sexta-feira, 27 de março de 2015

A estagiária e o presidente

As mulheres são tratadas de forma excepcionalmente dura quando explodem escândalos sexuais. É como se fossem, de alguma forma, mais responsáveis que os homens pelo que ocorreu.

Por Ivan Martins

Todos conhecem alguém que já transou com o chefe. Acontece toda hora, com gente de todas as idades. Por paixão, por luxúria, por admiração e bebedeira. Até por interesse. É a coisa mais comum do mundo, embora às vezes termine em arrependimento e choradeira. Quando não em demissão.
O exemplo mais notório de quem transou com o chefe e se deu mal é Monica Lewinsky, estagiária da Casa Branca durante o governo de Bill Clinton. Ela se envolveu com o simpático, boa pinta e mulherengo presidente dos Estados Unidos. Fez sexo (oral) com ele na sede do governo, contou para uma amiga mal intencionada que gravou as conversas e assim virou notícia no mundo inteiro. Tinha 22 anos. Hoje tem 41. Se ela morrer aos 109 anos, talvez seja lembrada pelo que aconteceu em 1995. É a biografia que cabe numa frase: “Ah, a estagiária da Casa Branca”. Ponto final.
Ou talvez não.
Na semana passada, Monica deu uma palestra na internet em que analisa de forma emocional e direta a sua própria experiência.“Devo ser a única pessoa de mais de 40 anos que não tem saudades de ter 22”, ela diz, com ironia amarga. Envolvida numa disputa política entre os que tentavam defender e derrubar Bill Clinton do governo, Monica foi exposta, humilhada e execrada. Nos jornais, na TV e na internet, que acabara de nascer. Num dado momento de 1998, ela foi a mulher mais famosa do mundo, da forma mais negativa possível. Era a garota que guardou um vestido sujo de sêmen do presidente e que contou diante de um juiz que fizera com ele uma certa brincadeira com um charuto. “Fui a primeira vítima de bulling digital da história”, ela afirma. “Quase acabou com a minha vida, literalmente.” Aos 22 anos, quando todos cometem equívocos sexuais.
Ao assistir ao vídeo dela, tive duas sensações.

Pena e admiração pela moça, em primeiro lugar. É preciso coragem para evitar a tentação de abaixar a cabeça e passar o resto da vida se encolhendo depois de ser tão alvejada. Torço para que ela tenha um futuro melhor do que o passado. Em segundo lugar, tive medo. Fiquei com a impressão que se algo semelhante ocorresse amanhã, envolvendo Barack Obama e sua secretária, o escândalo e o massacre, sobretudo para a moça, seriam infinitamente maiores, por causa das redes sociais que não existiam há 17 anos.
Os homens, como aconteceu com Clinton, são atingidos no profissional, no político, no poder. Ele escapou de um impeachment por muito pouco, depois de mentir sob juramento a respeito da relação com Monica. Não é pouca coisa. Mas as mulheres, quando esse tipo de situação vem à tona, são atacadas pessoalmente, na sua honra e no seu caráter. Inclusive por outras mulheres. Viram objeto de escárnio público. Cola-se nelas uma mancha indelével. Como diz Monica no vídeo: “Virei puta, vagabunda, vadia, vaca”. Aos 22 anos.
Talvez seja apenas coincidência, mas ela nunca se casou e nunca conseguiu se dissociar do episódio – em parte porque, durante anos, tentou surfar na onda de celebridade que o escândalo ergueu, lançando marcas de roupas e fazendo programas de TV. Ganhou dinheiro, mas continuou uma pessoa controversa, para usar um adjetivo suave. Dez anos atrás, arrependida, mudou para a Inglaterra para tentar levar uma vida normal.
Com Clinton foi diferente. Ele terminou seu mandato, seguiu com seu casamento, é um honrado ex-presidente e sua mulher, Hillary, candidata à presidência nas próximas eleições americanas. Pergunta: será que há estagiários de 22 anos na Casa Branca? É de se imaginar como o mundo reagiria a algo desse tipo.
Desde o chamado Escândalo Lewinsky (por que não Escândalo Clinton, aliás?) o mundo não mudou para melhor. Pelo contrário. Nos últimos anos, nos tornamos especialistas em julgar e condenar em 140 caracteres – ou num post sarcástico no Facebook. Embora sejamos, como sociedade, mais liberais do que éramos no passado, inventamos um ambiente (a internet) onde podemos botar para fora, impunemente, nossos piores recalques, preconceitos e ressentimentos, ridicularizando e agredindo quem tem o azar de ser diferente, agir fora da norma ou, simplesmente, errar. Nos tornamos uma horda de bilhões de fofoqueiros online e as redes sociais nos permitem cometer crimes perfeitos contra a reputação alheia. Se a história de Bill e Monica caísse na rede hoje, talvez ela fosse levada ao suicídio – e ele, provavelmente, perderia a presidência.
Faz sentido? Não.
Quando se olha o que os dois fizeram, é ridículo. Sexo entre um homem de 49 anos poderoso e uma jovem deslumbrada de 22 é a história mais antiga do planeta. Deveria terminar com um ou dois corações partidos, mais nada. Material afetivo para construir experiências e biografia. Talvez para abalar ou destruir um casamento. De qualquer forma, coisa que se resolve entre adultos que erram ou acertam em consentimento mútuo, na intimidade. Não em público. Mas entendeu-se na época - e duvido que fosse diferente hoje -, que os dois haviam cometido uma gravíssima delinquência moral, que merecia ser exposta na televisão e na internet 24 horas por dia, sete dias por semana. O equivalente “civilizado” da fogueira e do apedrejamento.
Só eu acho essa reação histérica à vida sexual dos outros uma das coisas mais detestáveis da nossa vida pública? Só eu acho que deveríamos parar com isso? Imagino que mulheres que eu amei poderiam ser atiradas num mar de lama por ato semelhante. Imagino que garotas ingênuas e apaixonadas poderiam sofrer humilhações terríveis por fazer algo parecido. Imagino que homens de bem poderiam ser destruídos por manter relações sexuais clandestinas no trabalho ou na vida pública.
Faz sentido? Eu juro que não.
Por isso, fui de alguma forma tocado pelo o vídeo de Monica Lewinsky. E por isso eu o recomendo. Embora ela não seja santa e nem somente a vítima que faz parecer, seu depoimento nos ensina coisas importantes sobre o direito de cometer erros de julgamento e mesmo de caráter, e de sobreviver a eles. Também nos chama a atenção para a forma dura como as mulheres são tratadas em escândalos sexuais, como se fossem de alguma forma mais responsáveis por eles do que os homens envolvidos. Seu vídeo ajuda a pensar sobre o que fazemos na internet para tornar pior a vida dos outros – curtindo, compartilhando, retuitando vídeos e histórias que destroem reputações e existências de gente jovem e inexperiente. De mulheres, na maioria das vezes, com pouco mais ou pouco menos que 22 anos. Como Monica.
Não seria ruim se parássemos com isso - com a fofoca, com os julgamentos, com as intromissões na vida das pessoas e com os ataques online. Já é hora de Monica Lewinsky e todas as outras Mônicas do mundo serem deixadas em paz.


Fonte: Revista Época

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