Peça publicitária da campanha “Verão” da Itaipava / Reprodução
De onde surge então o machismo das peças criadas pelas agências? Uma
nova pista surgiu quando através de um pedido feito em um grupo fechado no
Facebook, 15 mulheres de 20 a 40 anos, atuantes em áreas diversas da publicidade
contaram à Pública como é o ambiente em que trabalham, dentro das agências. Os
relatos, feitos sob anonimato pelo temor de perder o emprego, trazem casos de
abuso, assédio e violência psicológica que viveram ou ainda vivem em suas
carreiras.
Não existem muitos casos de
propagandas machistas no Brasil porque a publicidade brasileira é madura para
perceber que a pior coisa que pode fazer é irritar o consumidor, seja ele
mulher, homem ou criança. De qualquer forma, nós não temos uma declaração
oficial a respeito desse assunto”. Essa foi a resposta da assessoria de
imprensa do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), por
telefone, à pergunta da Pública referente a algumas peças publicitárias
lançadas no Carnaval e no Dia Internacional da Mulher, rechaçadas nas redes sociais
por serem consideradas machistas – algumas inclusive retiradas de circulação.
O
Conar é um órgão de autorregulamentação das agências publicitárias, encarregado
de receber denúncias de consumidores ou órgãos públicos e julgar se a
propaganda deve ser tirada do ar e a agência eventualmente advertida. Das 18
denúncias de machismo em propaganda recebidas em 2014 (pesquisadas pela Pública
no site do Conselho), 17 foram arquivadas, e apenas uma, da cerveja Conti, que
dizia em sua página do Facebook “tenho medo de ir no bar pedir uma rodada e o
garçom trazer minha ex” terminou com um pedido de suspensão e advertência da
agência que realizou a campanha.
A reportagem é de Andrea Dip,
publicada pela Agência Pública, 13-03-2015.
Outra campanha, do site de
classificados bomnegócio.com, em que o Compadre Washington chamava uma mulher
de “vem ordinária”, que havia recebido pedido de suspensão, foi posteriormente
reavaliada e o processo arquivado. As justificativas das decisões geralmente
são de que as propagandas não são machistas mas sim humorísticas, como esta de
março de 2014, referente a um spot de rádio da Itaipava: “Uma consumidora
paulistana entendeu haver preconceito machista em spot de rádio da cerveja
Itaipava. A anunciante e sua agência alegam o caráter evidentemente humorístico
da peça publicitária. O relator aceitou esse ponto de vista e recomendou o
arquivamento, voto aceito por unanimidade”.
A visão do Conar parece ser
compartilhada pela maioria das agências, criadoras das peças publicitárias.
Chamada a dialogar sobre a campanha “Verão” em que uma mulher chamada Vera é
impedida de passar por um homem na praia, ela tentando correr e ele barrando
sua passagem com o slogan “não deixe o Verão passar” ou em uma que ela leva e
traz cervejas para os homens só de biquíni enquanto eles olham para seu corpo e
chamam “vem Verão, vai Verão” ou ainda uma terceira em que a moça aparece de
biquíni com uma lata e uma garrafa de cerveja na mão com o slogan “faça sua
escolha” com a indicação de 300, 350 ou 600 ml – estes em uma alusão ao
silicone do seio da modelo, a agência preferiu se pronunciar apenas por e-mail
de sua assessoria de imprensa. “A Y&R, agência que criou a campanha,
respeita, bem como seu cliente, todas pessoas e em especial as mulheres. Em
momento nenhum faz qualquer tipo de alusão para desmerecer ou agredir quem quer
que seja e considera que o humor utilizado não tem tom de agressividade ou
qualquer juízo de valor”.
As entrevistas também foram
negadas pela agência F/Nazca Saatchi & Saatchi, responsável pela campanha
da Skol para o Carnaval que teve que mudar a campanha depois que seus cartazes
de “Deixei o não em casa” foram pichados com a frase complementar “mas trouxe o
nunca” por duas garotas de São Paulo, e pela Ajinomoto do Brasil, fabricante da
Sopa Vono, que teve sua fanpage no Facebook invadida por reclamações por peças
consideradas machistas e também teve de tirá-las do ar. Via assessoria de
imprensa a F/Nazca Saatchi & Saatchi e a Ajinomoto disseram que lamentam o
ocorrido, respeitam as mulheres, que o objetivo da peça era humorístico e que
estão repensando suas estratégias.
