O conceito de “amor ideal” foi
criado pela cultura ocidental; mesmo assim, perseguimos o inatingível, nos
frustramos e nos sentimos inadequados quando não o alcançamos.
Por Ana Freitas Do Nexo
Em 1997, o psicólogo social
Arthur Aron, da Universidade Estadual de Nova York, desenvolveu e publicou um
estudo em que afirmou ser possível fazer com que duas pessoas desconhecidas se
apaixonassem uma pela outra em poucas horas.
Ele mesmo teria atingido
resultados positivos em laboratório. A técnica era relativamente simples: Aron
desenvolveu 36 perguntas que os dois indivíduos deveriam responder um para o
outro. No fim do questionário, os dois deveriam se encarar em silêncio por
quatro minutos contados no relógio. E voilà: paixão enlatada, segundo ele.
As 36 perguntas são simples, mas
obrigam os indivíduos a se exporem emocionalmente e pessoalmente. Vão desde “Se
você pudesse jantar com qualquer pessoa do mundo, quem seria?” até “Qual o
papel do amor e do afeto na sua vida?”.
O estudo conduzido por Aron é
baseado na ideia de que demonstrar vulnerabilidades mútuas é capaz de cultivar
proximidade e intimidade. O pesquisador identificou um padrão na construção de
relacionamentos amorosos estáveis: transparência, entrega e sinceridade
constantes, crescentes, recíprocas e pessoais. A lista de perguntas
desenvolvida por ele tem como objetivo conduzir essa troca.
“Todos nós temos uma narrativa sobre nós mesmos que apresentamos para
os outros, mas as perguntas do Dr. Aron fazem com que seja impossível usar essa
narrativa.” Mandy Len Catron
A proposta de Aron ganhou
manchetes em 2015, quando o jornal “The New York Times” publicou o texto de uma
colunista, Mandy Len Catron, que disse ter se apaixonado por alguém usando a
lista de perguntas em um encontro.
Com ela, voltaram ao debate os
questionamentos em torno da ideia de amor romântico. Se vulnerabilidade mútua
pode levar à paixão, onde fica a ideia de uma alma-gêmea? Na desconstrução do
conceito de amor ideal ao qual nos agarramos culturalmente todos os dias, há a
possibilidade de entender as frustrações com a vida amorosa (ou a falta dela) e
o número cada vez mais alto de divórcios nas sociedades ocidentais.
A manufatura do amor
No ocidente, a noção moderna de
amor romântico conceitua uma sensação mágica, incomparável. Geralmente, ele é
descrito como um encontro de almas que acontece por pura sorte – predestinação,
talvez – que responde às angústias e aos desejos mais básicos da vida.
Foi a idealização de Rousseau que
reuniu em uma só instituição os conceitos de amor, sexo, felicidade e casamento.
Antes dele, tudo era vendido separadamente.
O amor romântico idealizado se
apresenta como a resposta à dúvida principal sobre o sentido da existência. Há,
fundamentalmente, a ideia de completude: sem o outro, seremos eternamente
incompletos.
Essas sensações não foram
inventadas. Essa descrição do amor apareceu repetidas vezes ao longo da
história. É possível encontrá-la, primeiro, na definição de amor descrita pelo
filósofo Platão, na Grécia antiga, e em outras descrições no Império Romano, no
Japão Feudal e na Grécia.
No fim do século 17, a literatura
ganhou outras narrativas mais contundentes que exaltavam o amor romântico. Os
exemplos mais emblemáticos são o de Tristão e Isolda e Romeu e Julieta, que
descrevem histórias de amantes que se viam diante de obstáculos – e essas
impossibilidades eram um combustível para esse amor.
Até então, o amor romântico que
tomamos como regra no ocidente aparecia somente em narrativas pontuais. O
conceito do casamento, em si, não envolve “amor” na concepção. Casamentos foram
criados para serem instituições econômicas, alianças forjadas para fortalecer e
concentrar poder ou dinheiro.
