As mulheres são violentadas todos os dias, física ou
emocionalmente. São violentadas pela socialização, quando os pais descobrem o
sexo de um bebê ainda na barriga da mãe e fazem um enxoval rosa, com direito a
brincos para identificar a criança como menina na saída da maternidade.
Por Andreia Nobre
Quando vestem as meninas com roupas femininas o tempo todo,
somente rosa, vermelho, vestidos e saias, que já as sexualizam com dias de
nascidas. Por que outra razão meninos têm ao menos os genitais cobertos por, no
mínimo, um short, mas as meninas não? Vestidos de menininhas não chegam no meio
dos joelhos, vão apenas até o fim da fralda.
O estupro diário de todas as mulheres acontece quando
dizemos às meninas para brincar apenas de bonecas, panelinhas, desenho, que as
ensina tanta empatia que, quando crescemos, só sabemos cuidar dos outros, das
necessidades dos outros, nunca das nossas, enquanto os meninos estão lá fora,
brincando de bola.
Quando dizemos que elas não podem xingar, mas ensinamos
palavrões aos meninos. Quando dizemos para elas fecharem as pernas "porque
isso não são modos de meninas". Quando repassamos a ideia de que meninas
são frágeis e meninos são fortes. Ou a de que meninas amadurecem mais cedo que
os meninos, por isso elas aprendem mais cedo a cuidar da casa.
E toda essa socialização acima descrita não deve chegar aos
pés do que acontece na periferia, na favela, nos cantões onde a lei, que
deveria proteger a todos, só chega atrapalhando a ordem local.
Vamos esclarecer um fato desde já: eu sou privilegiada. Eu
não vim da favela. Eu vim de um BNH. Mas vamos convir que um bairro que abriga
médicos, advogados, delegados, não é um bairro empobrecido. Minha casa era
realmente humilde. Nós realmente passamos um tempo comendo apenas pão de sal e
café pela manhã e arroz e feijão de almoço e jantar.
Mas eu sou privilegiada. Não tenho como saber como é a vida
na favela. Já dei aula por dois anos em favelas no Rio, estava lá todos os dias
da semana de trabalho. Isso não faz de mim nenhuma expert em termos de favela.
Eu não vivi a realidade de uma. Eu não posso chegar aqui e dizer que devemos
fazer isso, aquilo, aquilo outro e mais aquilo outro para começarmos a atacar o
problema da vulnerabilidade das mulheres que moram no morro.
O máximo que eu posso fazer, do meu lugar de fala, é abrir o
meu espaço para que as que vivem essa realidade virem contar a sua história.
Com o meu privilégio, o que eu posso é cutucar todos os que conheço à minha
volta para que seja articulada alguma intervenção para que possamos ajudar
mulheres que vivem uma realidade violenta e não tem como escapar dela.
E que intervenção seria essa? Não se pode chegar numa
favela, num morro, ou mesmo para alguém desse locais e dizer: estou vendo o
problema de vocês. O que vocês devem fazer é isso, aquilo e aquilo outro. Não.
Nunca. Nunquinha. Jamé. Pode parar.
A intervenção que deve ser feita é entrar em contato com as mulheres
em questão. Se elas quiserem entrar em contato. Elas têm de ser ouvidas. Porque
depois do estupro coletivo de uma jovem de 16 anos no Rio de Janeiro, a cultura
do estupro nunca mostrou-se tão desesperadamente viva e abrangente.
Dias após um excepcional envolvimento de feministas de
várias vertentes em socorro da jovem vítima, as poderosas garras da
socialização masculina, do pegador, do forte e unido time dos homens que nunca
foram repreendidos por objetificarem mulheres, bastou um áudio não identificado,
onde se ouve vozes de homens apenas, dizerem que a menina consentiu, para que
se colocasse em dúvida se o estupro aconteceu ou se foi, na verdade, uma gang
bang.
Logo em seguida, a internet foi inundada com posts expondo a
identidade da vítima, com fotos que a comprometem como alguém digna de
confiança para as mentes que aceitam e propagam a cultura do estupro.
O que é a cultura a cultura do estupro? É todo um sistema de
ferramentas criadas para culpabilizar a vítima e defender o agressor. É objetificar,
desumanizar a mulher, para que os homens não consigam vê-la como um ser
sentiente. O estupro é um ato violento que visa humilhar a vítima. O estupro
não é um ato provocado pelo desejo sexual. É um ato de poder, de apropriação do
corpo do outro.
Tanto assim é que qualquer pessoa num grupo vulnerável é
também uma vítima em potencial, como meninos pequenos, senhoras idosas, bebês
de apenas meses de idade. É um crime tão hediondo que é repugnado até mesmo por
criminosos condenados. Um estuprador preso será fatalmente violentado na cadeia
por homens héteros por ter abusado de alguém sabidamente vulnerável. Nem
assassinos perdoam um ato tão covarde.
Aqui fora, "homens de bem" repudiam o estupro
condenando o agressor a "virar mulherzinha" na cadeia. A punição pela
covardia de abusar sexualmente de alguém é "ser transformado em
mulher". A mulher é vista como o alvo de um ódio sem precedentes.
Castração química não resolve o problema dos contínuos
abusos sexuais a que mulheres, principalmente, estão sujeitas diariamente. O
estupro não é sobre sexo, lembram? Os agressores da jovem do Rio não são
monstros, doentes que precisam de tratamento. São pessoas normais.
Dizer que são doentes acaba tirando deles a culpa pelo seus
crimes. Segundo a vítima, cerca de 33 homens estavam ao seu redor quando voltou
a si. Nenhum foi capaz de dizer não. Seria muita coincidência que alguns
traficantes conhecessem 30 outras pessoas que tivessem a mesma doença e que
estavam coincidentemente todos livres por três dias para estuprar uma única
menina.
Viram-se para nós, mulheres, após a maciça culpabilização da
vítima e dizem: "Vocês não sabem como é a vida na favela. Essas meninas
fazem isso todo dia". Isso não quer dizer que ela mereceu ser violentada.
Eu também acredito nos relatos de jornalistas que trabalham
ou trabalharam junto às comunidades, que sabem que o problema lá é bem mais
embaixo. Que as milícias e os líderes protegem os moradores, e que quando o
governo retira as lideranças tradicionais de locais carenciados e coloca a sua
despreparada polícia - despreparada e perpetuadora da cultura do estupro,
porque o delegado que cuidava do caso perguntou à vítima se ela tinha o hábito
de fazer sexo grupal - a tragédia se torna mais eminente.
Nós sofremos um estupro coletivo toda vez que os homens
dizem que "ah, nem todos são estupradores". Que "homens de bem
nunca fariam isso". Que "não vamos generalizar, nem todo homem é um
estuprador em potencial". Quando se diz isso, estamos sendo violentadas,
ou no caso de muitas de nós, novamente violentadas por sermos desacreditadas,
desmentidas, e nosso relato relativizado.
Das analogias que mais gostei de ler nessa semana, destaco
três:
O pacote de MM's - se eu te oferecer um pacotinho de MM's,
mas te disser que dez deles estão envenenados, você arriscaria comer um porque
sabe que os outros não são?
Você vai numa floresta onde sabe que há ursos. Você
arriscaria se aproximar de um ou tentaria só observá-los à distância?
E a campeâ: se você fica sabendo que um caminho que você
pretende tomar é um campo minado, você arriscaria atravessar?
Fica a reflexão.
Fonte: Brasil Post
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