De onde surge então o machismo
das peças criadas pelas agências? Uma nova pista surgiu quando através de um pedido
feito em um grupo fechado no Facebook, 15 mulheres de 20 a 40 anos, atuantes em
áreas diversas da publicidade contaram à Pública como é o ambiente em que
trabalham, dentro das agências. Os relatos, feitos sob anonimato pelo temor de
perder o emprego, trazem casos de abuso, assédio e violência psicológica que
viveram ou ainda vivem em suas carreiras. Trechos destes depoimentos estão
destacados ao longo do texto.
“Antes de falarmos sobre
publicidade machista, temos que falar sobre machismo na publicidade” argumenta
a diretora de criação Thaís Fabris, idealizadora do projeto 65|10 que discute o
papel da mulher na publicidade. “O ‘65’ vem do dado de uma pesquisa do
Instituto Patrícia Galvão que aponta que 65% das mulheres brasileiras não se
identificam com a publicidade e com a forma com que são retratadas pela
publicidade. O número ‘10’ é de uma pesquisa que nós fizemos que mostrou que
apenas 10% dos criativos dentro das agências brasileiras são mulheres. E é na
criação que as campanhas são feitas”.
A gerente de planejamento Carla
Purcino concorda: “Quando a gente olha para a representatividade feminina na
publicidade percebe que é praticamente 50%. Mas a distribuição dentro dos
departamentos é muito diferente. Entende-se que a criação é um reduto masculino
e que a mulher é mais adequada para o departamento de atendimento. E na maioria
das vezes as mulheres do atendimento precisam ser bonitas para seduzir os
clientes. Quem trabalha no meio sabe de agências que já demitiram times
inteiros de funcionárias dessa área por não serem tão bonitas. ‘Contratem
garotas bonitas’. E isso obviamente influencia sobremaneira o resultado final”.
As duas disseram topar dar o nome por trabalharem hoje em agências mais
inclusivas mas Carla lembra que chegou a ouvir de um diretor de uma agência
onde trabalhou, após pedir a negociação de alguns direitos trabalhistas, que
“se ela fosse homem ele meteria a mão na sua cara”. Por outro lado, por se
colocar contra campanhas machistas nas agências onde trabalhou, ela já foi
chamada a ajudar quando uma delas foi atacada nas redes sociais: “Me pediram
ajuda para contornar a situação e a gente conseguiu resolver mas a coisa ainda
acontece muito de fora pra dentro. Por pressão das pessoas as agências são
obrigadas a resolver aquelas campanhas pontuais, a coisa não parte de dentro
pra fora. É algo como ‘ai, que gente chata’. E as publicitárias ainda têm muito
medo de se pronunciar. Elas normalmente se calam diante de piadas e colocações
machistas para não perderem seus empregos. Tem uma grande agência que entrega,
na festa de fim de ano, um prêmio chamado ‘calota de ouro’ referindo-se ao
volume da vagina da mulher. E para sobreviver, elas acabam entrando no jogo”.
Veja aqui, imagens encontradas da
festa da agência África em 2010.
“Trabalhei para marcas como
Brahma, Skol e Budweiser, em que o machismo impera em qualquer peça de
comunicação. Por mais que tentássemos abrandar ou mostrar um novo viés para a
campanha, sempre éramos obrigadas a seguir os conceitos e o lugar-comum das
marcas de cerveja em que a mulher é só mais um ser criado para satisfazer e
obedecer o homem”. R.J. 32.
Como diretora de criação, Thaís
diz que, para fazer parte do grupo, muitas mulheres também acabam se
masculinizando e até reproduzindo esse machismo. “É a maneira que encontram de
preservar suas carreiras. Emudecem e não questionam ou entram na lógica e
reproduzem”.