“Antes, as pessoas não se casavam por amor. Isso é uma coisa recente já
que casamento era uma coisa muito séria para se misturar com amor.”
Regina Navarro Lins, Psicanalista
e escritora especializada em relacionamentos
Foi o romantismo, resumido nos
ideais da Revolução Francesa, que culminou no surgimento da ideia de que o amor
avassalador, único e mágico era um direito e um dever de todo ser humano, uma
parte fundamental – talvez nossa única real motivação. Um dos filósofos
responsáveis por essa mudança de pensamento foi o francês Jean Jacques
Rousseau.
O projeto do filósofo tinha como
base a ideia tradicional de família como a conhecemos. Ele criticava relações
baseadas em perpetrar poder ou fortunas, que para Rousseau, impediam a
construção de uma sociedade altruísta e ideal.
O filósofo acreditava que o amor
conjugal – a constituição de uma família baseada no amor romântico – era o
único caminho para que indivíduos se dispusessem a sacrificar os próprios
interesses para o benefício comum, resultando em uma sociedade melhor.
A relação conjugal defendida por
Rousseau previa que o amor e o sexo andassem juntos, porque a busca de sexo
fora do casamento significava a busca por valores egoístas, como conquista e
vaidade, e não a felicidade alheia e o benefício da sociedade.
A idealização de Rousseau reuniu
em uma só instituição os conceitos de amor, sexo, felicidade e casamento. Antes
dele, tudo era vendido separadamente.
Já na Revolução Industrial, mesmo
com a formação da família nuclear, formada por pai, mãe e filhos, o casamento
ainda não tinha muito a ver com amor. A propagação definitiva do amor romântico
idealizado veio com o surgimento da cultura de massa da televisão e do cinema,
que transformou em produto o mito do amor romântico: isso começou nos anos
1940, e bons exemplos são filmes como “O Vento Levou” e “Casablanca”.
Pela primeira vez, uma sociedade
inteira – a ocidental – passou a acreditar que o amor romântico, culminando em
um relacionamento e depois em um casamento feliz, duradouro, monogâmico e
sexualmente ativo, era a forma ideal de se relacionar com o outro.
Até hoje, a cultura pop – dos
filmes à música, passando pela literatura e pela internet – é profundamente
baseada nesses ideais.
Uma conta difícil de fechar#
É fácil constatar que essa
idealização está fadada a criar frustração. O conto de fadas ainda é usado,
consciente ou inconscientemente, como referencial para qualquer relacionamento
amoroso na sociedade ocidental.
“Presumimos que, comparado ao amor romântico, qualquer outro tipo de
amor entre duas pessoas que se relacionam de maneira amorosa seria frio e
insignificante”, escreve o psicanalista Robert A. Johnson, no livre “We – A
Chave da Psicologia do Amor Romântico.
O mito do amor romântico idealiza
o outro e atribui a ele característicasinexistentes. O conceito sugere que se
você se apaixona por alguém, essa é a pessoa que vai suprir todas as suas
necessidades.
Daí a ideia de que o parceiro no
qual devemos mirar é alguém que provoca uma paixão avassaladora que nos faz
sentir completo, nos satisfaz sexualmente, desperta em nós a vontade de morar
junto para o resto da vida e dividir todos os aspectos dela – negócios,
patrimônio, amigos e aspirações – só com aquela pessoa, além de ter filhos,
enquanto isso nos mantendo feliz todo esse tempo.
Todos os especialistas em
comportamento e psicologia social concordam: é responsabilidade demais para
colocar sobre uma pessoa só. Não há pessoa ou fenômeno nenhum capaz de fazer
todas essas coisas.
No entanto, porque o conceito é
dado como real e possível, nos cobramos a vida toda para buscar, encontrar e
sentir o tal amor romântico ideal. E se alguma dessas coisas dá errado no
processo, nos sentimos inadequados, fracassados ou culpamos o companheiro.
