Asmita Katti e Shaddra K, de 18 e
16 anos, participam das oficinas da Kranti. ÁNGEL L. MARTÍNEZ
São mulheres e poderosas. São
jovens e espertas. Foram maltratadas e são corajosas. Foram escravas e são
independentes. Foram abusadas e são fortes. São artistas, professoras,
jornalistas, oradoras, assistentes sociais, estudantes... São filhas das
prostitutas de uma das maiores zonas de prostituição do mundo, mas não renegam
o seu passado. Foram vítimas, e são agentes da mudança. Um grupo de
adolescentes decididas a revolucionar ideias antagônicas na sociedade indiana.
“Fui abusada por muitos homens quando ainda
era uma criança. Ainda me lembro vivamente de como, quando eu tinha nove anos,
um dos clientes da zona me colocou sentada no seu colo e introduziu seus dedos
na minha vagina...”, conta Shweta Katti, de 21 anos. Em um inglês perfeito, sem
hesitações, ela relata a perda da inocência, a humilhação, a dor e a culpa. Mas
se trata de um discurso articulado, sereno, seguro. “Eu não odeio todos os
homens. Não são todos iguais”. Sua firmeza se apoia em uma explanação
desprovida de dúvidas que somente o insondável exercício da memória foi capaz
de transformar em construtiva. Palavras que serviram mais como um bálsamo alheio
do que como um martírio próprio. Passado o suplício e a compaixão, Shweta
estuda psicologia para ajudar outras meninas que foram estupradas. “As mulheres
de Kamathipura [o bairro de prostituição de Mumbai] acham que não podem sonhar
grande, e isso as impede de atingir os seus objetivos”. Mastigada e saboreada
por ela mesma, sua história é um exemplo de superação para muitos públicos
diferentes e tem lhe valido o reconhecimento internacional de 25 menores de 25,
mulheres jovens exemplares, ao lado de outras mulheres, como a militante e
Prêmio Nobel da Paz paquistanesa Malala Yousafzai.
Mas Shweta não é a única. Mais 15
filhas de prostitutas formam a Kranti — revolução, em hindu —, uma organização
criada em 2010 por adolescentes da segunda maior zona de prostituição do mundo.
Indicado para o Prêmio Professor Global (2016) — conhecido como o Nobel do
ensino —, as meninas, com idades que vão de 12 a 21 anos, não querem ser
beneficiárias de projetos de desenvolvimento, mas sim agentes do seu próprio
desenvolvimento. Dela fazem parte Nilofar, 22 anos, que trabalha como
professora e quer estudar turismo para se dedicar à hotelaria; e Farah, 21
anos, que será jornalista assim que concluir o seu estágio de verão na BBC de
Mumbai. Mas também Kavita, Ashini e Shradda, de 21, 18 e 16 anos
respectivamente, que organizam oficinas semanais de pintura, escultura e teatro
para crianças com câncer no hospital do centro da cidade. Cada uma com seus
sonhos pessoais, mas todas unidas por um passado do qual não podem fugir. Fogem,
apenas, da condescendência. “Kamathipura é o bairro onde eu nasci. Pode ser que
as pessoas tenham pena de nós. Mas esse passado não nos fragiliza, ao
contrário, ele nos deixa mais fortes”, diz Shradda, com apenas 15 anos,
enquanto termina de se maquiar no espelho. Este reflete um sorriso afável,
acompanhado da serenidade de seus olhos; olhos juvenis, mas já curtidos por
certezas que explicam mais do que as palavras.
Aceitar o passado para revolucionar o presente
“Na Kranti, nos ensinam a
explorar nossas paixões mediante as artes plásticas ou a meditação. Isso nos
motiva a sonhar com o que queremos fazer de nossas vidas, como no resto do
mundo. Sem ficarmos condicionados pelo nosso passado”, Sheetal Jain, de 21
anos. Ela nunca conseguiu integrar-se em escolas e casas de acolhimento, seu
único interesse era música e achava que nunca concluiria a educação
obrigatória. Mas o sistema de Kranti lhe ofereceu alternativas: terminou seus
estudos e agora dá oficinas de percussão e contação de histórias, nas quais explica
sua trajetória de luta pessoal, para ajudar os alunos.
Dança, música, teatro, meditação
e oficinas sobre justiça social são parte integral das atividades da Kranti. As
adolescentes de Kamathipura também participam de voluntariados e viajaram para
o Nepal, Butão e Estados Unidos como parte de sua formação. “Não só são
ajudadas a compartilhar suas histórias pelo mundo, mas encontram formas de
relacionar-se com pessoas de outros países e culturas que vivem situações
semelhantes”, explica Robin Chaurasiya, precursora da iniciativa e encarregada
de buscar os recursos para a formação das revolucionárias, como se denominam.
Norte-americana de 30 anos, de origem indiana, Robin chegou a Mumbai depois de
ser expulsa da Força Aérea dos EUA por sua condição sexual, e em Kamathipura
treinou seu agitado exército de adolescentes: “Com terapia e educação,
aprenderam a não se envergonhar de seu passado, que não pode limitar seu
futuro. Agora se sentem orgulhosas de suas origens em Kamathipura, porque isso
as transformou nas mulheres que são”.
