terça-feira, 28 de junho de 2016

Como o mito do amor romântico pode arruinar sua vida amorosa

O conceito de “amor ideal” foi criado pela cultura ocidental; mesmo assim, perseguimos o inatingível, nos frustramos e nos sentimos inadequados quando não o alcançamos.


Por Ana Freitas Do Nexo

Em 1997, o psicólogo social Arthur Aron, da Universidade Estadual de Nova York, desenvolveu e publicou um estudo em que afirmou ser possível fazer com que duas pessoas desconhecidas se apaixonassem uma pela outra em poucas horas.

Ele mesmo teria atingido resultados positivos em laboratório. A técnica era relativamente simples: Aron desenvolveu 36 perguntas que os dois indivíduos deveriam responder um para o outro. No fim do questionário, os dois deveriam se encarar em silêncio por quatro minutos contados no relógio. E voilà: paixão enlatada, segundo ele.

As 36 perguntas são simples, mas obrigam os indivíduos a se exporem emocionalmente e pessoalmente. Vão desde “Se você pudesse jantar com qualquer pessoa do mundo, quem seria?” até “Qual o papel do amor e do afeto na sua vida?”.

O estudo conduzido por Aron é baseado na ideia de que demonstrar vulnerabilidades mútuas é capaz de cultivar proximidade e intimidade. O pesquisador identificou um padrão na construção de relacionamentos amorosos estáveis: transparência, entrega e sinceridade constantes, crescentes, recíprocas e pessoais. A lista de perguntas desenvolvida por ele tem como objetivo conduzir essa troca.

“Todos nós temos uma narrativa sobre nós mesmos que apresentamos para os outros, mas as perguntas do Dr. Aron fazem com que seja impossível usar essa narrativa.” Mandy Len Catron

A proposta de Aron ganhou manchetes em 2015, quando o jornal “The New York Times” publicou o texto de uma colunista, Mandy Len Catron, que disse ter se apaixonado por alguém usando a lista de perguntas em um encontro.

Com ela, voltaram ao debate os questionamentos em torno da ideia de amor romântico. Se vulnerabilidade mútua pode levar à paixão, onde fica a ideia de uma alma-gêmea? Na desconstrução do conceito de amor ideal ao qual nos agarramos culturalmente todos os dias, há a possibilidade de entender as frustrações com a vida amorosa (ou a falta dela) e o número cada vez mais alto de divórcios nas sociedades ocidentais.

A manufatura do amor
No ocidente, a noção moderna de amor romântico conceitua uma sensação mágica, incomparável. Geralmente, ele é descrito como um encontro de almas que acontece por pura sorte – predestinação, talvez – que responde às angústias e aos desejos mais básicos da vida.

Foi a idealização de Rousseau que reuniu em uma só instituição os conceitos de amor, sexo, felicidade e casamento. Antes dele, tudo era vendido separadamente.

O amor romântico idealizado se apresenta como a resposta à dúvida principal sobre o sentido da existência. Há, fundamentalmente, a ideia de completude: sem o outro, seremos eternamente incompletos.

Essas sensações não foram inventadas. Essa descrição do amor apareceu repetidas vezes ao longo da história. É possível encontrá-la, primeiro, na definição de amor descrita pelo filósofo Platão, na Grécia antiga, e em outras descrições no Império Romano, no Japão Feudal e na Grécia.

No fim do século 17, a literatura ganhou outras narrativas mais contundentes que exaltavam o amor romântico. Os exemplos mais emblemáticos são o de Tristão e Isolda e Romeu e Julieta, que descrevem histórias de amantes que se viam diante de obstáculos – e essas impossibilidades eram um combustível para esse amor.

Até então, o amor romântico que tomamos como regra no ocidente aparecia somente em narrativas pontuais. O conceito do casamento, em si, não envolve “amor” na concepção. Casamentos foram criados para serem instituições econômicas, alianças forjadas para fortalecer e concentrar poder ou dinheiro.

“Antes, as pessoas não se casavam por amor. Isso é uma coisa recente já que casamento era uma coisa muito séria para se misturar com amor.
Regina Navarro Lins, Psicanalista e escritora especializada em relacionamentos

Foi o romantismo, resumido nos ideais da Revolução Francesa, que culminou no surgimento da ideia de que o amor avassalador, único e mágico era um direito e um dever de todo ser humano, uma parte fundamental – talvez nossa única real motivação. Um dos filósofos responsáveis por essa mudança de pensamento foi o francês Jean Jacques Rousseau.

O projeto do filósofo tinha como base a ideia tradicional de família como a conhecemos. Ele criticava relações baseadas em perpetrar poder ou fortunas, que para Rousseau, impediam a construção de uma sociedade altruísta e ideal.

O filósofo acreditava que o amor conjugal – a constituição de uma família baseada no amor romântico – era o único caminho para que indivíduos se dispusessem a sacrificar os próprios interesses para o benefício comum, resultando em uma sociedade melhor.

A relação conjugal defendida por Rousseau previa que o amor e o sexo andassem juntos, porque a busca de sexo fora do casamento significava a busca por valores egoístas, como conquista e vaidade, e não a felicidade alheia e o benefício da sociedade.


A idealização de Rousseau reuniu em uma só instituição os conceitos de amor, sexo, felicidade e casamento. Antes dele, tudo era vendido separadamente.

Já na Revolução Industrial, mesmo com a formação da família nuclear, formada por pai, mãe e filhos, o casamento ainda não tinha muito a ver com amor. A propagação definitiva do amor romântico idealizado veio com o surgimento da cultura de massa da televisão e do cinema, que transformou em produto o mito do amor romântico: isso começou nos anos 1940, e bons exemplos são filmes como “O Vento Levou” e “Casablanca”.

