quinta-feira, 30 de junho de 2016

A revolução das filhas de prostitutas na Índia

Asmita Katti e Shaddra K, de 18 e 16 anos, participam das oficinas da Kranti. ÁNGEL L. MARTÍNEZ
São mulheres e poderosas. São jovens e espertas. Foram maltratadas e são corajosas. Foram escravas e são independentes. Foram abusadas e são fortes. São artistas, professoras, jornalistas, oradoras, assistentes sociais, estudantes... São filhas das prostitutas de uma das maiores zonas de prostituição do mundo, mas não renegam o seu passado. Foram vítimas, e são agentes da mudança. Um grupo de adolescentes decididas a revolucionar ideias antagônicas na sociedade indiana.


 “Fui abusada por muitos homens quando ainda era uma criança. Ainda me lembro vivamente de como, quando eu tinha nove anos, um dos clientes da zona me colocou sentada no seu colo e introduziu seus dedos na minha vagina...”, conta Shweta Katti, de 21 anos. Em um inglês perfeito, sem hesitações, ela relata a perda da inocência, a humilhação, a dor e a culpa. Mas se trata de um discurso articulado, sereno, seguro. “Eu não odeio todos os homens. Não são todos iguais”. Sua firmeza se apoia em uma explanação desprovida de dúvidas que somente o insondável exercício da memória foi capaz de transformar em construtiva. Palavras que serviram mais como um bálsamo alheio do que como um martírio próprio. Passado o suplício e a compaixão, Shweta estuda psicologia para ajudar outras meninas que foram estupradas. “As mulheres de Kamathipura [o bairro de prostituição de Mumbai] acham que não podem sonhar grande, e isso as impede de atingir os seus objetivos”. Mastigada e saboreada por ela mesma, sua história é um exemplo de superação para muitos públicos diferentes e tem lhe valido o reconhecimento internacional de 25 menores de 25, mulheres jovens exemplares, ao lado de outras mulheres, como a militante e Prêmio Nobel da Paz paquistanesa Malala Yousafzai.

Mas Shweta não é a única. Mais 15 filhas de prostitutas formam a Kranti — revolução, em hindu —, uma organização criada em 2010 por adolescentes da segunda maior zona de prostituição do mundo. Indicado para o Prêmio Professor Global (2016) — conhecido como o Nobel do ensino —, as meninas, com idades que vão de 12 a 21 anos, não querem ser beneficiárias de projetos de desenvolvimento, mas sim agentes do seu próprio desenvolvimento. Dela fazem parte Nilofar, 22 anos, que trabalha como professora e quer estudar turismo para se dedicar à hotelaria; e Farah, 21 anos, que será jornalista assim que concluir o seu estágio de verão na BBC de Mumbai. Mas também Kavita, Ashini e Shradda, de 21, 18 e 16 anos respectivamente, que organizam oficinas semanais de pintura, escultura e teatro para crianças com câncer no hospital do centro da cidade. Cada uma com seus sonhos pessoais, mas todas unidas por um passado do qual não podem fugir. Fogem, apenas, da condescendência. “Kamathipura é o bairro onde eu nasci. Pode ser que as pessoas tenham pena de nós. Mas esse passado não nos fragiliza, ao contrário, ele nos deixa mais fortes”, diz Shradda, com apenas 15 anos, enquanto termina de se maquiar no espelho. Este reflete um sorriso afável, acompanhado da serenidade de seus olhos; olhos juvenis, mas já curtidos por certezas que explicam mais do que as palavras.

Aceitar o passado para revolucionar o presente

“Na Kranti, nos ensinam a explorar nossas paixões mediante as artes plásticas ou a meditação. Isso nos motiva a sonhar com o que queremos fazer de nossas vidas, como no resto do mundo. Sem ficarmos condicionados pelo nosso passado”, Sheetal Jain, de 21 anos. Ela nunca conseguiu integrar-se em escolas e casas de acolhimento, seu único interesse era música e achava que nunca concluiria a educação obrigatória. Mas o sistema de Kranti lhe ofereceu alternativas: terminou seus estudos e agora dá oficinas de percussão e contação de histórias, nas quais explica sua trajetória de luta pessoal, para ajudar os alunos.

Dança, música, teatro, meditação e oficinas sobre justiça social são parte integral das atividades da Kranti. As adolescentes de Kamathipura também participam de voluntariados e viajaram para o Nepal, Butão e Estados Unidos como parte de sua formação. “Não só são ajudadas a compartilhar suas histórias pelo mundo, mas encontram formas de relacionar-se com pessoas de outros países e culturas que vivem situações semelhantes”, explica Robin Chaurasiya, precursora da iniciativa e encarregada de buscar os recursos para a formação das revolucionárias, como se denominam. Norte-americana de 30 anos, de origem indiana, Robin chegou a Mumbai depois de ser expulsa da Força Aérea dos EUA por sua condição sexual, e em Kamathipura treinou seu agitado exército de adolescentes: “Com terapia e educação, aprenderam a não se envergonhar de seu passado, que não pode limitar seu futuro. Agora se sentem orgulhosas de suas origens em Kamathipura, porque isso as transformou nas mulheres que são”.

