A crise econômica que vive o
Brasil e especialmente o Estado do Rio de Janeiro, que decretou estado de
calamidade pública nesta sexta-feira, ameaça a rede montada ao longo dos anos
para atender as mulheres vítimas de alguma violência, seja ela física, sexual
ou psicológica.
Problemas estruturais básicos e a falta de repasses de verbas
para organizações conveniadas, de pagamento de trabalhadores — muitos há meses
sem receber — estão deixando os chamados centros de referência a ponto de
fechar.
É o caso do Centro Integrado de
Atendimento à Mulher (CIAM) Márcia Lyra, o mais antigo centro da capital
fluminense que atende mulheres vítimas de violência e presta auxílio
psicológico e jurídico. Há quatro trabalhadoras que estão no quadro dos
servidores públicos do Estado e que terão, como os demais, seus salários
parcelados. As demais funcionárias, entre psicólogas, assistentes sociais e
advogadas, estão vinculadas à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e
seus salários dependem dos repasses de verbas da Secretaria de Assistência
Social e Direitos Humanos. "Não estão recebendo há cinco meses. A última
vez foi em dezembro, então estão pagando para trabalhar", explica a
psicóloga Cristina Fernandes, coordenadora do centro, localizado em um antigo
sobrado do centro da cidade do Rio.
Além da falta de salário, há
problemas como falta de ar-condicionado em algumas salas e de dinheiro para
pagar a gasolina dos carros do centro. "E só nós podemos encaminhar as
mulheres para os abrigos de proteção, que são sigilosos", explica
Fernandes, que já admite a possibilidade de suspender suas atividades. "As
profissionais estão revoltadas. Falam: 'A gente trabalha com direitos humanos e
violência, mas nós mesmas temos nossos direitos violados. Estamos sofrendo uma
violência moral'. E é isso. É muito duro ver uma equipe que está lá há muito
tempo, que eu mesmo selecionei e que tem uma histórico de atendimento, nestas
condições".
Ainda assim, este é o único dos
quatro centros administrados pelo Governo do Estado — e referência metodológica
em todo o país, tendo atendido cerca de 19.000 mulheres ao longo de sua
história — que ainda está funcionando regularmente. Outros centros já
sucumbiram à crise. O CIAM Manguinhos, que atendeu 900 mulheres em 2015, fechou
suas portas há alguns meses. Os profissionais da área apontam para o mesmo
problema de falta de pagamento de salário. Os outros dois centros, o CIAM
Baixada e o CIAM Queimados, estão com funcionamento parcial, segundo relatos
dos trabalhadores.
Em resposta ao EL PAÍS, a
Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos admite o fechamento do
centro de Manguinhos, mas "por conta de um ataque de vândalos em duas
ocasiões e que destruíram parcialmente as instalações". Diz ainda que
"o equipamento está em fase de transferência para outra unidade do
Governo" e que "a princípio, em 20 dias está prevista sua
abertura". Os demais centros, segundo a administração estadual, estão
"atendendo normalmente".
No entanto, o Estado do Rio
possui outros centros que, ainda que não sejam administrados pelo Governo,
fazem parte da rede estadual devido aos convênios assinados. É o caso dos
Núcleo de Atenção à Criança e ao Adolescente Vítimas de Maus-Tratos (Naca) de Niterói
e São Gonçalo, mantidos através de uma parceria da ONG Movimento de Mulheres
com a Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos. A coordenadora dos
centros, Marisa Chaves, explica que os funcionários, sem receber desde janeiro,
estão trabalhando poucas horas por semana como voluntários. Só em maio o
Governo do Estado repassou a verba prevista para janeiro. O EL PAÍS não recebeu
uma resposta do Governo sobre este atraso.
Muitos atendimentos foram
afetados e encaminhados para outros centros de referência. Com as atuais
condições e dependendo de doações, podem fechar suas portas nos próximos meses,
como já aconteceu com os núcleos dos municípios de Magé, Araruama e Maricá.
A prefeitura do Rio, menos
afetada pela crise financeira que assola o Estado, assegura que os centros e
casas de abrigo que administra estão funcionando perfeitamente. Já o Centro de
Referência de Mulheres da Maré Carminha Rosa, que atende as mulheres que vivem
no complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, também parece estar mais
blindado da crise estadual, uma vez que está vinculado diretamente ao Governo
Federal e à Universidade Federal do Rio de Janeiro — ainda que as trabalhadoras
do local chamem atenção para a falta de mais recursos humanos.
PROGRESSO NA REDE DE ATENDIMENTO
Um documento elaborado pela
Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) da Presidência da República
mostra a nítida evolução, entre 2003 e 2011, da rede de atendimento às mulheres
vítimas de violência em todo o país. Esses indicadores são fruto não apenas da
vontade política, mas também de um período de bonança econômica para o país que
permitiu ao Estado incrementar sua rede de serviços. Hoje, os profissionais do
setor não se cansam de perguntar: com a atual crise econômica, a extinção da
SPM e o redirecionamento das prioridades do Governo Federal, essas políticas
públicas e organismos estão ameaçados?
As cifras que mostram essa
evolução, ainda recente, são:
Centros de referência: 36 em
2003; 110 em 2007; 187 em 2011.
Casas de abrigo: 43 em 2003; 63
em 2007; 72 em 2011.
Defensoria especializada: 4 em
2003; 24 em 2007; 57 em 2011.
DEAMS / PAMs [Delegacias
especializadas]: 248 em 2003; 338 em 2007; 470 em 2011.
Juizados e varas adaptadas: zero
em 2003; 47 em 2007; 94 em 2011.
Promotoria especializada / Núcleo
de gênero no Ministério Público: zero em 2003; 7 em 2007; 48 em 2011.
Fonte: El Pais
Nenhum comentário:
Postar um comentário