Pela primeira vez, uma sociedade inteira – a ocidental – passou a acreditar que o amor romântico, culminando em um relacionamento e depois em um casamento feliz, duradouro, monogâmico e sexualmente ativo, era a forma ideal de se relacionar com o outro.

Até hoje, a cultura pop – dos filmes à música, passando pela literatura e pela internet – é profundamente baseada nesses ideais.

Uma conta difícil de fechar#

É fácil constatar que essa idealização está fadada a criar frustração. O conto de fadas ainda é usado, consciente ou inconscientemente, como referencial para qualquer relacionamento amoroso na sociedade ocidental.

“Presumimos que, comparado ao amor romântico, qualquer outro tipo de amor entre duas pessoas que se relacionam de maneira amorosa seria frio e insignificante”, escreve o psicanalista Robert A. Johnson, no livre “We – A Chave da Psicologia do Amor Romântico.

O mito do amor romântico idealiza o outro e atribui a ele característicasinexistentes. O conceito sugere que se você se apaixona por alguém, essa é a pessoa que vai suprir todas as suas necessidades.

Daí a ideia de que o parceiro no qual devemos mirar é alguém que provoca uma paixão avassaladora que nos faz sentir completo, nos satisfaz sexualmente, desperta em nós a vontade de morar junto para o resto da vida e dividir todos os aspectos dela – negócios, patrimônio, amigos e aspirações – só com aquela pessoa, além de ter filhos, enquanto isso nos mantendo feliz todo esse tempo.

Todos os especialistas em comportamento e psicologia social concordam: é responsabilidade demais para colocar sobre uma pessoa só. Não há pessoa ou fenômeno nenhum capaz de fazer todas essas coisas.

No entanto, porque o conceito é dado como real e possível, nos cobramos a vida toda para buscar, encontrar e sentir o tal amor romântico ideal. E se alguma dessas coisas dá errado no processo, nos sentimos inadequados, fracassados ou culpamos o companheiro.

“Quando não realizamos o ideal imaginário do amor, buscamos explicar a impossibilidade culpando a nós mesmos, aos outros ou ao mundo, mas nunca contestando as regras comportamentais, sentimentais ou cognitivas que interiorizamos quando aprendemos a amar. […] o amor-paixão romântico encampou a ideia de felicidade emocional, criando seus párias e cidadãos de primeira classe.”
Jurandir Freire Costa, Psicanalista e autor do livro Sem Fraude Nem Favor: Estudos Sobre o Amor Romântico

A ideia do amor romântico considera que paixão e amor são sentimentos permanentes, duradouros e que simplesmente surgem do nada. A ciência já sabe alguma coisa sobre o que chamamos de paixão: trata-se de um fenômeno neuroquímico caracterizado pela influência de substâncias como adrenalina, dopamina e serotonina no cérebro e no corpo.

Essas substâncias são liberadas por glândulas quando nos relacionamos de alguma forma com alguém por quem nos sentimos fisicamente ou afetivamente atraídos.

O contato físico e os estímulos mentais trocados com o outro alimentam a liberação dessas substâncias, mas calcula-se que o fenômeno químico – que já foi até comparado ao efeito de drogas, porque vicia – possa durar de poucos dias a até um ou dois anos. E só.

“Este conjunto psicológico inclui uma exi­gência inconsciente de que o nosso amante ou cônjuge nos alimente continuamente com essa sensação de êxta­se e de emoção intensa.”
Robert A. Johnson, No livro “We – A Chave da Psicologia do Amor Romântico”

As 36 perguntas desenvolvidas pelo psicólogo Arthur Aron são um atalho para gerar intimidade e fomentar a liberação de algumas dessas substâncias químicas.

Mas o estímulo inicial só pode levar a um relacionamento e à construção de um afeto real caso os dois envolvidos no questionário escolham continuar a troca e a construção desse afeto.

Quando não estamos mais tomados pelo coquetel de hormônios e ficamos diante das dificuldades cotidianas impostas pela convivência com o outro, o relacionamento foge do esperado. A lista do amor romântico ideal não prevê a necessidade de esforços, construção diária, concessões e nem contempla os defeitos do outro como obstáculos.

“O amor não aconteceu simplesmente para nós. Estamos apaixonados por que escolhemos isso.”
Mandy Len Catron, Colunista do The New York Times, sobre as 36 perguntas para se apaixonar

Pelo mesmo motivo, quando um companheiro falha em suprir algum item da lista do amor romântico ideal, identifica-se que não pode ser amor verdadeiro e há a sensação de que o relacionamento é disfuncional. Isso vale para tradições como dividir a casa com o cônjuge, ser monogâmico e ter filhos, por exemplo.

Na mesma linha, qualquer outro formato de relacionamento – cônjuges que não vivam na mesma casa, casais que não planejam ter filhos, relacionamentos abertos – ganham status de tabu. Se há uma cultura de massa vendendo uma lista de critérios para ser feliz em um relacionamento, é desagradável ser confrontado com pessoas que se dizem felizes mesmo depois de terem escrito uma lista nova.

“O condicionamento cultural é muito forte. Chegamos à idade adulta sem saber se nossos desejos são nossos ou se aprendemos a desejá-los. Mas estamos vivendo um modelo [o amor romântico idealizado] que não dá conta da realidade contemporânea, que não dá mais respostas satisfatórias”, teoriza Regina Navarro Lins, psicanalista e escritora especializada em relacionamentos em entrevista ao Nexo. “

Para ela, a cultura ocidental nas últimas duas décadas está passando por um momento de busca por individualidade. “Hoje, a grande viagem do ser humano e do jovem é estar dentro de si mesmo, investir em seu potencial, suas habilidades, se conhecer”, explica.


Fonte: Geledes

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