Amrin Shaikh, de 15 anos, mexe as mãos com veemência. “As pessoas me rejeitavam por minha origem e condição. Agora luto por meus direitos e respondo aos que pensam que sou boba”, traduz sua irmã Nilofar, que também aprendeu a linguagem de sinais graças ao Kranti. Aluna com as melhores notas em sua classe, Amrin é surda-muda, mas eloquente. E demonstra isso perguntando várias vezes se compreenderam o que disse.

A mesma confiança demonstrada pelas demais filhas de Kamathipura. Só ofuscada pela lembrança de suas mães, entre as quais algumas que morreram na favela da prostituição. Um vacilo que dura apenas alguns segundos. Sheetal insiste em uma ideia, batendo com os dedos sobre a pele de tambores ydjembés: “Estamos muito orgulhosas de nossas mães. Somos fortes graças a elas e ao que vivemos juntas”, dizem, sem um pingo sequer de paternalismo. “Entendemos que fizeram isso por nós e aqui aprendemos a perdoar.”

A infância em uma zona de prostituição

As integrantes da Kantri passaram a infância e a adolescência sob as garras do sistema de escravidão que impera em Kamathipura. Pagam-se cerca de 200 euros (algo em torno de 800 reais) pelo tráfico e venda de uma mulher no bairro de prostituição de Mumbai, segundo estimativa de uma ONG local, a Prerana Anti-Trafficking. Passar uma hora com uma menor de idade custa pouco mais de 15 euros (60 reais). E não mais do que 1.200 euros (4.800 reais) é o quanto se paga para comprar uma menina nesse que é o bordel mais antigo da Índia. Instituído pelos colonos britânicos há dois séculos, hoje em dia as ruas dessa zona se confundem com o glamour dos arranha-céus da megalópole indiana. Amontoadas confusamente e marcadas pela promiscuidade, suas ruas escondem cerca de 7.000 trabalhadoras do sexo presas a um sistema de karza — dívidas de vida —, inexistentes e infladas pelas redes de tráfico humano. Embora as autoridades locais afirmem que o número de prostitutas caiu de 50.000 em 1992 para 2.000 em 2009, ONGs como a Prerana Anti-Trafficking Centre dizem que o tráfico de mulheres tem aumentado no bordel e que esses números são limitados. Estima-se que cerca de 10.000 menores vivam em suas ruas.

Exploração sexual e infantil; as piores formas de escravidão moderna se concentram nas 14 ruas de Kamathipura, lotadas de enxames de pessoas, entre o cheio da falta de intimidade e a pobreza suburbana. Segundo o longo relatório de 2016 sobre o Índice de Escravidão Moderna, do final de maio, a Índia concentra a maior população de escravos modernos: 18 milhões de pessoas obrigadas a fazer trabalhos forçados, sob exploração infantil e prostituição.

“Minha avó vivia em Karnataka [estado indiano ao sul de Mumbai] e era dançarina. Levaram-na para trabalhar em Kamathipura quando era menor. Ela não sabia que se tratava de um bordel. Depois vieram os vícios e tudo o mais”, conta Sheetal. Três gerações de mulheres de sua família sobreviveram na favela da prostituição. Sob uma promessa de trabalho e tiradas em idade prematura de outros estados ou de países vizinhos como o Nepal e Bangladesh, as escravas sexuais são presas e transformadas em prostitutas pelos dalals — cafetões — até atingirem idades acima de 25 anos. Então, o sistema adhiva — receitas compartilhadas — as obriga a ceder uma parte de seus ganhos em itens como aluguel e segurança; reduzindo a 40% a sua já minguada renda.

As tentativas de acabar com o tráfico humano são freadas pela contradição entre leis nacionais e estatais, como a seção 8 do imoral Trafficking Prevention Act, (Ato de Prevenção do Tráfico Imoral) que criminaliza a mulher por oferecer seus serviços. As lacunas legais e a impunidade se unem à corrupção da polícia local, que vaza informações para as máfias antes de as unidades antitráfico ordenarem batidas. Numerosas organizações não governamentais tentam mitigar os estragos da escravidão sexual em Kamathipura. Seja colaborando com a polícia em denúncias e prisões seja oferecendo alternativas de trabalho às prostitutas ou abrigo e educação aos menores que vivem na zona.

“As ONGs de Kamathipura ministram educação informal às crianças, mas as superprotegem”, critica a própria Sheetal, que passou por quatro organizações diferentes. “Já para as mulheres só ensinam atividades tradicionais, como costura e tricô... até que cheguem à idade do casamento, na adolescência.”

A matéria foi publicada originalmente em Planeta Futuro, seção sobre pobreza e desenvolvimento sustentável do El País.

Fonte: El Pais

Nenhum comentário: