A delegada do caso do estupro
coletivo no Rio, Cristiana Bento. EDUARDO ZAPPIA
A delegada diz que faltam
políticas assistenciais para evitar que a polícia enxugue gelo.
Cristiana Bento se transformou
numa figura pública assim que assumiu a investigação do estupro coletivo de uma
adolescente no Rio no final de maio. O caso, que ganhou repercussão
internacional, foi, sem dúvida, o mais midiático da sua carreira, mas está
longe de ser o mais cruel. Durante o inquérito, com a opinião pública cobrando
novidades a cada dia, a delegada acabou ignorando dezenas de ligações para se
concentrar, estendeu a jornada na delegacia, esqueceu de comer e até do próprio
aniversário. Após indiciar sete pessoas pelo crime, Bento se diz satisfeita e
confessa alívio. “Combati o bom combate”, disse ela, quatro quilos mais magra,
numa segunda-feira em sua sala na delegacia da Criança e Adolescente Vítima, no
centro do Rio. Seu escritório, pintado de amarelo e sem janelas, tem uma mesa,
dois assentos e um armário, uma estrutura mais precária do que minimalista,
tanto que a impressora fica em cima de uma cadeira. Bento, como o resto de servidores
públicos do Estado, ainda não recebeu seu salário completo do mês de maio. Mas
não desanima por isso. Não se importa de perder folgas para salvar mais alguma
criança.
Aos 42 anos, ela entrou para a área
por afinidade com crianças e adolescentes. Tornou-se ávida leitora de tudo que
é publicado sobre violência sexual e pedofilia e não pode evitar chorar com
muitos dos seus casos. Não por acaso, ela foi responsável por uma guinada na
investigação que, inicialmente, parecia ter o mesmo destino de outras que
apuram casos de estupro, onde a vítima é questionada e até culpada. Bento
entrou ciente que a briga num crime do gênero é desigual e que a voz de quem
sofreu o estupro tende a ser sufocada.
Pergunta. O caso do estupro da
adolescente no Rio tornou-se emblemático pelo seu enredo inicial que parecia
fragilizar a versão dela, e pelo seu desfecho rápido depois que você assumiu o
caso, assegurando que se tratava de um estupro coletivo. Você acha que ajudou num
ponto de inflexão na sociedade brasileira?
Resposta. O caso trouxe várias
discussões e, sobretudo, o que é realmente a cultura do estupro: agora o Brasil
inteiro está falando sobre isso. Mas estou achando pouco ainda, porque as
pessoas continuam sem ter essa consciência. As pessoas continuam colocando a
culpa na vítima, até na polícia existe isso: “como você estava vestida?”, “você
estava nessa hora da madrugada andando na rua?”. Eu fico sempre revoltada
quando ouço dizer que o estuprador é doente, o que depois é razão de diminuição
de pena e até de absolvição. Eu tenho esperança de que haja uma mudança. O
Poder Público deve alertar para isso, ele tem que dar mais estrutura, tem que
investir na educação.
P. Esse episódio teve várias
camadas complexas: uma menina que conhecia os jovens do tráfico, que havia
feito sexo consensual com outro rapaz ao lado do namorado antes do estupro
coletivo, e que já tinha um filho de um traficante. Se não houvessem as imagens,
ele teria sido descartado como crime sexual?
Essa menina até os 12 anos era
uma excelente aluna, uma ótima filha. Com 12 anos ela engravidou de um
traficante, foi estuprada, e ficou viciada em drogas. O mundo dela pirou.
Precisava de ajuda.
R. As imagens foram essenciais,
até para servir de escudo para essa menina. Se essas imagens não vêm a público,
acho que nem ela teria essa consciência da violência que ela sofreu. Mas antes,
não só ela, várias meninas da comunidade não têm consciência do abuso. E eles,
que cometem o crime, não admitem que tenha sido abuso. Eles falam que a menina
é "piranha". No caso dessa menor, ela é uma menina negligenciada, que
não teve o apoio necessário, é uma adolescente que está ainda em
desenvolvimento, e ela não teve o apoio da família nem o apoio da sociedade.
