Entrevista : Cristina Fernandes,
psicóloga especializada em abuso de crianças e adolescentes: “As favelas têm
culturas locais. Não posso fazer uma leitura moralizante”. Psicóloga explica:
"Temos que ter cuidado para não criminalizar a pobreza e as favelas"
A psicóloga Cristina Fernandes,
de 54 anos, é uma das principais autoridades do Rio de Janeiro quando o assunto
é violência sexual contra crianças e adolescentes. Desde 2009 coordena as
atividades do Centro Integrado de Atendimento à Mulher (CIAM) Márcia Lyra, o
mais antigo centro da capital fluminense que atende mulheres vítimas de
violência e presta auxílio psicológico e jurídico. Com mais de duas décadas de
trabalho nas costas, já lidou com diversos casos complexos e inesperados. Já
viu de tudo. Sobretudo quando transportada diretamente para o contexto de
muitas meninas e adolescentes que vivem ou frequentam as favelas da cidade. Em
uma entrevista ao EL PAÍS, faz questão de destacar reiteradas vezes: “As
violências são democráticas, principalmente as sexuais, que são intimistas.
Acontecem em todos os lugares. Então temos que ter cuidado para não
criminalizar a pobreza e as favelas. E eu como profissional tenho que ter cuidado
de que minha intervenção não tenha um cunho moralista”.
Ao longo dos anos, Fernandes foi
descobrindo que existem determinadas dinâmicas que são próprias das favelas, o
que podia entrar em choque com o que ela acreditava ser o correto. “Há
violências que eu posso entender como violência, mas que não são para os
indivíduos envolvidos”, explica. Como exemplo, conta sobre quando, há alguns
anos, estava em uma favela muito violenta do Rio fazendo um trabalho com as
alunas de uma escola. Em determinado momento, ao falar sobre paternidade,
começou a ouvir “risadinhas” no auditório de 60 pessoas. “Sem perder o
rebolado, porque são adolescentes, pergunto o que era. ‘Tia, aqui ninguém tem
pai não. Aqui é tudo filho do cadinho”.
Quando no final da aula foi
perguntar como as meninas se sentiam, se deparou com os costumes daquela
comunidade. “As meninas já iam para o baile funk sem calcinha porque elas
transavam num trenzinho. Então, é um bocadinho de cada um. Mas elas não têm o
entendimento que de é algo abusivo. Pelo contrário: ser mãe significa
libertação da família e status dentro dessa comunidade. Não tem como saber quem
é o pai, mas para elas tem um significado de pertencimento e de autonomia”.
Portanto, ela não pode tratar
este tipo de situação da mesma forma que trata outros casos onde não há nenhum
aspecto cultural ou geracional envolvido, segundo argumenta. “Não é uma questão
sexual. É uma questão de identidade. O que para a minha cultura e para a minha
geração pode ser uma violência, para o outro pode não ser. E se eu luto na área
de direitos humanos pelos direitos sexuais de crianças e adolescentes, eu
preciso entender quais são as novas dinâmicas”.
Como deve então agir um
profissional nesses casos? Que tipo de suporte e orientação deve dar para os
indivíduos envolvidos? Para Fernandes, é preciso evitar uma leitura
moralizante; ao contrário, é necessário entender determinadas práticas, de onde
elas vêm e se são localizadas ou pontuais. “As meninas estão fazendo competição
de sexo. É estupro ou não é? O trenzinho é uma cultura do estupro ou uma
prática cultural do local? Como profissional, preciso saber se elas têm
conhecimentos, dados e informações sobre as possíveis consequências para a saúde
e bem-estar físico e emocional delas. Preciso saber se aquela decisão é
consciente. E se for, se a menina sente prazer em fazer competição de sexo ou
de participar de trenzinho, me cabe respeitar. Mas se eu entendo que aquilo foi
algo imposto, que é uma violação, então quem fez vai ter que responder por
aquilo”.
Fonte: El Pais
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