Não existem dados oficiais sobre
diferenças de salários e cargos na publicidade brasileira separados por gênero
mas no geral, segundo o PNAD de 2013, mulheres recebiam cerca de 26,5% a menos
que homens na mesma posição. E segundo a pesquisa “A mulher publicitária,
preconceito e espaço profissional: estudo sobre a atuação de mulheres na área
de criação em agências de comunicação em Curitiba” realizada em 2009, as
mulheres correspondiam a menos de 20% nas áreas de criação. Em sua conclusão, o
estudo aponta que muitas vezes as próprias mulheres contavam casos de
discriminação sem entender como tal: “Percebe-se, assim, que a discriminação
por parte do gênero masculino em relação ao feminino está tão enraizada na
profissão, que acaba sendo acatada como uma manifestação sociocultural natural
para as mulheres que trabalham dentro desses ambientes extremamente machistas.
O discurso dos indivíduos que atuam na área, afirmando que existem mulheres que
não servem para essa profissão por serem muito frágeis e fracas, é típico da
construção hierárquica desigual da sociedade, que surge de seus tempos mais
remotos.”
“Existe quase uma ordem natural
de colocar as mulheres nas áreas de atendimento e gerenciamento de projeto do
que em qualquer outra. existe uma série de piadas extremamente machistas e
misóginas que ‘brincam’ com essa relação de mulher sempre virar atendimento”.
F.B, 32.
Recomendações internacionais
A pesquisa “Representações das
mulheres nas propagandas na TV” citada pela Thaís no começo da matéria, foi
publicada em 2013 pelo Instituto Patrícia Galvão em parceria com o Data
Popular. De acordo com os dados obtidos 84% dos entrevistados (homens e
mulheres de todo o país) reconhecem que o corpo da mulher é usado para venda de
produtos; 58% entendem que as propagandas na TV mostram a mulher como objeto
sexual e – ao contrário do que acredita o Conar – 70% defendem a punição aos
responsáveis por propagandas que mostram a mulher de modo ofensivo.
O Brasil é signatário da
Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher,
realizada em 1995 em Pequim, que determina: “incentivar a participação das
mulheres na elaboração de diretrizes profissionais e códigos de conduta ou
outros mecanismos apropriados de auto-regulação, para promover uma imagem equilibrada
e não-estereotipada das mulheres na mídia; incentivar a criação de grupos de
vigilância que possam monitorar os meios de comunicação e com eles realizar
consultas, a fim de garantir que as necessidades e preocupações das mulheres
estejam apropriadamente refletidas neles; promover uma imagem equilibrada e
não-estereotipada da mulher nos meios de comunicação”.
Mas depois disso, o país já
recebeu recomendações internacionais para que preste mais atenção à forma como
retrata a mulher em suas propagandas. Em 2003, o relatório do comitê da Cedaw
(Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher do qual o Brasil é signatário) afirmava: “O Comitê está preocupado com a
evidente persistência de visões conservadoras e estereotipadas, comportamentos
e imagens sobre o papel e responsabilidades de mulheres e homens, os quais
reforçam um ‘status’ inferior das mulheres em todas as esferas da vida”. O
relatório também recomendava que fossem criados programas para fomentar “a
eliminação de estereótipos associados aos papéis tradicionais na família, no
trabalho e na sociedade em geral”; e que os meios de comunicação (mídia)
“fossem encorajados a projetar uma imagem positiva das mulheres e da igualdade
no ‘status’ e nas responsabilidades de mulheres e homens, nas esferas pública e
privada”.
“O diretor da agência onde eu
trabalhava diversas vezes insinuava que eu (por ser lésbica) queria ficar com
as meninas da equipe dele. Quando tinha Happy Hour da agência, ele me fazia
perguntas constrangedoras a respeito da minha vida pessoal e ainda ficava
perguntando o que eu gostaria de fazer com as meninas da equipe dele se elas me
dessem bola. Isso tudo é pouco. Diversas vezes esse diretor insinuou coisas pra
mim, fazia aqueles “elogios” desconfortáveis sobre roupa, corpo, olhar. Dizia
que se eu conhecesse como ele era, eu não seria lésbica”. P.R, 29.
