Visibilizar as estruturas de
dominação de gênero, raça, classe, e levar em consideração a experiência das
mulheres fazem parte de pensar uma visão da sexualidade feminista que não seja
acrítica às formas como o mercado e o patriarcado expropriam, simbolizam,
normatizam o corpo das mulheres.
*Por Clarisse Paradis
Olhar a contribuição do
pensamento feminista, do século XVIII aos dias atuais nos ajuda a (re)construir
uma tradição que, desde os seus primórdios, esteve fundamentada em uma ideia
radical de liberdade e igualdade entre as mulheres e entre todas as pessoas.
Da inglesa Mary Wollstonecraft no
século XVIII, às anarquistas e socialistas do século XIX, passando por Simone
de Beauvoir e chegando à segunda onda do feminismo, com suas contribuições no
campo do feminismo negro e lésbico no século XX, podemos perceber que as
mulheres reivindicavam uma vida em que fossem consideradas sujeitos autônomos,
capazes de contribuir para a vida pública e que as instituições e valores
patriarcais e racistas deixassem de produzir e reproduzir a opressão que fazia
com que elas não fossem consideradas pessoas e que expropriava seus corpos, seu
trabalho e sua esperança.
Se somos as netas das bruxas que
não conseguiram queimar ou as netas das corajosas que não aceitaram a
escravidão, somos herdeiras dessa tradição que buscou combinar a ideia de
autonomia pessoal, com a luta política por uma sociedade calcada na igualdade e
liberdade. Digo isso, de antemão, na tentativa de resgatar as mais libertárias
aspirações, para encarar um tema tão difícil e controverso como o da
prostituição.
Para compreender as disputas em
torno do tema da prostituição, é imprescindível compreender como patriarcado e
neoliberalismo foram se combinando, no último período, para povoar o imaginário
social e reconfigurar, das relações econômicas e políticas, às relações mais
íntimas, como é o campo da sexualidade.
foto-post
Foi, sem dúvida, a partir da
ideia de liberdade, que as visões mercantilistas buscaram organizar as ruas e
as camas. Isso significou, o que nós da Marcha Mundial das Mulheres
identificamos, que as visões libertárias de autonomia e liberdade sobre o corpo
foram sendo reapropriadas por uma linguagem mercantilista, em que o que está em
jogo é o “faço do corpo o que eu quiser” ou “meu corpo é meu negócio”.
Essas concepções, que acabam se
revigorando nas legitimações das propostas de liberalização da prostituição,
operam com um sentido muito limitado de liberdade e uma desvinculação entre
igualdade e liberdade. De acordo com essas propostas, legalizar a prostituição
teria um sentido de produzir igualdade entre as mulheres e entre elas e os
clientes. Porém, não se pode conceber essa relação como igualitária,
desvinculada de um quadro mais geral das relações de gênero, raça, classe,
desvinculada do contexto das desigualdades intrínsecas das sociedades mercantilistas
neoliberais e desvinculada de uma noção de autonomia que leve em consideração
não só as escolhas disponíveis, mas o arcabouço de direitos e deveres mais
gerais.
Para isso, é fundamental refinar
os pressupostos normativos de liberdade e igualdade que servem para uma
vivência autônoma da sexualidade. A mera ideia de consentimento, não é
suficiente para tal. Mesmo que se retire do debate, todos os constrangimentos e
opressões que fazem com que as mulheres escolham a prostituição, o fato de isso
ser considerado um ato deliberado não elimina as desigualdades em que ele está
imerso.
Mesmo que a prostituição seja uma
troca deliberada entre algum recurso e algum ato circunscrito na sexualidade,
ela pressupõe que, nessa troca, o cliente seja o senhor dos prazeres, é ele que
escolhe como satisfazer o seu desejo e a plena reciprocidade não é um elemento
necessário nessa forma de contrato.
O ideal de liberdade não pode se
limitar a “fazer o que eu quiser”. A radicalização dessa concepção leva a
impossibilidade de qualquer dimensão não individual. Como construir a igualdade
entre as mulheres, se nós, como sociedade, dizemos que algumas devem estar no
espaço público para servir ao prazer sexual masculino, entendido como urgente,
soberano, incontrolável, enquanto outras tem direito a um pouco mais de
reciprocidade? Como não criticar uma certa vivência sexual masculina, ainda
dominante, que desvincula a satisfação sexual da ideia de que o ato sexual é,
por excelência, uma atividade intersubjetiva, de dois corpos, dois saberes,
duas vidas, duas imaginações, duas energias?
Para refletir sobre as políticas
que incidam sobre a prostituição, é preciso retomar esse debate, sob o risco de
construirmos soluções que não garantam uma vida que valha a pena ser vivida
para todas as mulheres. Afinal a prostituição não é uma mera prática íntima
pessoal, ela é uma instituição social e política, que foi atravessando os
séculos e, em cada momento histórico, foi normatizando as relações entre homens
e mulheres e, especialmente, limitando o que significava a ideia de autonomia
das mulheres. Foi na divisão entre putas e santas, entre prostitutas e esposas,
que o patriarcado foi nos forjando nas amarras da não liberdade.
Visibilizar as estruturas de
dominação de gênero, raça, classe, e levar em consideração a experiência das
mulheres fazem parte de pensar uma visão da sexualidade feminista que não seja
acrítica às formas como o mercado e o patriarcado expropriam, simbolizam,
normatizam o corpo das mulheres. Pois não basta que uma mulher se sinta e viva
autônoma, se a sociedade não está baseada nesse ideal. Não há saídas
exclusivamente individuais para esse debate, ou somos todas livres, ou vamos
continuar lutando!
*Clarisse Paradis é militante da
Marcha Mundial das Mulheres em Minas Gerais.
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