“Quando não realizamos o ideal imaginário do amor, buscamos explicar a
impossibilidade culpando a nós mesmos, aos outros ou ao mundo, mas nunca
contestando as regras comportamentais, sentimentais ou cognitivas que
interiorizamos quando aprendemos a amar. […] o amor-paixão romântico encampou a
ideia de felicidade emocional, criando seus párias e cidadãos de primeira
classe.”
Jurandir Freire Costa, Psicanalista
e autor do livro Sem Fraude Nem Favor: Estudos Sobre o Amor Romântico
A ideia do amor romântico
considera que paixão e amor são sentimentos permanentes, duradouros e que
simplesmente surgem do nada. A ciência já sabe alguma coisa sobre o que
chamamos de paixão: trata-se de um fenômeno neuroquímico caracterizado pela
influência de substâncias como adrenalina, dopamina e serotonina no cérebro e
no corpo.
Essas substâncias são liberadas
por glândulas quando nos relacionamos de alguma forma com alguém por quem nos
sentimos fisicamente ou afetivamente atraídos.
O contato físico e os estímulos
mentais trocados com o outro alimentam a liberação dessas substâncias, mas
calcula-se que o fenômeno químico – que já foi até comparado ao efeito de
drogas, porque vicia – possa durar de poucos dias a até um ou dois anos. E só.
“Este conjunto psicológico inclui uma exigência inconsciente de que o
nosso amante ou cônjuge nos alimente continuamente com essa sensação de êxtase
e de emoção intensa.”
Robert A. Johnson, No livro “We –
A Chave da Psicologia do Amor Romântico”
As 36 perguntas desenvolvidas
pelo psicólogo Arthur Aron são um atalho para gerar intimidade e fomentar a
liberação de algumas dessas substâncias químicas.
Mas o estímulo inicial só pode
levar a um relacionamento e à construção de um afeto real caso os dois
envolvidos no questionário escolham continuar a troca e a construção desse
afeto.
Quando não estamos mais tomados
pelo coquetel de hormônios e ficamos diante das dificuldades cotidianas
impostas pela convivência com o outro, o relacionamento foge do esperado. A
lista do amor romântico ideal não prevê a necessidade de esforços, construção
diária, concessões e nem contempla os defeitos do outro como obstáculos.
“O amor não aconteceu simplesmente para nós. Estamos apaixonados por
que escolhemos isso.”
Mandy Len Catron, Colunista do
The New York Times, sobre as 36 perguntas para se apaixonar
Pelo mesmo motivo, quando um
companheiro falha em suprir algum item da lista do amor romântico ideal,
identifica-se que não pode ser amor verdadeiro e há a sensação de que o
relacionamento é disfuncional. Isso vale para tradições como dividir a casa com
o cônjuge, ser monogâmico e ter filhos, por exemplo.
Na mesma linha, qualquer outro
formato de relacionamento – cônjuges que não vivam na mesma casa, casais que
não planejam ter filhos, relacionamentos abertos – ganham status de tabu. Se há
uma cultura de massa vendendo uma lista de critérios para ser feliz em um
relacionamento, é desagradável ser confrontado com pessoas que se dizem felizes
mesmo depois de terem escrito uma lista nova.
“O condicionamento cultural é
muito forte. Chegamos à idade adulta sem saber se nossos desejos são nossos ou
se aprendemos a desejá-los. Mas estamos vivendo um modelo [o amor romântico
idealizado] que não dá conta da realidade contemporânea, que não dá mais
respostas satisfatórias”, teoriza Regina Navarro Lins, psicanalista e escritora
especializada em relacionamentos em entrevista ao Nexo. “
Para ela, a cultura ocidental nas
últimas duas décadas está passando por um momento de busca por individualidade.
“Hoje, a grande viagem do ser humano e do jovem é estar dentro de si mesmo,
investir em seu potencial, suas habilidades, se conhecer”, explica.
Fonte: Geledes
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