sentido, agora quatro dos trabalhadores encontrados na
oficina só estão recebendo o seguro desemprego no valor de um salário mínimo.Já
a adolescente está numa situação de vulnerabilidade ainda maior, já que esse
benefício não é previsto para os casos de trabalhadores com essa idade. Segundo
o relatório dos auditores fiscais, enquanto a postura da empresa não mudar,
esses trabalhadores devem continuar “sem trabalho e em situação famélica”.
Fonte: Blog do Sakamoto
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