Amrin Shaikh, de 15 anos, mexe as
mãos com veemência. “As pessoas me rejeitavam por minha origem e condição.
Agora luto por meus direitos e respondo aos que pensam que sou boba”, traduz
sua irmã Nilofar, que também aprendeu a linguagem de sinais graças ao Kranti.
Aluna com as melhores notas em sua classe, Amrin é surda-muda, mas eloquente. E
demonstra isso perguntando várias vezes se compreenderam o que disse.
A mesma confiança demonstrada
pelas demais filhas de Kamathipura. Só ofuscada pela lembrança de suas mães,
entre as quais algumas que morreram na favela da prostituição. Um vacilo que
dura apenas alguns segundos. Sheetal insiste em uma ideia, batendo com os dedos
sobre a pele de tambores ydjembés: “Estamos muito orgulhosas de nossas mães.
Somos fortes graças a elas e ao que vivemos juntas”, dizem, sem um pingo sequer
de paternalismo. “Entendemos que fizeram isso por nós e aqui aprendemos a perdoar.”
A infância em uma zona de prostituição
As integrantes da Kantri passaram
a infância e a adolescência sob as garras do sistema de escravidão que impera
em Kamathipura. Pagam-se cerca de 200 euros (algo em torno de 800 reais) pelo
tráfico e venda de uma mulher no bairro de prostituição de Mumbai, segundo
estimativa de uma ONG local, a Prerana Anti-Trafficking. Passar uma hora com
uma menor de idade custa pouco mais de 15 euros (60 reais). E não mais do que
1.200 euros (4.800 reais) é o quanto se paga para comprar uma menina nesse que
é o bordel mais antigo da Índia. Instituído pelos colonos britânicos há dois
séculos, hoje em dia as ruas dessa zona se confundem com o glamour dos
arranha-céus da megalópole indiana. Amontoadas confusamente e marcadas pela
promiscuidade, suas ruas escondem cerca de 7.000 trabalhadoras do sexo presas a
um sistema de karza — dívidas de vida —, inexistentes e infladas pelas redes de
tráfico humano. Embora as autoridades locais afirmem que o número de
prostitutas caiu de 50.000 em 1992 para 2.000 em 2009, ONGs como a Prerana
Anti-Trafficking Centre dizem que o tráfico de mulheres tem aumentado no bordel
e que esses números são limitados. Estima-se que cerca de 10.000 menores vivam
em suas ruas.
Exploração sexual e infantil; as
piores formas de escravidão moderna se concentram nas 14 ruas de Kamathipura,
lotadas de enxames de pessoas, entre o cheio da falta de intimidade e a pobreza
suburbana. Segundo o longo relatório de 2016 sobre o Índice de Escravidão
Moderna, do final de maio, a Índia concentra a maior população de escravos
modernos: 18 milhões de pessoas obrigadas a fazer trabalhos forçados, sob
exploração infantil e prostituição.
“Minha avó vivia em Karnataka
[estado indiano ao sul de Mumbai] e era dançarina. Levaram-na para trabalhar em
Kamathipura quando era menor. Ela não sabia que se tratava de um bordel. Depois
vieram os vícios e tudo o mais”, conta Sheetal. Três gerações de mulheres de
sua família sobreviveram na favela da prostituição. Sob uma promessa de
trabalho e tiradas em idade prematura de outros estados ou de países vizinhos
como o Nepal e Bangladesh, as escravas sexuais são presas e transformadas em
prostitutas pelos dalals — cafetões — até atingirem idades acima de 25 anos.
Então, o sistema adhiva — receitas compartilhadas — as obriga a ceder uma parte
de seus ganhos em itens como aluguel e segurança; reduzindo a 40% a sua já
minguada renda.
As tentativas de acabar com o
tráfico humano são freadas pela contradição entre leis nacionais e estatais,
como a seção 8 do imoral Trafficking Prevention Act, (Ato de Prevenção do
Tráfico Imoral) que criminaliza a mulher por oferecer seus serviços. As lacunas
legais e a impunidade se unem à corrupção da polícia local, que vaza
informações para as máfias antes de as unidades antitráfico ordenarem batidas.
Numerosas organizações não governamentais tentam mitigar os estragos da
escravidão sexual em Kamathipura. Seja colaborando com a polícia em denúncias e
prisões seja oferecendo alternativas de trabalho às prostitutas ou abrigo e
educação aos menores que vivem na zona.
“As ONGs de Kamathipura ministram
educação informal às crianças, mas as superprotegem”, critica a própria
Sheetal, que passou por quatro organizações diferentes. “Já para as mulheres só
ensinam atividades tradicionais, como costura e tricô... até que cheguem à
idade do casamento, na adolescência.”
A matéria foi publicada
originalmente em Planeta Futuro, seção sobre pobreza e desenvolvimento
sustentável do El País.
Fonte: El Pais
Nenhum comentário:
Postar um comentário