Essa menina até os 12 anos era uma excelente aluna, uma ótima filha. Só que
começou a andar com más companhias e começou a ir no baile funk. Com 12 anos
ela engravidou de um traficante, foi estuprada, e ficou viciada em drogas. O
mundo dela pirou. Precisava de ajuda. Eu consigo ver essa menina como uma
vítima, e sinto muita pena de como as pessoas falam dela, de como as pessoas
tiram como parâmetro [para julgar] o que elas fariam. Eu não posso esperar que
uma menina de 14 anos tenha o mesmo pensamento que eu.
P. O primeiro delegado a assumir
o caso duvidou do estupro, enquanto você sempre teve claro que o crime tinha
acontecido. Um dia antes de você assumir, inclusive, o chefe da polícia havia
dito que o laudo iria “contrariar o senso comum”. O que aconteceu para que essa
percepção dele fosse desfeita?
R. Eu acho que isso depende da
forma como cada um trabalha. Eu trabalho sobretudo com estupros, mas não tenho
a expertise com crimes informáticos ou hackers. Acho que o delegado Alexandre
[Thiers, da delegacia de Crimes Informáticos e o primeiro a assumir a
investigação] é muito competente no trabalho dele, mas na parte do abuso sexual
ele não teve o feeling e deixou-se levar pelos questionamentos que a sociedade
também estava fazendo.
P. A sua chegada mudou
completamente a abordagem do crime. A impressão que dá é que há despreparo
institucional para o atendimento de crimes sexuais. Você concorda?
R. Há um despreparo sim, mas não
é algo geral, não. As delegacias de atendimento a mulher tratam esses casos. Eu
venho daí e foi aí que comecei a entender os abusos e que precisavam de um
tratamento diferenciado.
P. A versão inicial dos mais de
30 que foi descartada e que você explicou ter sido uma falsa memória em função
do trauma da jovem, fez muita gente atacar a vítima. Essa confusão é comum?
Essa falsa memória fragilizou a versão dela?
R. Ela estava desacordada, estava
drogada. Num momento de lucidez, e até no vídeo, ela ouve “mais de 30
engravidou”. Na minha percepção, quando ela é perguntada sobre quantos foram
ela fala 33 porque ela tinha ouvido. Esse caso tem alguns elementos
interessantes. Quando perguntamos para ela se ela tinha bebido, tinha cheirado,
ela negou. E eles, ao contrário, disseram que ela tinha bebido e cheirado.
Isso, tecnicamente, com um advogado de defesa, vai te dizer que eles trocaram
os argumentos.
P. Por quê?
R. Ela achava que tinha que falar
que ela não bebeu para aquilo ser considerado um estupro. Porque ela acha que
para ser estupro ela tinha que ter uma conduta perfeita. Mas um advogado de
defesa lhe recomendaria o contrário, porque o estupro está nessa situação de
indefesão que ela tinha. Na contramão, a defesa deles para fugir do estupro
recomendaria dizer que ela não estava drogada, que não estava vulnerável. Eles
trocaram as bolas. O último depoimento que eu peguei do Rafael [Belo, um dos
indiciados que aparece em uma das fotos da menor desacordada], ele me disse que
ela estava dormindo, mas que quando ela acordou eles pararam de mexer nela.
Quando lhe perguntei se a menina fosse sua filha ele disse: “Deus me livre”.
P. Essa foi uma das coisas que
mais te surpreendeu, perceber que os agressores não consideravam errado o que
eles fizeram?
R. Em todo momento falavam a
mesma coisa, que eles não tinham feito nada. O Raí [que vai responder pelos
crimes de estupro de vulnerável, produção e transmissão de imagens
pornográficas da adolescente] chegou na delegacia dizendo: “Eu estou tranquilo
porque eu não estuprei ninguém”. É algo cultural, isso tem que vir da escola.
Você tem que ir no ensino fundamental, explicar o que é o estupro, como que um
homem deve se comportar...
O bem maior de adolescente
estuprada era o celular, não era sua dignidade sexual. E isso é muito triste
P. Essa repercussão pode ajudar a
mudar a consciência nas favelas, onde o conceito de abuso é entendido de forma
mais difusa?
R. Eu acho que sim. Porque essa
menina, por exemplo, depois de tudo o que tinha acontecido, ela voltou na
favela para falar com o chefe do tráfico e pedir o celular dela de volta. Eu
perguntei para ela: “depois de tudo o que você passou, por que você voltou, não
teve medo?”. Ela me respondeu que não, que ela tinha que pegar seu celular, que
a avó ainda estava pagando o aparelho. Ela também contou que um amigo dela
mostrou o vídeo do estupro para ela, e a resposta dela foi: “Não quero nem
saber, eu quero meu celular”. O bem maior dela era o celular, não era sua
dignidade sexual. E isso é muito triste, porque as meninas têm essa visão e não
é porque eles sejam traficantes que eles têm que fazer e você tem que ficar
calada. Nessa mesma comunidade, no mesmo local, uma menina de 16 anos foi se
prostituir com um traficante e havia um outro que também queria ter sexo com
ela. Como ele estava fedendo, ela falou que não queria dormir com ele. Ele
pegou a arma e deu um tiro na cabeça dela. O aviso foi: “Você não pode vir aqui
e não querer fazer sexo com a gente”. A comunidade age conforme a lei deles.
P. Você acabou abrindo guerra ao
tráfico neste caso? Não teme pela sua vida?
R. É do jogo. Eles são
traficantes e nós somos policiais. Eu tomo meus cuidados, mas é meu trabalho.
P. Este foi o caso mais chocante
de sua carreira?
R. Houve outro que me chocou
ainda mais, que encerrei umas duas semanas antes do estupro coletivo. Foi o de
um advogado de renome e a professora de uma creche. Ele aliciava meninas com
ajuda dessa professora. Quando chegamos no escritório dele e abri o computador
tinha uma quantidade enorme de imagens de crianças e adolescentes, fazendo sexo
com adultos. Era uma coisa horrorosa! Ele aparecia num vídeo em um motel com
uma menina de uns nove anos que estava fazendo sexo oral nele e uma mulher ao
lado. Vimos pelo Facebook dele que essa mulher era a professora de uma creche,
que mandava para ele as fotos das meninas, na hora que tomavam banho. Ele
chegou a pedir para trazer uma menina específica [de quatro anos] para ele. E a
professora começou a fazer amizade com a mãe dessa menina para ganhar sua
confiança e poder levar a criança ao advogado. Aquilo me chocou muito. De
quantas crianças esses dois conseguiram estragar a vida? Mas eu fiquei feliz
porque, pelo menos, eu salvei aquela menina que ele havia encomendado à
professora.
P. Há mulheres que se sentem
culpadas quando são vítimas de abusos, como no caso da adolescente que até
evitou dizer que tinha consumido drogas. Isso é considerado algo comum?
R. Não é só a mulher, a criança
também. As crianças vítimas de abuso, a primeira coisa que elas pensam é que
são culpadas. Os próprios pais colocam isso. Uma mãe chegou a dizer para mim
que falava para sua filha: “se alguém mexer na sua periquita, eu vou te bater”.
Num dado momento, o cara mexe e o que a criança pensa é que a culpa é dela por
ter permitido, e pensa que se ela falar a mãe vai bater nela. Às vezes passa
muito tempo até elas serem conscientes dos abusos e resolverem denunciar. Mas
uma criança não esquece, aquilo deixa marca para o resto da vida. Tem que se
falar, porque são muito alarmantes os casos de abuso sexual.
Há uma subnotificação. Os dados
de abuso sexual a crianças não correspondem à realidade, estão muito longe.
P. Existe uma estatística
nacional sobre o abuso à criança?
R. Eu não tenho aqui, mas a gente
sabe que há uma subnotificação. Os dados não correspondem à realidade, estão
muito longe. A lesão corporal da violência doméstica contra a mulher, ela já é
subnotificada e as mulheres não vão à delegacia para denunciar. Mas eu acho que
no caso de violência sexual com criança e adolescente a subnotificação é muito
maior porque não deixa vestígios, a criança não fala, e eu acho que os casos
são muito maiores. E quando eu vou dar palestra sobre isso, em igreja, em
escolas, quando a gente começa a falar de abuso, vejo adolescentes com os olhos
cheios de lágrimas. E aí eu penso: "Essa menina foi abusada e não
fala".
P. E quando fala, é a palavra de
um contra o outro? É difícil provar um estupro?
R. O abuso não deixa vestígios
[físicos], uma língua não deixa vestígios, enfim, se a menina falar que foi
abusada, o abusador vai falar que não. Não tem testemunhas, o exame de corpo de
delito vai dar negativo, e aí? Podem ser absolvidos? Pode né...
P. Mas há possíveis mudanças de
leis que possam facilitar a vida da vítima?