De acordo com a Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher –
Convenção de Belém do Pará – de 1994 – o Brasil tem cinco formas de violência
contra a mulher tipificadas: sexual, física, moral, psicológica e econômica,
explica Raquel Marques, diretora da ONG Artemis. “Na Venezuela, a mesma
convenção deu origem a uma lei com 14 tipificações de violência contra a mulher,
inclusive a midiática. Porque você transmitir mensagens que reforcem
estereótipos ou reforcem violência causa dano coletivo e o dano coletivo vem da
naturalização dos comportamentos. A publicidade, mais do que nenhum outro
veículo traz expressões que se tornam até parte do nosso vocabulário, jingles,
chavões, é muito poderoso”.
“Cansei de contar quantas
infinitas vezes tive que dizer em voz alta para os diretores e supervisores o
quanto eles estavam sendo machistas com determinadas peças. Às vezes, nem só
nas campanhas mas também na conversinha de cozinha. Por eu sempre me posicionar
firmemente, eles me chamavam de feminazi e sempre que podiam, faziam piadas
machistas perto de mim para me ver reagir”. T.B. 29.
Incentivo à violência contra a
mulher
E essa violência pode ser
incentivada pela publicidade como observa Thaís Fabris. “Nós publicitários
temos que perceber a responsabilidade que temos enquanto criadores de
comunicação em massa. Não é porque uma coisa funciona, que as pessoas compram,
que a gente pode reforçar estes estereótipos muito perigosos. Quando a gente
fala em ‘mulher objeto’, essa mulher está lá na outra ponta, com o homem se
achando dono dela e acreditando que se aquele brinquedo não funcionar do jeito
que ele quer, ele pode quebrar. E você tem uma mulher morrendo a cada 90
minutos no Brasil. A gente está sim reforçando e habilitando esse
comportamento. A propaganda que pergunta ‘você está pronta pra ir pra praia?’
tem responsabilidade sobre a mulher que está morrendo em mesa de cirurgia ou
morrendo de anorexia! A propaganda é feita pra isso, pra influenciar decisões e
gerar a compra de produtos. Mas eu já disse e repito: antes de falar sobre
publicidade machista, precisamos falar sobre machismo na publicidade. Porque
ela existe, é real, acontece todos os dias dentro das agências”.
“Os meninos de uma agência na
qual trabalhei encontraram com uma modelo famosa numa padaria e voltaram
dizendo o quanto ela era gostosa, “rabuda” entre outros adjetivos horríveis.
Senti-me enojada com os comentários, a ponto de não aguentar e rebater dizendo
que mulher não era pedaço de carne. Isso foi suficiente para que todos se
unissem contra mim e começassem então um massacre machista. Tudo o que eu
falava era contestado. Todas as opiniões que eu dava eram minimizadas. Todos os
meus trabalhos eram “meia-boca”. Acho que minha estadia nessa agência, em
especial, foi uma das piores experiências profissionais que tive na minha
vida”. C.C, 34.
A reação delas
Esse machismo dentro e fora da
publicidade começa a criar novos nichos de atuação para as mulheres que se
levantam contra ele. A Think Eva, é uma empresa criada pelas amigas Juliana de
Faria (Jules), Maíra Liguori, e Nana Lima para prestar consultoria para marcas,
agências, instituições, ONGs e órgãos públicos que queiram dialogar com as
mulheres de um “jeito não ofensivo, mais efetivo e respeitoso”. Jules é a
idealizadora do Think Olga, site sem fins lucrativos que promove o
empoderamento feminino e responsável pela campanha Chega de Fiu Fiu. “As
mulheres não estão mais deixando passar. Muito porque hoje elas mesmas falam de
suas angústias e não dependem mais de uma revista feminina pra isso, por
exemplo. A gente vive um momento de transição e existe gente querendo entender
isso. Nós trabalhamos com essas pessoas” explica Jules. Apesar de ter sido
lançada há pouco mais de um mês, a empresa já recebeu vários pedidos inclusive
de palestras para funcionários de agências e revistas. O 65|10 da Thaís Fabris
também oferece serviços de consultoria criativa para empresas e coaching
profissional para criativos. Até uma cerveja feminista foi criada pelo grupo,
que pretende com isso levar a discussão pra mesa do bar. “Pensamos em criar com
a cerveja um ‘puxador de assunto’. Não é sobre supremacia feminina, é sobre igualdade
entre gêneros” define Thaís.
Fonte: Ihu
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