R. Já vi várias jurisprudências
que entendem que a palavra da vítima tem uma importância muito maior. Quando a
criança é abusada, ela não sabe. Ela nunca viveu violência, ela não sabe o que
é aquilo, nunca vivenciou aquilo, como ela vai contar detalhes?
P. Houve o caso de um delegado no
interior de São Paulo que estuprou a neta, foi preso, e depois um juiz o soltou
por achar que não estava claro que ela resistiu...
R. Você vê como tem machismo
também no Judiciário...
P. No caso do estupro coletivo,
os traficantes podem passar anos antes de serem presos em outra operação ou
serem imputados. Não tem esperança que possa ser uma coisa mais rápida neste
caso?
R. Eles estão sendo muito
procurados. O Da Russa, o Canário e o Perninha, o adolescente, têm mandados
abertos por outros crimes de tráfico, de homicídio e ato infracional. Todo
mundo quer pegar o Da Russa, até porque é o homem lá de frente no morro. O dia
que pegar, a gente vai ouvir. Traficantes não falam em depoimento, é muito
difícil. A minha esperança é se a gente pegar uma outra pessoa, ouvir algum
fato novo depois que isso acalmar
P. Você abandonou tudo durante os
20 dias do inquérito, né?
R. Eu sou caxias com o trabalho,
eu fico, venho todo dia... Eu ouço “poxa, você pode tirar um dia de folga, você
é chefe, né?” Mas não, porque eu fico pensando assim: "se eu tirar um dia
de folga, é um inquérito a menos de estupro que eu relato, mais uma vida que
está ali e que está esperando uma resposta, e eu não vou dar resposta porque eu
estou de folga passeando no shopping?" Não é justo. Eu não consigo abraçar
tudo porque eu sou uma só, mas eu dou o meu melhor. Como nesse caso, eu tenho
minha consciência tranquila que eu fiz o melhor. Eu tentei dar a resposta mais
justa. Pode ter algum erro? Pode. A gente é passível de erro, mas eu estou
tranquila e minha equipe também, eles foram espetaculares.
P. Num ambiente tão masculino
como é o da polícia, você sente que você teve mais dificuldade para chegar até
onde você está por ser mulher?
R. Antes de eu entrar para a
polícia eu achava que eu teria mais dificuldade. Eu acho que o machismo é
criado pela sociedade. A gente recebe algumas críticas, como no caso do
estupro, mas eu pensava assim: “Eles estão falando isso porque eu sou mulher,
se eu fosse um homem eles não iam falar”. Mas, eu não ligo.
P. Você não se deprime
acompanhando estes casos? Como você desconecta? Tem crises de choro?
R. Quando eu chego em casa parece
que eu me blindo, não deixo passar. Mas aqui eu já chorei várias vezes com
depoimentos, com a própria menina mesmo... Choro com elas, abraço e choro
junto. Uma vez uma menina de cinco anos foi estuprada pelo companheiro da mãe.
Quando você pega o laudo e você vê que a menininha “não é mais virgem” pensa:
"Como assim? Não tem nem corpo!". Eu tomei muito carinho por essa
menininha. Nisso, eu prendi a mãe também, que era viciada em drogas e estava
com um mandado de prisão por tráfico. Quando a gente vê um mandado, a gente tem
que cumprir. E prendi o padrasto também. Quando a viatura veio buscar a mãe,
ela viu a filha dela no meu colo e nisso ela me deu uma carta, em que dizia
isso assim: “eu tinha tudo para te odiar, mas eu não te odeio. Porque quando eu
vi a minha Manuela no seu colo com carinho, me senti radiante e feliz. E
agradeço a Deus por colocar você no meu caminho para salvar minha filha desse
monstro”.
P. Como você chegou nessa área,
de defesa da criança e o adolescente?
R. A gente acaba se direcionando para
a área que tem mais a ver com seu perfil. Eu não consigo me ver em outra
delegacia se não for a da criança. Eu tenho um amor tão grande pelas crianças,
e acho que são o futuro e que temos que cuidar delas. Tem que dar carinho, tem
que dar educação, tem que dar desenvolvimento para as crianças. A polícia não
pode trabalhar sozinha, se a gente não tiver uma estrutura, se não tiver o
apoio do Conselho Tutelar, uma estrutura de assistência social, a escola para
abraçar essas crianças, a polícia vai enxugar gelo.
Fonte: El Pais
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